17 Julho 2020
A pandemia está instalando, com maior ênfase, o debate sobre a possibilidade de garantir uma renda universal para toda a população. Até recentemente, era um slogan de grupos políticos e acadêmicos críticos e hoje faz parte da agenda da governança global.
A reportagem é de Alfredo Zaiat, publicada por Sputinik, 15-07-2020. A tradução é do Cepat.
O Presidente do Fórum Econômico Mundial (Davos), Klaus Martin Schwab, em encontro no qual participa o establishment financeiro e líderes das principais potências, incorporou esta iniciativa à agenda. É claro que essa ação não significa uma revisão ideológica do poder mundial, mas uma reação defensiva na busca de evitar o colapso do sistema, em razão de uma das crises mais graves da história.
Até o FMI está estudando. O diretor do Departamento de Assuntos Fiscais, o português Vítor Gaspar, explicou na última edição do relatório 'Monitor fiscal' que a renda básica universal "é uma das várias ideias que podem ser examinadas em resposta a essa crescente incerteza".
A Igreja Católica liderada pelo Papa Francisco também vem se pronunciado a favor da implementação de um salário universal que compense os efeitos excludentes de uma economia financeirizada.
Como a experiência indica, as crises econômicas costumam ser melhor aproveitadas por setores do poder econômico para assentar bases de crescimento organizadas sobre pautas de maior desigualdade. Hoje, esse terreno está em disputa e a bateria de políticas, decisões públicas e comunitárias que estão sendo resolvidas determinará qual será a orientação a emergir dessa crise inédita.
Enquanto não for encontrada uma vacina eficaz para conter o coronavírus e a economia possa retornar a uma certa normalidade, é essencial implementar medidas que atenuem os efeitos da crise nos grupos sociais afetados. Nesse cenário, irrompeu com intensidade a ideia de uma renda básica universal. Seria uma medida paliativa em primeira instância e, em seguida, pode se tornar uma base para ampliação de direitos. É um debate global que não está resolvido.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) propõe que os governos garantam transferências monetárias temporárias imediatas para satisfazer necessidades básicas e sustentar o consumo das famílias.
A médio e longo prazo, o organismo reitera que o alcance dessas transferências deve ser permanente, ultrapassar as pessoas em situação de pobreza e chegar a amplos estratos da população que são muito vulneráveis a cair nela, o que permitiria avançar em direção a uma renda básica universal, para assegurar o direito básico à sobrevivência.
O relatório O desafio social em tempos de Covid-19 detalha o impacto social e os desafios relacionados que a atual crise teria para os países da América Latina e do Caribe. Este documento propõe uma renda básica de emergência para ser implementada imediatamente, com a perspectiva de permanecer ao longo do tempo de acordo com a situação em cada país.
Isso é relevante, uma vez que se estima que a superação da pandemia levará tempo e as sociedades devem coexistir com o coronavírus, o que dificultará a reativação econômica e produtiva.
"A pandemia tornou visíveis problemas estruturais do modelo econômico e as deficiências dos sistemas de proteção social. Por esse motivo, devemos avançar para a criação de um Estado de bem-estar social com base em um novo pacto social que considere o fiscal, o social e o produtivo", disse Alicia Bárcena, secretária executiva da CEPAL.
A proposta de uma renda básica de emergência seria equivalente ao custo per capita de adquirir uma cesta básica de alimentos e outras necessidades básicas (uma quantia que determina a linha de pobreza de cada país), durante seis meses, para toda a população vulnerável.
A CEPAL calcula que deveria alcançar 215 milhões de pessoas, 34,7% da população regional. Isso implicaria um gasto adicional de 2,1% do PIB latino-americano para cobrir todas as pessoas que se encontram em situação de pobreza este ano.
"A pandemia exacerbou as dificuldades da população em satisfazer suas necessidades básicas. Portanto, é necessário garantir renda, segurança alimentar e serviços básicos a um grande grupo de pessoas cuja situação se tornou extremamente vulnerável e que não necessariamente estavam incluídos nos programas sociais existentes antes da pandemia", afirmou Bárcena.
É uma renda periódica paga pelo Estado a cada pessoa, sendo um direito sem quaisquer condições. Essa renda corresponde a uma política social redistributiva. Os governos buscariam, assim, garantir um nível mínimo de renda para todas as pessoas e reduzir as desigualdades sociais.
Diferentemente de outras políticas de assistência social, na renda básica, o direito a essa renda não é determinado pela situação pessoal do beneficiário. Isso porque é considerado um direito pelo simples fato de ser um membro da sociedade.
Dessa maneira, a situação financeira, familiar e pessoal não impediria ninguém de acessar essa renda. No entanto, o valor recebido pode variar dependendo de certos fatores, dependendo das características específicas do programa de renda básica.
A ideia de renda básica universal não está desligada de uma reformulação geral dos critérios operacionais do Estado, da economia e das relações internacionais.
O caso mais recente de implementação é a Espanha. O governo aprovou a renda mínima vital no último Conselho de Ministros. É um benefício com o objetivo de cobrir 80% das pessoas em extrema pobreza no país.
É uma medida que pode chegar a beneficiar mais de 850.000 famílias e será um benefício gerenciado através da Seguridade Social. Ao contrário de outros auxílios, é uma medida estrutural e indefinida.
Será uma rede de seguridade permanente para os mais vulneráveis e o dinheiro investido nessa medida é estimado em cerca de 3 bilhões de euros por ano.
A Argentina é um dos países da região onde se está definido um esquema de renda básica universal. O ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo, informou que esse benefício estará vinculado ao mundo do trabalho.
Afirmou que não está pensando nisso como uma renda básica no "modelo europeu", que não é mais que um problema de renda, mas considera necessário acrescentar a complexidade que a situação argentina demanda: associá-la ao trabalho de quem recebe o dinheiro.
Arroyo sustenta que o problema social argentino não pode ser entendido sem o relacionar ao trabalho, renda e acesso a serviços, e que separar um do outro é um erro.
A base para implementar a renda básica na Argentina está dada nas 9 milhões de pessoas que recebem a Renda Familiar de Emergência, uma medida preparada no início da pandemia para atender setores vulneráveis.
Um documento de pesquisa do Instituto de Pensamento e Políticas Públicas afirma que o poder da renda universal ou da renda cidadã ou de qualquer outro instrumento que permita democratizar a renda ao conjunto da população pode atrapalhar as relações de poder capitalistas.
O economista italiano Andrea Fumagalli explica que a renda como amortecedor e proteção social intervém na redistribuição da renda, uma vez que a riqueza produzida se distribui entre os fatores de produção que contribuíram para sua criação.
A diferença é fundamental para deixar claro que a reivindicação de renda básica incondicional é uma reivindicação social e sindical que afeta diretamente o processo de organização da produção e do trabalho.
Para articular a proteção social a curto, médio e longo prazo, a CEPAL ressalta que, além de implementar medidas imediatas para responder à emergência, é necessário superar desafios operacionais, como a bancarização da população, o preenchimento de registros sociais, atualizá-los e interconectá-los.
A médio e longo prazo, deve ser garantido o exercício dos direitos através do fortalecimento do Estado de bem-estar e da provisão universal de proteção social, da introdução de um sistema de assistência, da implementação gradual e da busca e mecanismos inovadores de financiamento sustentável.
"Em vista das grandes lacunas históricas que a pandemia agravou, a CEPAL reitera que é hora de implementar políticas universais, redistributivas e de solidariedade com uma abordagem baseada em direitos", afirmou Alicia Bárcena.
"Gerar respostas emergenciais, a partir da proteção social, para evitar uma grave deterioração das condições de vida é inevitável na perspectiva de direitos e bem-estar", acrescentou, concluindo que "construir o Estado de bem-estar e sistemas de proteção social universais é chave para evitar mais uma década perdida” na América Latina e no Caribe.
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A Renda Básica Universal na América Latina e no Caribe, uma medida de vida ou morte após a pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU