17 Junho 2020
Raúl Zibechi pesquisa há décadas os processos de resistências, os povos, nações, coletivos, setores populares que lideram lutas contra-hegemônicas na América Latina. Escritor e ativista, dedica-se a compreender as práticas e as estratégias dos de baixo. Em um diálogo virtual que atravessa o continente, do Uruguai à Colômbia, conversamos animadamente durante um pouco mais de uma hora, para olhar e analisar estes últimos 20 anos de política na América Latina. Mas não da política institucional que os governos e os estados fazem, pois essa não interessa muito a Zibechi. Falamos da arte de gerir que é construída pelos povos em seus territórios, em constante resistência com um modelo capitalista neoliberal cada vez mais feroz.
A entrevista é de Berta Camprubí, publicada por Colombia Plural, 14-06-2020. A tradução é do Cepat.
Com a queda de Evo Morales, exceto a Venezuela, os principais governos chamados progressistas da América Latina chegaram a seu fim. Em que medida estes governos lutaram contra as lógicas coloniais, capitalistas, patriarcais e buscaram transformá-las?
Acredito que a maioria desses governos nunca vislumbrou vetar o capitalismo. Diria que nenhum. No discurso, o de Evo e o de Chávez, mas a maioria se dedicou a melhorar a renda dos setores populares, a metade de baixo da população, por meio de políticas sociais de auxílios de diversos tipos, mas não foram além disso. O governo de Lula, o dos Kirchner e o de Mujica e Tabaré se limitaram a melhorar essas condições e, na realidade, aprofundaram o capitalismo.
Em relação ao patriarcado, o governo de Evo foi descaradamente patriarcal, inclusive no declarativo. Alguns destes governos fizeram leis a favor das mulheres, mas de modo algum facilitaram para que as mulheres se organizassem e tivessem mais poder. Colocaram algumas mulheres em espaços de poder, em instituições, algumas em cargos muito destacados, mas isso não tem a ver com o antipatriarcado. Nem sequer esteve no debate que o Estado é uma instituição que faz parte da lógica patriarcal e colonial.
O tema do colonialismo é mais complicado, porque há governos, como o de Evo Morales, que pensou a descolonização da Bolívia e deu alguns passos que, concordando ou não, são interessantes. Ampliou a quantidade de mulheres e homens indígenas em cargos estatais. Inclusive, em certo momento, falou-se em fazer uma mestiçagem entre a justiça comunitária e a justiça estatal, e isso mesmo em vários aspectos.
No entanto, penso que os avanços foram muito limitados porque o governo de Evo foi fortemente repressivo com as organizações sociais indígenas e, nesse sentido, não desempenhou um bom papel. É que a descolonização do Estado não pode ser feita a partir do Estado, porque o Estado é uma instituição também colonial. O Estado na América Latina é um resto da colônia, dos crioulos que sucedem à colônia, mas que de modo algum mudam as relações coloniais. É o colonialismo interno, a colonialidade do poder que Aníbal Quijano mencionava. Indiretamente o que se promoveu foi uma maior autoestima e fortaleza dos setores populares.
Nos últimos 20 anos, quais movimentos ou lutas você considera que conseguiram seguir representando uma resistência ao modelo hegemônico, em contraste com os que, como você mesmo afirma em seus livros, “já não representam um risco porque os sistemas políticos aprenderam a se relacionar com eles”?
Aí no Cauca, na Colômbia, estão justamente as duas dinâmicas: o CRIC [Conselho regional Indígena do Cauca], com certos níveis de burocratização, institucionalização, como também o processo de Libertação da Mãe Terra e as bases do CRIC, porque a direção do CRIC não é a mesma coisa que a Guarda Indígena ou o que o povo coconuko e outras comunidades estão fazendo, cuidando de seu território, fazendo feiras de troca.
Acredito que quando se olha para a “instituição-movimento social”, observa-se uma determinada realidade e as pessoas em seus territórios fazem outras coisas a nível local, lutam contra o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo. Assim como com o CRIC, acontece com o Movimento Sem Terra do Brasil (MST), mas se você vai aos assentamentos do MST verá grupos de mulheres, coletivos LGBTI trabalhando, ali é possível ver algumas dinâmicas muito interessantes para aprofundar a produção própria de alimentos, etc.
Estamos diante de algumas práticas emancipatórias anticapitalistas, anticoloniais, que não são em absoluto marginais. Talvez o zapatismo continue sendo o movimento que de forma mais ampla e generalizada mantém essas práticas, mas nós as encontramos também entre os mapuches, por mais que existam mapuches muito institucionalizados. Podem ser encontradas na autonomia wampis, no norte do Peru, onde há um governo autônomo, entre os movimentos camponeses colombianos que com a pandemia estão fazendo hortas próprias. Depois, temos assembleias territoriais, como em Santiago do Chile e Valparaíso, ou em algumas favelas.
Penso que já não podemos dizer que “o movimento tal” está lutando pela emancipação, não. Hoje, é preciso olhar melhor, porque assim como a burocratização é uma prática que reproduz o patriarcado, o capitalismo, etc., nos movimentos, existem outras práticas que os revertem, de modo que é muito difícil generalizar, exceto o zapatismo, que sinto que é muito homogêneo nesse sentido.
Você explicou várias vezes que a estratégia dos dois passos, “tomar o poder para depois mudar o mundo”, já não funciona. Quais são as principais estratégias atuais das lutas territoriais que você identifica para combater a chamada “guerra contra os povos”, o extrativismo, o desenvolvimento, o modelo neoliberal?
Acredito que há uma primeira estratégia que é básica, sobretudo rural, mas também urbana, que é a recuperação do território. O território é um primeiro passo fundamental, por isso os povos originários, os camponeses e algumas periferias urbanas, que possuem certo território, estão em uma posição melhor. E veja que interessante quando observamos até mesmo nas cidades como setores do movimento feminista começam a se territorializar. Em Santiago, você tem uma rede de abastecimento de algumas assembleias feministas. Essa territorialização é uma estratégia de longo alento, que se enxerga nos zapatistas, nas curdas, nos Sem Terra, e é fundamental.
Um segundo elemento, para mim, é trabalhar para a autonomia. Buscar autonomia no terreno da alimentação, da água, da justiça. As mulheres precisam de seus próprios espaços autônomos. As zapatistas, por exemplo, em cada comunidade têm suas hortas, seus cafezais, seus galinheiros, para não ter que ir pedir ao varão, ao marido, à autoridade. É fundamental que não se construa Estado e que se dependa o menos possível ou nada do Estado e que as instituições que são criadas para resolver conflitos ou para poder avançar não sejam réplicas do Estado, por isso falo em construir poderes não estatais.
As Juntas do Bom Governo em Chiapas e inicialmente os cabildos na Colômbia eram poderes que não eram uma fotocópia das lógicas do Estado, mas, no caso da Colômbia, veio a constituição de 1991 com uma enxurrada de recursos e então se tende a reproduzir nos cabildos a mesma lógica vertical do Estado e um de suas chaves é a burocracia.
Nas comunidades é mais fácil que exista um rodízio para neutralizar essas lógicas hierárquicas e é preciso deixar claro que na América Latina qualquer hierarquia é colonial e é patriarcal e abre as portas para reproduzir o capitalismo em vez de transformá-lo. As práticas hierárquicas, assim como o Estado, são a principal via de entrada do capitalismo.
Em definitivo, território, autonomia e práticas comunitárias que impeçam a cristalização de hierarquias.
Então não fazem sentido as mobilizações que se centram em demandas ao estado?
A manifestação começou sendo um desfile da classe operária, reproduzindo em seus âmbitos a liturgia eclesial ou o desfile militar, para exigir do Estado ou patrão certas demandas. Mas há outros tipos de manifestações: a ‘minga’, de 2008, na Colômbia, não é a clássica manifestação, teve duas partes. Por um lado, a ‘minga’ que passa pelos engenhos açucareiros caucanos, que se relaciona com os estudantes e outros setores e que, finalmente, chega a Bogotá em uma aliança dos de baixo, protegida pela Guarda Indígena. Esta é uma lógica.
Outra lógica é que nesta mesma ‘minga’, por outro lado, também se abre uma aliança com o Estado, a negociação com o Estado para pedir um assento a mais no parlamento ou para certas demandas monetárias. Então, vemos que há dois sentidos na mobilização e eu fico com a ‘minga’ que ocasionou a formação do Congresso dos Povos.
Em seu livro, afirma que “os pobres da América Latina estão sofrendo um genocídio”. Em que medida a população dos países europeus, a classe média branca, tem certo grau de responsabilidade nesse genocídio? E o que deveria fazer, qual seria uma solidariedade internacional ou uma justiça global real?
Pode fazer apenas duas coisas. A primeira, praticar solidariedade que quer dizer perguntar: “o que você precisa?”, que se viu muito em Chiapas e houve alguns conflitos muito fortes porque, como dizia García Márquez, “nos chega um sapato de salto alto, rosa e de um pé só na selva”, um pouco ironizando a política das ONGs que dizem “tem isto”. Mas a verdadeira solidariedade é perguntar: “como povo, o que precisam?”. “Precisamos instalar uma rádio comunitária” ou “precisamos ampliar um centro de pesquisa”, e são juntados recursos para isso.
A outra maneira de ajudar é fazer a revolução na Europa, mas isso está muito longe. Mas acredito que a partir de 2008 houve algumas mudanças. Eu sempre digo aos catalães, por exemplo, que o melhor que podem fazer por nós é que, em vez de existir um Can Masdeu ou um Can Batlló – centros sociais autogeridos na Catalunha -, que existam 200, então, aí sim, a independência teria um sentido de autonomia, de revolução, de mudança social. Mas se existe apenas um Can Masdeu, e uma cooperativa por lá, não funciona. Se existissem 1.000 espaços desses, a relação de forcas seria muito diferente.
Acredito, sim, que estamos em condições de mudar não mais para a solidariedade da Europa com a América Latina, porque a solidariedade é sempre uma relação sujeito-objeto, ao contrário, estamos em condições de fazer encontros, entre iguais, onde cada um contribua de seu lado. Eu acredito que esse é o caminho e isso é muito importante porque na medida em que existam cada vez mais Can Batllós, Can Masdeus e Comunals, mais experiências das quais também possamos falar em processo de territorialização, já estaremos em outro lugar. Meu desejo é que caminhemos nessa direção.
Também afirma que “estamos nas primeiras fases de uma profunda ruptura com o pensamento eurocêntrico”. As últimas mobilizações massivas no Chile e Colômbia tiveram um pouco desse aspecto, mas, por exemplo, na Bolívia também ocorreu o contrário. Em nível de massas, os centros comerciais estão cheios e a maioria tem um celular Android. Por onde chega essa ruptura?
Acredito que essa ruptura chega por vários lados. Primeiro, por sustentar práticas não capitalistas: como as feiras de troca que os coconukos realizam no Cauca, a troca de produtos de terras frias e terras quentes, onde não são trocadas equivalências, não se troca um quilo por um quilo, são permutadas necessidades, não valores de troca, mas valores de uso. No povo misak, por exemplo, quando se decide a ‘minga’ interna, muitas comunidades vão às lagoas, vão às montanhas e desenvolvem uma espiritualidade com base em sua cosmovisão.
O pensamento anticolonial ou decolonial não é um intelectual escrevendo sobre anticolonialismo, não é um livro que fale em descolonizar que se mantém na mesma lógica colonial da centralidade da escrita. A tulpa – espaço sagrado de alguns povos indígenas caucanos -, o fogão, o ritual na lagoa, etc., e no caso dos afrodescendentes, o tambor e a dança são práticas decoloniais, devem ter uma integridade com o corporal. A prática decolonial é múltipla. O discurso vai muito bem, mas e o corpo, a ritualidade, a sacralidade? E a dança e o amor ou a relação com a Mãe Terra, onde ficam?
Em segundo lugar, não há descolonização sem conflito, sem choque de culturas. Pode parecer que o patriarcado se resolva apenas dizendo “as e os”, mudando o discurso, despatriarcalizando. Mas não, é muito mais profundo e implica redimensionar as relações a partir do corpo individual, o corpo coletivo e o meio.
Houve uma tendência a governos de esquerda, entre 2000 e 2015, na América Latina. Parecia que, desde então, passava-se a uma tendência a governos (ultra)conservadores populistas (Bolsonaro, Piñera, Macri, Duque, Moreno...), mas isso já foi revertido tanto na Argentina como no México. Em sua opinião, qual será a dinâmica dos próximos anos nas instituições públicas da América Latina?
Dito brevemente, a dinâmica para mim é que já não há estabilidade, já não há uma forma de governo estável de direita ou governo estável de esquerda. O que predomina no período atual é a ingovernabilidade e haverá governos de direita e governos de esquerda sucessivamente e todos com graus de instabilidade muito grandes, como esta acontecendo com Bolsonaro, no Brasil, e com o próprio Duque, que tem uma situação interna bastante forte. Não estamos mais em um período de governos progressistas ou de governos conservadores, estamos em um período dominado pela crise de governabilidade.
As revoltas do período que você nomeia como revolução mundial de 1968 foram seguidas, na América Latina, por ditaduras sanguinárias, do Plano Condor. Como acredita que será a resposta às revoltas contemporâneas, do “Vem pra rua” do Brasil, em 2013, às mobilizações de 2019, no Chile e na Colômbia?
Com a revolta de junho de 2013 no Brasil, que foi a mais importante da região porque foi no país mais populoso e foram 20 milhões de pessoas às ruas, durante um mês, em 353 cidades, o que ocorreu é que a esquerda, o Partido dos Trabalhadores (PT), não compreendeu o que estava acontecendo. Pensou que era contra eles e era contra eles, mas não somente, foi um levante contra a desigualdade. Nem o PT, nem a Central Única dos Trabalhadores, nem o Movimento Sem Terra compreenderam e então reagiram defensivamente, não estiveram nas marchas e deixaram o campo livre para a direita. Recordemos que isso começou com o Movimento Passe Livre.
Com o aumento do preço do transporte público, como no Chile recentemente.
Exato, começou de baixo e ao se deixar o campo para a direita, esta se somou e utilizou o movimento em benefício próprio. Então, o grande problema não é a direita, a responsabilidade está na esquerda que em vez de se colocar na cabeça dessas mobilizações, assustou-se e quando emerge a luta social, e assim acontece no Chile e na Colômbia, a esquerda não desempenha qualquer papel, a esquerda se evapora. De modo que você encontra uma esquerda que teme a mobilização social porque não a controla, porque a coloca de lado.
Então, a resposta é múltipla: crise das esquerdas, avanço da direita e, sobretudo, mais e mais poderosa repressão.
Por não mencionar os tempos que vivemos, que aprendizagem a região latino-americana leva da pandemia de coronavírus? E o que acredita que vem?
Acredito que caminhamos para uma polarização social cada vez maior, para uma sociedade que caminha claramente em duas velocidades. Os movimentos ou os processos de luta estão se fortalecendo e, ao mesmo tempo, a direita também está se fortalecendo. A polarização consiste em que a direita traz mais extrativismo, mais militarização – e avançam com uma importante legitimidade social –, mas os movimentos também estão fortes.
O cenário para o qual nos dirigimos é a um choque cada vez mais perigoso. Por isso, eu acredito que os movimentos, não apenas precisam recuperar terra, como estão fazendo agora no Cauca, mas, além disso, precisam estar com a cabeça direcionada ao terremoto que vem sobre eles, mais repressão e mais violência. Acredito que esta será a vereda pela qual caminharemos nos próximos anos.
Agora, o positivo da pandemia é que mostra que o estado-nação não serve para nada, que é um obstáculo para a emancipação e para os movimentos e que não podemos confiar nas instituições estatais. Além disso, a pandemia pode conseguir enterrar definitivamente a esquerda eleitoral (isto é mais um desejo que uma realidade), e me refiro aqui aos PSOEs e aos PODEMOS.
Mas isso pode significar um fortalecimento da extrema direita.
Sim, na parte de cima a extrema direita pode se fortalecer, sem dúvida. Mas a briga seria, então, com o povo organizado.
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“Já não há uma forma de governo estável de direita ou de esquerda na América Latina”. Entrevista com Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU