14 Julho 2020
"O dia 8 de dezembro deste ano marcará o 55º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II. Um acontecimento que, neste nosso tempo, está provocando um novo debate na comunidade eclesial, diante dos que estão se distanciando dela cada vez mais, e diante dos que querem reduzir seu alcance e significado", escreve Sergio Centofanti, em artigo publicado por Vatican News, 08-07-2020. A tradução é de Benno Brod.
Bento XVI usou uma palavra forte: falou de um “novo Pentecostes”. Bento foi testemunha direta do Concílio, participando, primeiro como perito do Cardeal Frings e depois como testemunha e perito oficial. “Esperávamos que tudo se renovasse – disse ele aos sacerdotes de Roma no dia 14 de fevereiro de 2013 –, que realmente um novo Pentecostes acontecesse, uma nova era na Igreja (...). Sentíamos que a Igreja não ia para frente, que se encolhia, que parecia antes uma realidade do passado e não a portadora de um futuro. Esperávamos, naquele momento, que essa relação se renovasse, que mudasse; que a Igreja fosse novamente a força do amanhã e a força de hoje”. Em seguida, citando João Paulo II, na audiência geral de 10 de outubro de 2012, Bento XVI faz sua a definição do Concílio como “a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX: nele se oferece a nós uma bússola segura para nos guiar no caminho do século que se abre” (Novo millennio ineunte, 57). A “verdadeira força motriz” do Concílio – acrescenta ele – foi o Espírito Santo. Portanto, um novo Pentecostes: não para uma nova Igreja, mas para “uma nova época na Igreja”.
O que o Concílio mostrou mais claramente foi que o autêntico desenvolvimento da doutrina, que se transmite de geração em geração, se realiza num povo que caminha unido, guiado pelo Espírito Santo. Este é o coração do famoso discurso de Bento XVI à Cúria Romana, no dia 22 de dezembro de 2005.
Nesse discurso Bento fala de duas hermenêuticas: a da descontinuidade e ruptura, e a da reforma e renovação na continuidade. A “justa hermenêutica” é aquela que vê a Igreja como “um sujeito que cresce com o tempo e se desenvolve, mas permanecendo sempre igual, como o único sujeito do Povo de Deus a caminho”. Bento fala de uma “síntese de fidelidade e dinamismo”. A fidelidade está em movimento, não fica imóvel, é uma viagem que avança pelo mesmo caminho, uma semente que se desenvolve e se torna uma árvore, que estende seus ramos, floresce e produz frutos; como uma planta que, por um lado, vive e cresce, e, por outro, tem raízes que não se podem cortar.
Mas como podemos justificar uma renovação na continuidade, perante certas mudanças fortes que aconteceram na história da Igreja? Podemo-lo desde o dia em que Pedro batizou os primeiros gentios: sobre eles desceu o Espírito Santo e Pedro disse: “Verdadeiramente estou compreendendo que Deus não faz discriminação entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35). Os fiéis da circuncisão o reprovam; mas quando Pedro explica o que aconteceu, todos glorificam a Deus dizendo: “Também aos não-judeus Deus concedeu a conversão que leva à vida (At 11,18). É o Espírito que nos mostra o que fazer; ele nos faz movermo-nos, nos faz avançar.
Em 2000 anos de história, houve muitas mudanças na Igreja: na doutrina sobre a salvação dos não batizados, o uso da violência em nome da verdade, a questão das mulheres e dos leigos, a relação entre fé e ciência, a interpretação da Bíblia, a relação com os não católicos, com os judeus e os seguidores de outras religiões, a liberdade religiosa, a distinção entre esfera civil e a religiosa, para mencionar somente alguns temas. Bento XVI, naquele mesmo discurso à Cúria, reconhece isso: em certos assuntos, de fato foi realizada uma descontinuidade”. Por exemplo: para além da argumentação de contextualização filosófica, teológica ou histórica, para demonstrar uma certa continuidade, primeiro se dizia não à liberdade de culto para os não católicos num país católico, e depois se disse sim. Portanto, uma indicação bem diferente na prática.
Bento XVI usa palavras significativas: “Tivemos que aprender a compreender mais concretamente do que antes”; “foi necessário fazer uma ampla nova abordagem”; “tivemos que aprender a reconhecer”. Como Pedro que, depois de Pentecostes, ainda teve que entender coisas novas, ainda teve que aprender, ainda teve que dizer: “Estou me convencendo que...”. Não levamos a verdade em nossos bolsos, não “possuímos” a verdade como uma coisa, mas pertencemos à Verdade; a Verdade Cristã não é um conceito: é o Deus vivo que continua falando. E, referindo-se à Declaração do Concílio sobre a Liberdade Religiosa, Bento XVI declara: “O Concílio Vaticano II, reconhecendo e fazendo seu, com o Decreto sobre a Liberdade Religiosa, um princípio essencial do Estado moderno, retomou, uma vez mais, a herança mais profunda da Igreja. E com isso, pode ter a consciência de estar em plena sintonia com o ensinamento do próprio Jesus (cf. Mt 22,21), assim como com a Igreja dos mártires e os mártires de todos os tempos”. E continua: “O Concílio Vaticano II (...) reviu e, inclusive, corrigiu algumas decisões históricas; mas, nessa aparente descontinuidade, manteve e aprofundou a compreensão de sua natureza íntima e de sua verdadeira identidade. A Igreja é, tanto antes, como depois do Concílio, a única, santa, católica e apostólica Igreja a caminho através do tempo”.
Assim, podemos ver melhor que a continuidade não é simplesmente uma dimensão lógica, racional ou histórica. É muito mais que isso: é uma continuidade espiritual, em que o mesmo e único Povo de Deus caminha unido, dócil às indicações do Espírito. A hermenêutica da ruptura é praticada por aqueles que, nesta caminhada, se separam da comunidade, que rompem a unidade, porque ou se detêm ou vão demasiado pra frente. Bento fala dos dois extremos: os que cultivam a “nostalgia anacrônica” e os que “correm para diante” (Missa de 11 de outubro de 2012). Eles não escutam mais o Espírito que pede fidelidade dinâmica, mas seguem suas próprias ideias, se apegam somente ao velho ou somente ao novo, e já não sabem como unir as coisas velhas com as novas, como faz o discípulo do Reino dos céus.
Depois dos grandes Papas que o precederam, chegou Francisco. Ele está seguindo a estrela de seus predecessores: a semente se desenvolve e cresce. A Igreja continua. Muitas notícias distorcidas ou falsas são lançadas em circulação sobre Francisco, como sucedeu com o predecessor Bento e muitos outros sucessores de Pedro. Não foram mudados nem os dogmas ou mandamentos, nem os sacramentos, nem os princípios sobre a defesa da vida, a família, a educação. Não mudaram as virtudes teológicas ou cardeais, nem os pecados mortais. Para compreender melhor a novidade na continuidade de Francisco, para além das distorções e evidentes falsidades propaladas, é preciso ler a Exortação Apostólica “Evangelii gaudium”, o texto programático de seu Pontificado. Começa assim: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele e são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento! Com Jesus Cristo a alegria renasce sem cessar.” A primeira coisa é a alegria do encontro com Jesus, nosso Salvador.
O Papa nos convida a “recuperar o frescor original do Evangelho” e a transmitir esse frescor a todos. Ele pede que nos centremos no essencial: o amor a Deus e ao próximo, evitando um modo de anúncio “obcecados pela transmissão de um sem-número de doutrinas que se tenta impor à força de insistência (...); nesse núcleo essencial, o que brilha é a beleza do amor salvador de Deus, manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado”. Acontece, no entanto, que se fala “mais da lei do que da graça, mais da Igreja do que de Jesus Cristo, mais do Papa do que da Palavra de Deus”. Francisco insiste que a primeira proclamação sempre soe assim: “Jesus Cristo te ama, ele deu sua vida para te salvar, e agora está vivo a teu lado, todos os dias, para te iluminar, fortalecer e libertar”. Francisco pediu um estilo de “proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhida cordial, que não condene”. Indica a arte do acompanhamento, “para que todos aprendam sempre a tirar as próprias sandálias diante da terra sagrada do outro”, o qual deve ser visto “com um olhar respeitoso e compassivo, mas, ao mesmo tempo, sadio, livre e animador, para que possa se desenvolver em vida cristã”.
Francisco queria uma Igreja de portas abertas: “Nem sequer as portas dos Sacramentos devem estar fechadas, por nenhum motivo”. Assim, “a Eucaristia, mesmo constituindo a plenitude da vida sacramental, não é uma recompensa para os perfeitos, mas um generoso remédio e alimento para os fracos. Essas convicções também têm consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e audácia. Frequentemente agimos como controladores da graça, e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma ‘casa de costumes’; é a casa do pai, onde há lugar para todos, nesta extenuante vida”. Daí a sugestão de assumir caminhos de discernimento, caso por caso, para avaliar a possível admissão aos Sacramentos de quem vive em situações irregulares, como se menciona na Exortação Amoris laetitia. É um passo que tem como propósito aproximar as pessoas e acompanhá-las, olhando para a salvação delas e para a misericórdia de Jesus. As normas podem tornar-se pedras, como aconteceu na história da mulher surpreendida em adultério. Certas perguntas de hoje, inclusive, lembram as que os escribas e fariseus fizeram a Jesus há 2000 anos: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Ora, Moisés, na Lei, nos manda apedrejar tais mulheres. Que dizes tu a isso?” (João 8,4-5). Conhecemos a resposta de Jesus.
Francisco apenas continua no caminho do Concílio. Numa continuidade espiritual, porque o Espírito continua falando. “A pequena semente que o Papa João XXIII semeou – afirmou o Papa São João Paulo II no dia 27 de fevereiro de 2000 – cresceu, dando vida a uma árvore que agora estende seus majestosos e poderosos ramos na vinha do Senhor. Ela já deu muitos frutos (...) e muitos mais dará nos próximos anos. Um novo tempo se abre diante de nossos olhos (...). O Concílio Ecumênico Vaticano II foi uma verdadeira profecia para a vida da Igreja e o continuará sendo, durante muitos anos do terceiro milênio que acaba de iniciar.”
Hoje, como ontem! Na abertura do Concílio, a 11 de outubro de 1962, o Papa São João XXIII declarou: “Sucede... frequentemente... algo que não deixa de ofender os nossos ouvidos, e é o que nos contam de pessoas que, mesmo tendo zelo pela religião, julgam... os fatos sem suficiente objetividade ou juízo prudente. Nas condições atuais da sociedade humana, não enxergam senão ruínas e problemas. Dizem que nossa época, comparada com os séculos passados, é pior. E chegam a se comportar como se não tivessem nada a aprender da história, que, entretanto, é a mestra da vida, e como se no tempo dos Concílios anteriores tudo acontecia felizmente no que se refere à doutrina cristã, à moral e à justa liberdade da Igreja. Parece-nos que devemos estar decididamente em desacordo com esses profetas da desgraça, que sempre anunciam o pior, como se o fim do mundo estivesse perto.” E, falando de erros de natureza doutrinal, João XXIII acrescentou: “Sempre a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade; julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que condenando erros.”
No encerramento do Concílio, a 8 de dezembro de 1965, o Papa São Paulo VI, em sua “saudação universal” afirmou: “Para a Igreja Católica, ninguém é um estranho, ninguém está excluído, ninguém está longe... Dirigimos nossa saudação universal também a vós, que não nos conheceis; que não nos entendeis; que não credes que somos úteis, necessários e amigos vossos; e também a vós, que, pensando talvez em fazer o bem, vos opondes a nós! É uma saudação sincera, uma saudação discreta, mas cheia de esperança; e hoje, crede-o, cheia de estima e amor... Esta nossa saudação tem um desejo: Que se acenda em nossos corações uma nova chama de caridade divina; uma chama que possa iluminar os princípios, as doutrinas e os propósitos que o Concílio preparou; que essa chama, inflamada de caridade, possa verdadeiramente realizar na Igreja, e no mundo, a renovação dos pensamentos, da atividade, dos costumes e da força moral, da alegria e da esperança, que eram o próprio propósito do Concílio.”
Nesta época, em que a Igreja Católica é particularmente afetada por contrastes e divisões, faz bem recordar as exortações do Apóstolo Paulo às primeiras comunidades cristãs. Ele lembra aos gálatas que “toda a lei se resume neste único mandamento: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14-16). E na carta aos efésios ele diz: “De vossa boca não saia nenhuma palavra maliciosa, mas somente palavras boas, capazes de edificar e de fazer bem aos ouvintes. Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, com o qual fostes marcados, como por um sinal, para o dia da redenção. Desapareça do meio de vós todo amargor e exaltação, toda ira e gritaria, os ultrajes, e toda espécie de maldade. Pelo contrário, sede bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-vos mutuamente como Deus vos perdoou em Cristo” (Ef 4,29-32). Que aconteceria se puséssemos em prática esta palavra “sem glosa”?
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Concílio Vaticano II: uma semente que continua crescendo, agora com Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU