18 Mai 2020
Existem os sinais da tormenta e os da aurora. Portanto, é uma verdadeira crise. Ao povo sem nome, é anunciado o Evangelho do Pai.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado em Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 15-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Naquele tempo, havia um edito do governo segundo o qual ninguém devia se beijar. Certas regiões haviam enviado os doentes para fora dos seus hospitais, e os mortos, para outros cemitérios. E havia também uma pequena concordata entre Estado e Igreja, como prova de que ninguém queria limitar a liberdade de culto. Ela ditava minuciosas normas sobre a celebração das missas: estas, como era sabido pelos contratantes, são o modo simbólico (e, para os teólogos, também real) no qual se representa aquela ceia em que o Senhor Jesus partiu o pão, distribuiu-o aos seus discípulos e lavou os seus pés.
Mas, com as regras de hoje, e para que o símbolo mantenha a sua verossimilhança com o evento, seria necessário que Jesus tivesse falado através da máscara, tivesse partido o pão com luvas, não o tivesse dado nas mãos, mas sim deixado cair nos pratos dos Doze, tivesse se esquecido de derramar o vinho, tivesse lavado os pés dos apóstolos a distância, talvez com uma esponja comprida ou, melhor ainda, que não os tivesse lavado.
E, quanto a Leonardo da Vinci, ele teria que pintar uma mesa de 13 metros de comprimento, um para cada comensal, ou mais, se qualquer outro hóspede tivesse sido admitido na ceia.
Basta isso para dizer como aquele devia ser um tempo totalmente extraordinário ou, melhor, de profundíssima crise. Com efeito, havia – roubando para si toda a cena – a crise sanitária provocada pela pandemia. Mas havia também a crise de todo o sistema global que a havia provocado e agravado, a crise do dinheiro acreditado como onipotente, mas prisioneiro de outros escopos que não o do bem comum e de outras pessoas que não as que, com o esforço e o trabalho, o multiplicavam sobre a terra.
E havia uma crise na Igreja, porque nunca se havia visto um Evangelho revelado todas as manhãs ao mundo desde Santa Marta, um Evangelho que já se pensava sabido e mais do que sabido, e que, em vez disso, chegava como novo, como um “furo jornalístico”. E, para muitos na Igreja, esse parecia ser um discurso duro demais, a ponto de não se querer se envolver nele, ou mesmo a ponto de querer ir embora dele, ou talvez, em vez de ir embora, de se enfurecer com os seus ataques e destruí-lo.
Portanto, um tempo de crise. Mas talvez também fosse o tempo de outra cronologia, o tempo esperado, o tempo prometido em que tudo mudaria, um princípio de vida nova não mais circunscrito ao templo de Jerusalém, nem retido nos seus muros, nem aprisionado pelo seu muro pós-humano e pelos mil outros muros de separação espalhados pelo mundo.
O tempo é este, dissera Jesus à Samaritana, o tempo é este, estava escrito no cabeçalho do site Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, e essa era a profecia de toda a Igreja.
Portanto, se dois tempos se cruzavam, o esperado e o da crise, até mesmo os sinais do tempo pareciam contrastantes, sinais de tormenta e sinais de aurora.
Mas, se realmente esse era um tempo tão especial, um tempo duplo, um tempo de mudança de época, era necessária uma resposta extraordinária para acolhê-lo, para trabalhá-lo, para vivê-lo. E, para enfrentá-lo, era necessária uma Igreja profundamente renovada, como nunca havia sido pensada depois do tempo das origens.
Ela havia crescido e havia assumido a fisionomia atual em outra época, chamada de “cristandade”, que já havia acabado ou, melhor, havia se aposentado. A reforma de que ela precisava ia muito além do casamento dos padres e dos ministérios femininos, mas, nesse estado de coisas, a Igreja não podia fazer isso.
Para concluir a obra, devia ser o pontificado e a Igreja de Francisco, em continuidade com o Concílio.
Mas o Papa Francisco, enquanto realizava a reforma mais radical, que é a publicação do Deus ainda inédito, na redescoberta transfiguradora da pessoa do Pai, explicou desde Santa Marta que, dentro dessa crise, da Igreja e do mundo, não era possível fazer as mudanças que também se gostaria de fazer.
Como diz um provérbio da sua Argentina, “quando passar por um rio, não troque de cavalo”: em tempos de paz, é possível fazer milagres, como dizem os Atos dos Apóstolos, mas, quando há uma crise e as pessoas não aguentam as palavras de vida e querem ir embora, a ponto de Jesus perguntar aos apóstolos se eles também queriam ir embora, não se deve desafiá-la com a necessária descontinuidade.
Mas, então, se não era a Igreja e nem mesmo as religiões estabelecidas que podiam fazer a mudança naquele tempo de crise, quem deveria e poderia fazer isso, para que o tempo novo enchesse as velas?
Era o mundo que devia fazer isso, ele era o sujeito da libertação, a humanidade inteira, o povo de Deus na sua dimensão mais ampla que abraça toda a Terra.
Esse é o povo amado pelo Pai e chamado à salvação, o povo de Deus, dentro e fora das Igrejas, de toda denominação e sem denominação. É o vasto povo do mundo que não têm um nome próprio que o distinga, como o dos gregos ou dos espanhóis, porque o seu nome seria o de Deus, mas o nome de Deus não pode ser expressado em termos humanos.
Por isso, os muçulmanos invocam os 99 belos nomes de Deus, mas não chegam ao último. Por isso, no judaísmo, ele está oculto no tetragrama sagrado. Por isso, no cristianismo, não há outro nome acima do nome de Jesus, porque o nome Deus é o seu próprio ser, “Eu sou”. Por isso, não se pode nomear o nome de Deus em vão, para que ninguém possa se apropriar dele para se distinguir dos outros. Não pode ser dividido. É possível ser budista, confucionista, animista, maometano, até mesmo cristão, mas, com o nome de Deus, ninguém pode se diferenciar. A túnica não se divide.
Mas de que modo o povo de Deus, que é a humanidade inteira, podia e pode se tornar protagonista do advento do tempo novo?
A fórmula é simples: convertei-vos e crede no Evangelho, é o convite dirigido por Jesus às multidões no início da sua pregação. Mas que Evangelho? Para nós, os Evangelhos são os quatro bem conhecidos, de Marcos, Mateus, Lucas e João, mas há também um quinto Evangelho, o Evangelho de Jesus. Naturalmente, é o mesmo Evangelho, e o de Jesus está contido e também escondido nos outros quatro
Mas há uma diferença: os quatro evangelistas falam de Jesus, e estes são os pilares sobre os quais a Igreja está construída; o quinto Evangelho, o Evangelho de Jesus fala do Pai, e, mesmo quando fala de si mesmo, ele faz isso para mostrar o Pai e o revela, faz-se a sua exegese como Pai e pastor de todos, sem discriminação de língua, de religião ou de pecado.
O Evangelho de Jesus, portanto, é um Evangelho não denominacional, e todos os povos da Terra podem realmente se converter a ele: paternidade, fraternidade, graça de Deus, tudo, tudo, como dizia o Papa João XXIII no seu discurso da lua. E paz, mansidão, serviço aos pobres, pão partido, trabalho não escravo. E como pastores, diz Francisco, não apenas os ministros do culto, mas também os médicos, os governantes e as mulheres, o elo mais alto da conjunção entre ser humano e natureza.
O Papa Francisco está na encruzilhada desses processos: conversão da Igreja no renovado anúncio do Evangelho de Jesus sobre o Pai e conversão do mundo na abertura ao Evangelho narrado por Jesus, mesmo sem conhecê-lo ou talvez descobrindo nos cristãos a sua memória ao partir o pão.
Talvez nisso consista o mistério de Bergoglio. Nos tempos do Vaticano II, falou-se de um “mistério Roncalli”, porque, sem nunca ter pensado nisso antes, ele havia convocado o Concílio para renovar a Igreja. Agora, o “mistério Bergoglio”, a sua missão como papa, parece ser a de renovar o mundo.
Nisso está a verdadeira continuidade com Francisco de Assis. Francisco teve a visão de que deveria restaurar a Igreja. Foi interpretado que deveria restaurar a Igreja de São Damião, depois que deveria restaurar a Igreja romana. Mas ele não entendeu dessa maneira; o seu verdadeiro horizonte foi o serviço a todas as criaturas, foi a restauração do mundo, também em nome de um Evangelho, aquele quinto Evangelho, ao mais desconhecido. Por isso, despojou-se das armas da cruzada e, por isso, foi ao encontro do Sultão. Depois disso, “paz e bem” foi o desejo que saiu de milhões de bocas.
O Papa Francisco está nessa linha de sucessão. Ele prega o Evangelho de Jesus, ou seja, o Evangelho no Pai; gostaria de dizer, se as soubesse, as palavras ditas no caminho de Emaús, quando era Jesus quem explicava as Escrituras aos discípulos.
E, ao fazer isso, ao mesmo tempo, indica e promove a restauração do mundo. Na justiça. É como se respirasse com dois pulmões, o do povo da Igreja e o do povo do mundo, a diástole e a sístole de um único coração, do qual procede uma única respiração; a Igreja dos santos, dos requerentes de asilo no Reino e a de todos os seres humanos, a verdadeira Igreja.
Será essa a nova “cristandade”, que não terá esse nome ou, melhor, não terá nome algum, porque não se pode possuir nem dividir o nome de Deus? Porque a secularização é irreversível.
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Naquele tempo. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU