03 Julho 2020
“Por que não é real um projeto de esquerda para distribuir o trabalho, enquanto os processos de automação se tornam cada vez mais reais? Por que não é real um sindicalismo mais atravessado pelas plataformas do que pelos empregados manuais em declínio? Aceitar a realidade desprezada como requisito para construir a utopia de uma esquerda para frente. O debate está servido”, escreve Mariano Schuster, jornalista, editor da revista Nueva Sociedad, em artigo publicado por Letras Libres, 02-07-2020. A tradução é do Cepat.
Até alguns anos atrás, a intelectualidade de esquerda parecia estar viva, mas seu debate recordava o mundo dos mortos. Parte dela lançava seu mote: “o momento populista”. Enquanto isso, atacava a um bom número de intelectuais (igualmente progressistas) por ter sido “colonizados pela subjetividade neoliberal” e ter cedido à “individualização do pensamento”. Outra porção da intelectualidade de esquerda, por outro lado, demonstrava-se cômoda com a realidade: uma social-democracia de caráter excessivamente liberal pensava uma espécie de “neoliberalismo com justiça”, por trás de um realismo que impunha a si mesma como limite.
Quando alguns desses intelectuais socializaram seu pensamento, as cicatrizes vieram à luz: em sua luta contra o neoliberalismo ou em sua justificação, faziam dois movimentos: jogavam o filho da desigualdade com a banheira da inovação, ou conservavam a inovação e jogavam parcialmente as bandeiras da igualdade. Para alguns (não para todos), o caminho não era para frente.
Era, pelo contrário, ou o puro presente ou o caminho restaurador. Tratava-se de descartar o falso capitalismo especulativo para substituí-lo pelo capitalismo real ou justificar o capitalismo real como a única realidade possível. A comodidade do velho mundo ou a falta de desafios do presente. Populistas e socioliberais tinham algo em comum: escapava deles o futuro. A alguns por ser extremamente nostálgicos, a outros, por ser extremamente realistas.
Personagens como Gilbert Hottois ou Ray Brassier nem sequer apareciam nos debates destes intelectuais. Pensadores como Nick Srnicek eram citados apenas como uma nota ao pé da página para se referir à “renda básica”. Teóricas como Mercedes Bunz - a principal analista da chamada “internet das coisas”- podia ser confundida com a automotora Mercedes Benz, caso mencionada em um texto.
Talvez um dos poucos que desfrutou de prestígio foi Paul Mason, ainda que mais por sua participação em debates políticos conjunturais do que por sua análise sobre o pós-capitalismo. Não se tratava de que a esquerda não pudesse (ou inclusive não possa hoje) discutir boa parte das teorias destes novos pensadores. Tratava-se de que sentia que não eram próprias. De esquerda, pensavam os clássicos intelectuais, são a distribuição, o trabalho, a seguridade social. O capital, a inovação, a tecnologia... são parte do neoliberalismo. Curioso: a esquerda quer distribuir a riqueza, mas se coloca limites para pensá-la.
O historiador e analista argentino Alejandro Galliano se propôs retomar a senda desse “novo pensamento” que reúne “aceleracionistas” e “transumanistas” frente aos “decrescentistas” (ainda que não se oponha a eles de modo absoluto e inclusive reivindique parte de seu ideário). Seu livro “Por qué el capitalismo puede soñar y nosotros no? Breve manual de las ideas de izquierda para pensar el futuro”, publicado por Siglo XXI e Revista Crisis, apresenta um duplo objetivo: por um lado, desenvolver um “mapeamento”das principais tendências teóricas desse pensamento, que ainda é percebido como lateral e, por outro, abordar um paradigma de saída da crise presente.
O mapa da realidade apresentado pelo livro de Galliano tem, pelas características próprias de sua análise, diferenças com outros mapeamentos da atualidade. Embora coincida em sua análise sobre a crise dos anos 1970 e os inícios do thatcherismo, nos anos 1980 – e também, ainda que parcialmente na ampliação de atores no capitalismo dos anos 1990 -, distingue-se por apresentar uma realidade diferente a partir de finais dos anos 1990 e os anos 2000.
Analisa a criação das novas bolhas (os fundos de risco, as ponto com, as contemporâneas startups) combinadas com o chamado capitalismo 4.0 (que considera uma extensão do 3.0, nascido em fins dos anos 1960). Mostra um mundo que, na medida em que avança na coexistência entre plataformas (Facebook, Google, Spotify, Uber, Rappi, Airbnb), algoritmos, digitalização e pobreza, perde a esquerda utópica. É a esquerda que descrevia a multiplamente atribuída frase de Fredric Jameson: “Hoje, é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”.
Diante de um mundo mais complexo que aquele que a esquerda havia conhecido e contribuído para formar, tudo parece perplexidade. Longe do Estado de bem-estar, da Guerra Fria, dos serviços sociais assegurados, da fábrica e a família, a esquerda encontra um mundo que reúne Uber e trabalhadores precarizados, coworking e natureza destruída, freelancers e trabalhadores asiáticos em tempo integral (de muito mais que oito horas).
Nasce, então, o “defensismo”. Tal como expõe em seu livro, “o realismo político e a necessidade de resistir foram encurralando a esquerda e os movimentos populares em formas de mobilização e organização essencialmente defensivas, locais e incapazes de ir além da mera reprodução das condições de vida já precárias dos grupos em luta. Granjas cooperativas, fábricas recuperadas, refeitórios comunitários, centros de estudantes e outras formas emergentes demonstram criatividade e eficácia para deter ou moderar o impacto de políticas impopulares, mas poucas vezes estas estratégias conseguiram avançar para além dos grupos diretamente envolvidos e projetar um futuro alternativo para o conjunto da sociedade”.
O problema da esquerda não é apenas de projeção, mas de projeto. Uma atitude defensiva se coloca, sobretudo, como resposta à ofensiva de sua contraface. Procura salvaguardar “direitos adquiridos”. Mas, entre atônita e perplexa, parece incapaz de modelar um novo contrato. Em boa medida, despreza a inovação, mesmo quando faça usufruto do melhor dela. Neoluditas de redes sociais, ultranostálgicos do Estado de bem-estar (que anseiam mais o velho Estado que o velho e bom bem-estar) e decrescentistas que pretendem distribuir riqueza: um mundo de paradoxos no qual o defensismo combina com a escassez de utopias e com o pranto pela perda delas. Segundo Galliano, aí reside justamente o problema. “O erro de chorar o fim das utopias consiste em continuar buscando-as na política, quando agora nascem no mercado”, afirma.
Longe de uma perspectiva demonizada do mercado (talvez um aspecto em que se distancie de uma parte da tradição marxista que se posiciona moralmente sobre ele), a interpretação de “Por qué el capitalismo puede soñar y nosotros no?” é que é necessário ir exatamente lá para buscar a utopia. Enquanto o mundo político cavalga de distopia em distopia – algo que confirma a ascensão dos Bolsonaro, os Orbán, os Trump –, a esquerda pode tornar seu o sonho distributivo de algo que o mercado inovador produz. Uma esquerda que se anime, segundo o autor, a acelerar estas transformações tecnológicas e a automação.
A trilha pela qual caminha, no entanto, é escorregadia. Como podemos estar seguros de que essa aceleração produzirá um modelo de sociedade de distribuição do trabalho, ampliação da riqueza que permitirá estabelecer salários sociais ou rendas básicas e não um capitalismo de hipervigilância como o implementado por diversos países da Ásia, incluindo a China de Xi Jinping? Guinar a “aceleração” para a esquerda deveria ser, em todo caso, um desafio político.
O “aceleracionismo de esquerdas”, a “utopia realista”, conforme aponta o livro de Galliano, parte de um profundo ceticismo em relação ao humano: somos imperfeitos, mas merecemos algo (mais) perfeito. Já não se trata, como na velha utopia marxista de matriz leninista, de um conflito de classes último que resultará necessariamente – ainda que empurrado pelo desejo e a vontade – na resolução dos principais conflitos humanos.
Trata-se, ao contrário, da combinação da inovação utópica (e por sua vez realista) do capitalismo, da racionalidade do limite e da aposta pela socialização. O barulho das ondas que se escuta por trás do mar bibliográfico e analítico de “Por qué el capitalismo puede soñar y nosotros no?” é este: “nossa capacidade é a de produzir os meios que gerem um horizonte de libertação, mas não de nós mesmos o gerarmos”.
Somos vítimas e vitimários de nossa própria imperfeição. “Realismo”, neste ensaio, não significa só, como nas diversas tradições economicistas, o reconhecimento dos limites materiais, mas a assunção dos limites mentais de nossas aspirações. O reconhecimento da materialidade é indispensável, mas a utopia pode promover outra materialidade possível.
O ensaio de Galliano trabalha a partir de uma zona de perigo para as esquerdas: tenta responder a um problema de caráter ético e político (o da distribuição e até o da “plenitude”) através de uma visão cética em relação ao ser humano e ligeiramente benigna em relação a seus produtos tecnológicos. O ser humano já não salva a si mesmo graças a ele, mas apesar dele. Só se for capaz de levar a automação até o limite, pode conseguir um futuro.
No fundo, há uma vontade leninista sem homem novo. Um “O que fazer?”, mas com o fato. Não se trata tanto de guinar a realidade e mudá-la, mas de a “usar a nosso favor”. É a morte do Marx “humanista” dos Manuscritos e a vida do Marx da inovação impiedosa. Um comunismo que se produz graças ao produto do homem, mas contra ele. Um “humanismo” produzido pelos objetos do homem, mas contra o atualmente humano.
Ainda que discutível a partir de perspectivas liberais e progressistas clássicas, esse é um ponto forte do ensaio. Porque se lança, na realidade, contra aqueles intelectuais que confundiram qualquer inovação com “neoliberalismo”, sem por acaso pensar que do que se tratava era – inclusive em termos marxistas clássicos – de socializar os benefícios de uma inovação que, no presente, produz desigualdades concretas, medíveis e imediatas.
O velho fundamento do socialismo consistia, conforme expressa hoje Branko Milanovic, em “salvar o capitalismo de si mesmo”. Em definitivo, em ser capazes de aproveitar as inovações, aliviando – e se possível banindo – suas desigualdades. Um pensamento deste tipo não se dá bem com o chamado “solucionismo tecnológico”- uma confiança absoluta na técnica como motor de resposta ao conflito social –, mas tampouco com a confusão própria daqueles que consideram que é impossível dividir a esfera da inovação com a da igualdade.
No entanto, o inimigo de Galliano é fundamentalmente outro: uma visão que considera distante não só dos desejos, mas também das possibilidades reais de um projeto futuro, que é uma ideia de comunidade de pobres, mas iguais, um projeto de retorno à natureza, uma utopia muito mais distópica de uma “economia social” sem riqueza. Sua reivindicação é, justamente, o contrário: ampliar a riqueza para combinar o melhor da inovação com o melhor da resistência a ela. Uma economia social para o hedonismo e a criatividade. Se de algo serve a projeção da resistente “economia popular”, não é precisamente para a resistência, mas, ao contrário, para a oferta de outra realidade possível. Mas, é necessário criar riqueza.
Frente a um capitalismo especulativo que parte da esquerda segue denunciando como “irreal”, Galliano pretende demonstrar que essa especulação é, como experiência, uma realidade. As plataformas digitais são reais. Uber é real. Softbank é real. Mercadolivre é real. A bolha financeira é tão real como a Covid-19.
Por que não é real um projeto de esquerda para distribuir o trabalho, enquanto os processos de automação se tornam cada vez mais reais? Por que não é real um sindicalismo mais atravessado pelas plataformas do que pelos empregados manuais em declínio? Aceitar a realidade desprezada como requisito para construir a utopia de uma esquerda “para frente”. O debate está servido.
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Por que o capitalismo pode sonhar e a esquerda não? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU