04 Junho 2020
A ambientalista e primogênita do líder Chico Mendes alerta para o abandono dos povos tradicionais do Acre, que precisam sair do isolamento social para buscar auxílio emergencial e alimentos.
A entrevista é de Bruna Mello, publicada por Amazônia Real, 02-06-2020.
Imagem do amanhecer no Seringal Cachoeira, em Xapuri. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Com casos confirmados e suspeitos de coronavírus, as comunidades das Reservas Extrativistas (Resex) Alto Juruá e Chico Mendes, no Acre, temem pelo pior. As populações tradicionais da floresta estão sendo obrigadas a se locomover até às cidades ou municípios vizinhos em busca do auxílio emergencial de R$ 600 e das aposentadorias e até mesmo para a compra de mantimentos; as invasões por garimpeiros, caçadores e madeireiros não cessaram. “Infelizmente, a Covid-19 chegou na floresta”, diz a ambientalista e filha de Chico Mendes, Angela Maria Feitosa Mendes.
A chegada da pandemia, que já seria preocupante, traz junto a incerteza, porque não existem números oficiais do contágio para as Resex. Os casos confirmados estão sendo contabilizados pelos municípios que compreendem cada região.
Só na Resex Alto Juruá vivem mais de 8.000 moradores entre tradicionais, não tradicionais e indígenas. Na Resex Chico Mendes, são cerca de 3.000 famílias. Segundo o boletim epidemiológico da Secretaria Estadual de Saúde do Acre, desta segunda-feira (01), o número oficial de pessoas contaminadas é de 6.326 no estado. Já o número de óbitos por Covid-19 é de 161.
A filha mais velha do líder ambientalista chegou a participar dos corajosos “empates”, nos anos 1980, quando seringueiros e suas famílias se davam as mãos em torno das árvores para evitar a derrubada da floresta. Agora, Angela trava uma luta para acompanhar o dia-a-dia das comunidades tradicionais por meio do Comitê Chico Mendes. Com o isolamento social, ela tem de recorrer a programas de rádio com grande alcance para saber como está a situação em locais remotos. Sem ajuda do governo federal, a ativista alerta ainda para o início da temporada das queimadas. “Os problemas respiratórios tendem a se agravar e o nosso sistema de saúde está entrando em colapso. Tenho muito medo do que pode acontecer daqui para frente”, afirma Angela, que concedeu a seguinte entrevista exclusiva:
Angela Mendes. (Foto: Arquivo Pessoal)
Como a senhora acha que o coronavírus chegou na floresta?
Os moradores estão indo para a cidade para comprar alimentos. Esse é um dos gargalos que a gente acabou percebendo. As pessoas não estão mais produzindo seu alimento, como arroz, feijão, milho. Estão consumindo muita coisa da cidade. Isso, agora, é um fator que agrava muito a situação porque elas têm que se deslocar para a cidade para comprar alimentos e sacar esse auxílio emergencial, benefício, aposentadoria e outros. Tem um outro fator. As pessoas da cidade estão se deslocando para as reservas procurando essa proteção natural da floresta. Só que corre esse risco de levar o vírus para lá, assim como os infratores, às pessoas que estão desmatando, os garimpeiros, as pessoas que caçam de forma ilegal.
Como observa a postura dos governos federal e estadual com relação ao cuidado com os povos tradicionais da floresta nesse momento de pandemia?
Essas pessoas não estão tendo nenhum apoio do governo. Claro, esse governo que está aí não está preocupado com a vida das populações tradicionais da floresta. Esse auxílio emergencial é mais para dar satisfação para a sociedade do que para, de fato, ser um instrumento eficaz na minimização do impacto do coronavírus. Foi algo feito em cima das coxas, como a gente diz aqui, sem pensar na diversidade desse País, sem pensar em todas as populações que formam o Brasil. Como as pessoas que moram na floresta vão acessar um benefício que tem que ser feito pela internet? Há municípios que sequer têm agência da Caixa, e as pessoas têm que se deslocar para outros municípios, correndo mais risco ainda. Até agora, não foi feito um plano de contingência para essas populações.
Qual é a sensação de ver esse descaso oficial?
Não percebemos orientações de nenhum tipo, nenhum movimento de nenhum governo, tanto federal como estadual. Parece que essas pessoas não existem neste momento. Mas elas existem, são muitas e precisam de respeito.
Como está sendo feito o monitoramento de casos confirmados e suspeitos nas reservas extrativistas do Acre?
A maioria das lideranças está isolada em suas comunidades. Se esses casos forem registrados, é no município. Ou seja, entra na estatística do município. Você só saberá se alguém foi infectado na reserva, se fizer contato com alguém da reserva porque quando entra nas estatísticas vai para conta do município. O comitê Chico Mendes tem essa preocupação, por isso estamos em contato com as rádios que têm alcance nesses locais. Estamos acompanhando se estão passando as informações corretas ou insuficientes, para que as pessoas possam se cuidar. Nós, do comitê, também estamos ajudando com o cadastro do auxílio emergencial para aquelas pessoas que não têm auxílio da internet, ou que não conseguem lidar muito bem com aplicativos.
O período de estiagem e queimadas na Amazônia já começou. Qual o cenário imagina para este ano de pandemia?
É preocupante porque estamos em um momento muito delicado, que é o período de queimadas. Nesse momento, os problemas respiratórios tendem a se agravar e o nosso sistema de saúde está entrando em colapso. Tenho muito medo do que pode acontecer daqui para frente. As lideranças estão preocupadas com as pessoas que estão chegando nas reservas porque, muitas vezes, são assintomáticas. Vão na intenção de se cuidar e acabam levando risco para a floresta. É difícil a situação nesse momento. Precisamos reconhecer, de fato, que essa pandemia trouxe à tona uma série de desafios. Os dados apontam que o desmatamento cresceu assustadoramente de janeiro a abril deste ano, em comparação ao mesmo período do ano passado. Desde que esse governo assumiu, o desmatamento está crescendo ano a ano. Esse ano com certeza não vai ser diferente. Já tem pessoas queimando na região de reservas e até nas cidades, e a situação tende a se agravar.
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“Infelizmente, a Covid-19 chegou na floresta”, diz Angela Mendes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU