04 Agosto 2020
"Enquanto tivermos, embora sob determinadas condições, uma dupla forma do rito romano, sempre poderemos pensar que a Reforma da liturgia, como a da Igreja, é apenas opcional", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor no Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come se non, 31-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A abertura da Igreja ao mundo e à dimensão comunitária, conforme concebida e implementada pelo Concílio Vaticano II, encontrou na liturgia sua primeira expressão completa. Poderíamos dizer que esse "destino" está escrito no DNA das expressões conciliares. Não surpreende, de fato, que a "constituição litúrgica" tenha um título "genérico" como Sacrosanctum Concilium. Com efeito, contém um "proêmio" que é inaugural não apenas para o discurso sobre a liturgia, mas para todo o evento conciliar. Vamos ouvir novamente o texto da SC1:
"O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia".
Aqui é evidente que a reforma (como crescimento de vida cristã, sua atualização e adaptação, diálogo para a unidade das confissões e da humanidade) é o horizonte geral em que é encastoada, de modo inaugural, a ação litúrgica da Igreja.
Ora, não se trata simplesmente de "começar pela liturgia", mas de considerar o rito cristão como o ponto mais delicado de mediação da tradição. Recuperando uma noção mais profunda de liturgia e de participação, propondo uma cuidadosa reforma da liturgia eucarística e de todos os sacramentos, renovando a dimensão temporal do ano litúrgico e da liturgia das horas como "experiência comum" para todo o corpo eclesial, são postas as bases para uma nova compreensão da igreja e da palavra, das outras confissões e das outras religiões. O novo paradigma está tudo implícito no novo rito.
Assim como a Reforma da Igreja se "ativa" no plano litúrgico, da mesma reforma se "bloqueia" nesse mesmo plano. Precisamente neste período de pandemia, a partir dos dias de março, quando começamos a tomar consciência da gravidade e da dimensão do fenômeno, vimos uma série de fenômenos surgirem, revelando, além de tudo, uma grave forma de mau entendimento da reforma litúrgica e sua própria razão de ser. Vamos tentar fazer uma pequena lista.
As categorias com as quais tentamos "lidar" com a pandemia, no plano litúrgico, não raramente foram rudimentares, atrasadas, às vezes abertamente não-conciliares. O medo do contágio reativou, de maneira singularmente explícita, o medo da liturgia:
- alguns bispos escreveram curtos documentos ou longas cartas, no centro dos quais estava o padre que celebra sozinho;
- as normativas sobre as "celebrações pascoais" - tanto no centro quanto na periferia – não raramente tiveram como interlocutores apenas os padres, e não o povo de Deus, deixado no fundo, como uma categoria residual;
- a leitura do ministério ordenado em relação à liturgia tem sido muitas vezes entendida como "privilégio" ou até mesmo como "exclusividade" na ação ritual.
- a própria maneira de lidar com as "normativas sanitárias" – deixando de lado a tentação de lê-las como "limitação indevida da liberdade de culto" - tem tido dificuldade em assumir a força interna das categorias introduzidas pela SC e pela reforma litúrgica.
Bastante singular, mas também muito instrutiva, foi a "tradução" da festa de Corpus Christi em condição de "quarentena sanitária". Essa passagem foi reveladora. Como era impossível realizar a "procissão fora da Igreja", a "festa" foi adaptada à situação, introduzindo um tipo de momento de adoração ao final do rito de comunhão, renunciando à despedida da assembleia. Essa solução é o resultado de um equívoco. A festa é uma festa de comunhão. No ato de instituição da festa, em 1264, Honório IV diz explicitamente que naquele dia "todos se comunicam". E pensa nele como um remédio para a "dispersão da quinta-feira santa". É bastante instrutivo que esse conteúdo originário tenha se transformado, ao longo dos séculos, em um primado de adoração sobre a comunhão. Desse ponto de vista, a pandemia favoreceu, ainda mais do que o habitual e por razões práticas, esse primado da estase sobre a dinâmica, que, no entanto, não está na preconização originária da festa, nem na releitura da experiência eucarística promovida pela Reforma Litúrgica.
Também é evidente a correlação entre o repensar as formas rituais e as formas eclesial e ministerial a serem renovadas. Uma interpretação "tridentina" da Eucaristia mostra-se sempre útil quando não se deseja mudar nem uma vírgula no arranjo do ministério ordenado e nas formas disciplinares da vida eclesial (como, por exemplo, a paróquia). É suficiente retirar o valor originariamente comunitário da Eucaristia e degradá-la à "ação do padre", para obter, de uma só vez, um duplo resultado. Nada muda no ministério do padre e nada muda na organização da paróquia. Mas o pressuposto dessa imobilidade é a surdez em relação ao Concílio e à Reforma litúrgica. Esses eventos, cujo legado cabe a todos valorizar, mudaram profundamente a situação, pois releram a figura do sacerdote, ajudando-nos a entender a diferença entre "aquele que celebra" e "aquele que preside". Essa diferença ainda é bastante desconhecida.
Alguns me disseram: "mas ao dizer isso, você nega que a missa seja válida se a celebra apenas o padre". E eu digo: "Não. Não nego de forma alguma que a missa celebrada apenas por um padre sozinho seja válida. Mas eu sei duas coisas. Que sua validade não impede que seja "ilícita", porque a normativa sobre a missa prevê imperativamente que haja pelo menos um outro ministrante além do padre. E este já é um sinal importante. Mas depois há um segundo ponto, ainda mais importante. A missa celebrada por um padre sozinho é certamente válida, mas é "apenas válida". Se seu valor for pensado como o conjunto de todas as palavras e de todas as linguagens, em uma comunidade rica e articulada, uma missa válida é apenas válida. Falta-lhe toda aquela gratuidade de que precisa de maneira vital, para ser plenamente missa. Por isso que é correto falar do padre como alguém que "preside" um ato no qual toda a Igreja "celebra". E é toda a Igreja que é chamada, em relação ao pão e ao vinho como corpo e sangue de Cristo, para tornar-se aquele corpo e aquele sangue. O ato nunca se encerra no círculo estreito e vicioso entre padre e elementos, mediado pela "fórmula", mas no amplo e virtuoso círculo que se institui entre comunidades, ministros, presidência, liturgia da palavra e liturgia eucarística.
É evidente que, se tudo isso não estiver claro, se ainda há padres, e até alguns bispos e cardeais, que têm medo do Concílio e da Reforma Litúrgica, e continuam a falar unilateralmente do "poder do sacerdote de tornar presente o Senhor sob as espécies do pão e do vinho" - como se fosse um ato solitário e uma peculiaridade pessoal e não eclesial e comunitária -, então não há motivos para promover nem a reforma da liturgia, nem encontrar confirmação disso na reforma da Igreja. Uma ministerialidade bloqueada e estéril depende de uma visão da onipotência do padre, que faz sozinho todo o essencial, diríamos "por si só". E a paróquia - ou a diocese - é pensada à imagem e semelhança desse modelo de sacramento e de padre. Por outro lado, todos sabem que, se for assumida totalmente a Igreja Eucarística que o Concílio e a Reforma Litúrgica projetaram, é necessário pôr em prática um grande repensamento das formas ministeriais e instituições em que essas formas se expressam.
O equívoco que pesa sobre toda essa questão é, afinal, um equívoco litúrgico. Enquanto tivermos, embora sob determinadas condições, uma dupla forma do rito romano, sempre poderemos pensar que a Reforma da liturgia, como a da Igreja, é apenas opcional. E assim poderemos pensar que a vida eclesial possa garantir para si uma continuidade substancial sem nenhum esforço, por "pura administração". E poderíamos até nos iludir de anunciar a "conversão missionária da paróquia" citando apenas artigos do Código de Direito Canônico.
Mas se ouvirmos as palavras do Concílio, assim como o Papa Francisco soube traduzi-las para a EG, encontramos um aviso que é uma espécie de "síntese": "Neste momento, não nos serve uma simples administração" (EG 25). Mas, para garantir-nos um futuro de "simples administração" - e, assim superar o medo de uma liturgia que tem a Igreja inteira como sujeito - basta promover - mesmo inconscientemente - uma definição tridentina de eucaristia. Que apenas o padre - e somente o padre - pode "celebrar" e "administrar". Nesse imaginário - tão fácil e quase dado como certo - está o defeito a ser superado, que já se estende há 60 anos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Medo litúrgico: Reforma da Igreja, não “simples administração” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU