11 Agosto 2020
"Podemos continuar fazendo a pergunta clássica: 'Quando um batismo é válido?', mas podemos fazer a nós mesmos uma pergunta nova, que também muda o sentido da pergunta clássica: 'O que acontece quando um batismo é somente válido?'", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 08-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Teve uma grande repercussão na opinião eclesial o breve texto do responsum da Congregação para a Doutrina da Fé e a Nota Doutrinal que o acompanha. Também foi um bom sinal o pequeno debate teológico que surgiu em torno ao documento, junto com a repercussão das reações mais gerais e menos técnicas.
Logo veio à tona com clareza o sentido imediato da decisão, as suas generalizações às vezes indevidas e, em outros casos, injustificadas. Mas também vazou a sensação de um desconforto e de uma certa “estreiteza” de visão e de consideração da realidade eclesial e cultural.
Desejo me referir particularmente a dois textos que li hoje e que provêm de dois autores importantes como P. Sequeri e P. Gamberini. Trata-se de dois teólogos sistemáticos conhecidos, que analisam o documento com perspectivas bastante diferentes. Enquanto o primeiro se coloca comodamente na perspectiva do documento, ampliando o seu porte de algum modo e esclarecendo alguns de seus pressupostos, o segundo evidencia, em vez disso, os limites da perspectiva que o documento projeta sobre a realidade.
No entanto, o que me parece unir tanto o discurso de pleno consenso quanto aquilo que move destaques críticos é um modo de identificar o sacramento e o seu significado que é, poderíamos dizer, fruto do “cânone tridentino”. Digo isso de um modo totalmente objetivo, como a constatação de uma “regra” do pensamento e da práxis, que se afirmou com o Concílio de Trento e que chegou substancialmente incontestada até o Concílio Vaticano II.
Por isso, gostaria de tentar mostrar como se concebe esse modo de “pensar/agir” em torno dos sacramentos e quais consequências ele envolve também sobre o nosso modo de julgar um “responsum” sobre a “fórmula do batismo”.
Quero iniciar a partir de um texto não muito citado, mas que “comanda” muitas das coisas que hoje continuamos dizendo e fazendo em torno dos sacramentos e, em particular, do batismo.
O “ritual romano” de 1614, fruto do Concílio de Trento, introduz nas primeiras páginas uma distinção que se tornou decisiva nos séculos seguintes. Precisamente no início do texto dedicado ao batismo, o Ritual recebe e perpetua uma distinção fundamental, que apresenta com estas palavras:
“Para administrar esse sacramento, algumas coisas são de direito divino absolutamente necessárias (como a forma, a matéria e o ministro), enquanto outras são apenas em função da solenidade, como os ritos e as cerimônias...”
Essa distinção, de origem tomista, divide a realidade do batismo e de todos os outros sacramentos em duas partes, que se tornam quase autônomas: por um lado, o “núcleo de conteúdo necessário” e, por outro, “a articulação ritual e cerimonial”.
A mentalidade eclesial, o modo de celebrar, o modo de pensar e de fazer a catequese, a formação dos padres, a forma dos batistérios, dos confessionários e das igrejas dependem amplamente dessa “grande divisão”. Até mesmo a divisão das competências da Cúria Romana é profundamente influenciada por essa forma mentis.
Assim, a Congregação para a Doutrina da Fé trata das “fórmulas”, das “matérias” e dos “ministros”, enquanto os ritos e as cerimônias têm, justamente, a Congregação para o Culto como referência.
A distinção escolástica, que se tornou o “critério” do Ritual de 1614, porém, se transformou com o tempo em uma espécie de “cisão” da experiência. Deram-se conta disso os primeiros grandes “liturgistas” do século XIX: Rosmini na Itália e Guéranger na França haviam percebido essa fratura interna na experiência de fé e eclesial.
Um século depois, no início do século XX, R. Guardini considerou, como um profeta, essa fratura entre “forma” e “conteúdo” como aquilo que o novo saber litúrgico devia superar. E inaugurou a grande pesquisa da teologia litúrgica que, mais tarde, J. Ratzinger definiu com uma expressão de grande eficácia: “Mudou a noção de forma”.
Se tivéssemos que traduzir essa formulação icástica, deveríamos dizer que o significado teológico do sacramento não está simplesmente na união de fórmula, matéria e ministro. “Per ritus et preces” torna-se uma definição do sacramento, não simplesmente uma descrição cerimonial dele. Para dizer “o que é o sacramento”, a tríade fórmula/matéria/ministro não é mais suficiente.
Esse desenvolvimento mudou as categorias com as quais a Igreja pensa e celebra hoje. Por isso, o fato de “isolar” a fórmula de todo o contexto ritual torna-se uma operação certamente sempre possível, até mesmo oportuna quando há problemas, abusos ou distorções, mas que inevitavelmente parece ser muito unilateral quando se permite levantar a hipótese de que “apena a fórmula” é capaz de reger a experiência que está em jogo no sacramento. Que “Cristo somente” é mediado pela “fórmula somente” é uma teoria bastante fraca. Mas, quero repetir, isso se tornou “institucional” no momento em que uma Congregação, em relação ao mesmo sacramento, ocupa-se apenas dos “conteúdos de fé” e outra, das “formas rituais”.
Essa divisão das competências, que implica um “olhar seletivo” e uma “indiferença ex officio”, fica aquém em relação ao ditado conciliar e à experiência que a Igreja faz com a liturgia posterior à reforma litúrgica. Ao lado das “palavras da fórmula” – no batismo assim como em qualquer outro sacramento – existem todas as outras palavras (da escritura proclamada, da oração comum, da homilia...), e existem todas as linguagens não verbais, das quais todo ritual sacramental é rico.
Considere-se como é diferente pensar a “fórmula” na celebração de um batismo que dura 15 minutos em uma tarde de sábado, ou no coração da Vigília Pascal, após um catecumenato de três anos. A indiferença ao contexto aqui se torna o risco de uma forte incompreensão.
Gostaria de acrescentar também mais uma consideração. A conservação da “fórmula tradicional” será tão mais fácil no momento em que soubermos olhar para o “fenômeno do batismo” de uma forma mais ampla e mais articulada. Talvez uma certa “obstinação” em querer adaptar a fórmula a novas circunstâncias ou sensibilidades poderia depender precisamente dessa nossa perspectiva distorcida e comum. Ou seja, no fato de querer concentrar tudo o que é importante apenas nas palavras da fórmula.
Mas existem milhares de outras formas para dizer o poder de Deus, a sua misericórdia, o dom da graça diante do pecado do ser humano e a reabilitação desse ser humano quando é tocado pela graça. Um exemplo pode ser de grande ajuda aqui.
Se concentrarmos todas as nossas energias em “manter firme a fórmula estabelecida” – e não há nada de mal nisso – o risco é de que cuidemos apenas da fórmula “exata” e nos tornemos extremamente “desleixados” com todo o resto. Sempre me chama a atenção que, ao lado do escândalo pela introdução de “palavras diferentes”, não se percebe nenhum escândalo nem pelo tom com que essas palavras são proferidas, nem pela incoerência dos outros “elementos”. Por que, em um batismo, a fórmula deve ser sempre garantida, enquanto a água pode ser reduzida a uma única gota?
A “grande divisão” nos levou a ter ouvidos atentos apenas às “palavras formais”, mas a música dessas palavras e a quantidade de água, o perfume do crisma, a qualidade dos silêncios ou a pertinência dos cantos ou dos movimentos não desperta em nós, pelo menos em média, nenhuma reação consciente!
Por trás de tudo isso, está um dispositivo teórico, que chamei de grande divisão, que é antigo, mas que hoje não funciona mais. Se permanecermos em seu interior, diremos coisas sacrossantas, totalmente fundamentadas, mas que se tornam unilaterais na medida em que não se deixam pensar em uma nova síntese, na qual a quantidade da água da fonte batismal junto à qual eu pronuncio a “fórmula” não é simplesmente um “enfeite cerimonial” substituível por um dedo de água em uma baciazinha de plástico.
Assim, não é evidente que a ânsia de “transformar a fórmula” não pode ser, por sua vez, o efeito dessa divisão da experiência, que clama para ser lida de outra forma. E é verdade que um só é o batismo, e muitos são os ritos, mas também é verdade que sempre se tem acesso ao batismo por via ritual. O “conteúdo” do batismo, se for dissolvido da mediação verbal e não verbal que o acompanha, fica reduzido e quase domesticado.
Esse nó teórico, que condiciona tanto a prática, parece-me que merece uma atenção renovada. E talvez, precisamente assim, aquela reivindicação justa, que a Nota Doutrinal ao responsum quer motivar – isto é, querer tirar o batismo das manipulações que a tradição gostaria de lhe impor de vez em quando –, poderia encontrar o seu campo mais amplo de eficácia. Apontando não apenas para a “fórmula”, mas para toda a forma verbal (todas as palavras) e para toda a forma ritual (todas as linguagens) do batismo.
Como o Senhor não se mediou apenas em palavras, mas também em ações, a percepção de ter que recuperar essa unidade original de ditos e fatos, de palavra e sacramento, de verbal e não verbal, pode ser reconhecida como uma tarefa que a teologia pode tornar objeto de estudo e de elaboração, a serviço do crescimento comum.
Porque podemos continuar fazendo a pergunta clássica: “Quando um batismo é válido?”, mas podemos fazer a nós mesmos uma pergunta nova, que também muda o sentido da pergunta clássica: “O que acontece quando um batismo é somente válido?”.
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Uma fórmula sem forma: o que acontece quando um batismo é somente válido? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU