13 Mai 2020
"A crise sanitária essencialmente acelerou os processos já em andamento desde os últimos anos da presidência de Obama nos Estados Unidos e da rocambolesca continuidade do governo de Merkel na Alemanha, marcada pela crise migratória. De fato, tal aceleração implica a fragmentação geopolítica da ordem mundial, que parece cada vez mais se delinear como um mundo multipolar, uma tese que confirma cada vez mais o fato de que qualquer estímulo sistêmico à economia europeia só pode vir de dentro dela. Portanto, trata-se de questionar e sondar as relações entre a fragmentação da ordem geopolítica e a reorganização global das cadeias de valor, que serão cada vez mais reestruturadas de acordo com o vetor da relocalização e segundo lógicas bilaterais", escrevem Anaïs Voy-Gillis, doutora em Geopolítica pelo Instituto Francês de Geopolítica, e Edoardo Toffoletto, doutorando em Música, História e Sociedade na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em artigo publicado por Business Insider Italia, 12-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao contrário da guerra, o vírus não destrói o estoque de capital fixo, mas no máximo, como definiria o jovem Karl Marx, o capital vivo: o trabalho humano, que é o componente imprescindível de qualquer sistema econômico, para que possa continuar seu ciclo de produção e consumo, bem como a única fonte de autêntica inovação.
De fato, como muitos analistas confirmam, é ao mesmo tempo uma crise de oferta e de procura, cuja condição de possibilidade é a própria vida do ser humano. “Na guerra, jovens e adultos capazes se apresentam na linha de frente, não ficam em confinamento doméstico junto com seus velhos. Cidades e infraestruturas são pulverizadas, enquanto hoje continuam intactas. O estoque de capital está inteiro, quase sem cortes", escreve Lucio Caracciolo no editorial do Limes, em abril, e continua: "já faz algum tempo que as guerras não são mais declaradas, são travadas. Por isso, talvez, os nossos líderes a declarem agora, que não a estamos travando".
Thierry de Montbrial, presidente do Ifri, definia essas como uma questão de estilo entre a retórica francesa e alemã ao enfrentar a crise sanitária: uma atitude marcial aquela do presidente da République Emmanuel Macron, e também uma postura olímpica de prudência e contemporização a da chanceler Angela Merkel. De fato, em 28 de abril, no Eurointelligence, havia um alerta que, apesar da retórica de Plano Marshall, que parece estar se multiplicando, como se toda profissão exigisse um seu próprio plano para sua cadeia de suprimentos, deve ser excluída qualquer possibilidade de ser o produto de uma coordenação multilateral. Também se corrobora a afirmação de Lucio Caracciolo: ao contrário do segundo pós-guerra, nossas economias não foram aniquiladas - “as infraestruturas e os mercados ainda são operacionais, os fluxos financeiros não pararam. No entanto, estamos enfrentando uma reestruturação dos nossos sistemas econômicos. As cadeias de valor foram interrompidas e a demanda foi concentrada durante a contenção sobre os bens de primeira necessidade. O como e quando da recuperação da demanda e da oferta após a contenção determinarão a taxa de default e de economias que testemunharemos. Nesse interstício, o papel do poder público será definido. E não virá de fora da Europa".
Nestas páginas tentamos recentemente mostrar que essa crise sanitária essencialmente acelerou os processos já em andamento desde os últimos anos da presidência de Obama nos Estados Unidos e da rocambolesca continuidade do governo de Merkel na Alemanha, marcada pela crise migratória. De fato, tal aceleração implica a fragmentação geopolítica da ordem mundial, que parece cada vez mais se delinear como um mundo multipolar, uma tese que confirma cada vez mais o fato de que qualquer estímulo sistêmico à economia europeia só pode vir de dentro dela.
Portanto, trata-se de questionar e sondar as relações entre a fragmentação da ordem geopolítica e a reorganização global das cadeias de valor, que serão cada vez mais reestruturadas de acordo com o vetor da relocalização e segundo lógicas bilaterais.
Como tentamos demonstrar em várias ocasiões, isso nada mais é do que a revelação de lógicas que operam há décadas, apesar da retórica da globalização. Obviamente, a novidade é o vetor de relocalização causado pelas repercussões econômicas e simbólicas mundiais da má gestão chinesa do vírus, essencialmente por falta de transparência, como foi discutido nestas páginas por Mattia Sisti.
Até que ponto a solução para a fuga tendencial das empresas da China pode ser a simples relocalização? Mas, acima de tudo, como as empresas terão que reagir a essa reorganização das cadeias de valor? Como se perfilará a relação entre estados e economia?
A aceleração desses processos inegavelmente implica a necessidade de uma reação mais rápida, tanto das empresas quanto dos atores privados, dos estados em geral e, no que nos diz respeito, dos estados europeus. No entanto, como nos garante Paul Maurice em um editorial do IFRI, a solidariedade transfronteiriça assistencial - entre França e Alemanha, mas também entre Itália e França, ou Itália e Alemanha - de suprimentos médicos e leitos de terapia intensiva para conter a pandemia, revela-se cada vez mais um paliativo para adiar a decisão fundamental sobre as verdadeiras questões, como a reforma do BCE e a decorrente produção de uma verdadeira dívida europeia.
Somente a decisão resoluta sobre essas questões pode dar origem a um processo virtuoso a nível europeu que permita a todos - juntos – para além de pobres e ricos ou virtuosos e viciosos, cigarras ou formigas, construir outra Europa adaptada às exigências de cada um.
Como se isso não bastasse, apesar da tão elogiada solidariedade, os austeros juízes de Karlsruhe, relata Vittorio da Rold nestas páginas, decidiram sinalizar os limites intransponíveis do BCE: tudo bem para o quantitative easing, desde que não exceda a participação do BCE em cada Estado-membro, caso contrário, o Bundesbank deixará de participar na compra de títulos. O casus belli é obviamente a Itália: teria uma participação de 17%, mas o BCE até hoje comprou títulos num montante de 40%. Em comparação com as tímidas aberturas sinalizadas pelo acordo sobre o Recovery Fund, essa decisão é o sintoma de um dramático passo para trás e, ao mesmo tempo, uma confirmação do ressurgimento da raison d'état, na Europa, infelizmente, muito voltada sobre os próprios interesses nacionalistas bairristas. Em outras palavras, é o triunfo da pequena política. Hoje, porém, mais do que nunca, a Europa precisa de um impulso visionário capaz de se traduzir em realidade.
A Europa na metamorfose do comércio mundial O verdadeiro mistério será o papel da China. Antes do vírus, o equilíbrio mundial parecia se estabelecer na polaridade imperfeita entre os EUA e a China, pois era sempre instável e cheia de tensões e aberta à interação conforme geometrias variáveis com os outros grandes atores geopolíticos mais ou menos proativos, da Rússia à Europa, mas também o Japão, a Índia e o grande continente africano, dos desafios geopolíticos atuais e futuros. Como Alessandra Colarizi relata no China-Files, a China, juntamente com as outras grandes potências, Rússia e EUA, se manteve distante da captação multilateral de fundos lançada pela UE para enfrentar a pandemia relançando formas multilaterais de cooperação.
Esse é um sinal inequívoco dos tempos.
Devem ser lembradas as grandes declarações chinesas - nas sedes dos fóruns internacionais de comércio e economia - de querer apoiar o multilateralismo, porque parecem à luz dos fatos, um grande flatus vocis: a China até agora depositou apenas 50 milhões à OMS, quando a Itália em um único dia se comprometeu com 140 milhões, para estimular a pesquisa sobre a covid-19. Mas não é só isso. Agora, o ceticismo em relação à governança chinesa tem e terá impactos significativos no desenvolvimento da estratégia geoeconômica da Belt and Road Initiative.
No entanto, nesse contexto, a China certamente tentará tirar proveito da desorientação geral. Diante da queda de sua própria demanda interna, jogará tudo tentando estimular seu crescimento através dos mercados estrangeiros: certamente mediante agressivas medidas através de seus fundos de investimento público em empresas e grandes grupos ocidentais - especialmente europeus - para adquirir suas tecnologias e ideias inovadoras. Os grupos industriais chineses atacarão igualmente os mercados nos quais ainda estão ausentes ou, de qualquer forma, pouco presentes na Europa, como aquele nevrálgico dos carros elétricos, como é o caso da Noruega, em que o grupo chinês BYD anunciou que nos próximos meses começará a vender seus próprios carros elétricos, de acordo com a divulgação do Le Monde de l'énergie.
Enquanto a Europa não modificar suas regras antitruste para criar campeões europeus, que necessariamente possuem um monopólio relativo no mercado europeu, será um alvo fácil da infiltração geoeconômica por parte da China. De fato, não basta proteger as próprias indústrias: também é preciso torná-las competitivas no mercado, garantindo melhor qualidade a um preço acessível.
Para esse objetivo, às vezes, a construção de monopólios europeus, não nacionais, pode ser uma solução. De fato, ao se olhar nos bastidores do duopólio franco-alemão, pode se perceber como a França e a Alemanha – poderosas internamente – se encontrem desorientadas diante das metamorfoses da ordem mundial e, ainda assim, cada uma delas persiste obstinadamente em sua própria estratégia, revelando também a incapacidade de se sincronizar em um percurso comum.
Nos bastidores do teatro europeu: as condições do tecido econômico francês, a irrupção do coronavírus foi sinônimo de múltiplas interrupções nas cadeias de suprimentos e ressaltou a dependência do sistema produtivo da França. Portanto, numerosas propostas e reflexões sobre a necessidade de relocalização de muitas atividades de produção foram manifestadas pela opinião pública francesa. Além disso, durante o período de contenção, afirma Thierry de Montbrial, mais de 50% do sistema de produção francês parou completamente.
No entanto, essa situação de dependência é o resultado de uma escolha que tornará as potenciais relocalizações ainda mais complexas. De fato, o tecido produtivo francês foi consideravelmente minado por quarenta anos de desindustrialização e ainda mais afetado pela crise econômica de 2008. Nos anos 1980, foi feita uma escolha mais ou menos implícita para moldar a sociedade de acordo com um modelo pós-industrial. Numa lógica de redução de custos, as cadeias de valor foram fragmentadas: atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), de marketing e distribuição foram mantidas na Europa e os segmentos intermediários da cadeia, considerados pouco lucrativos, foram levados para fora. Como resultado, a produção foi em grande parte deslocalizada para outros países, especialmente para a Ásia.
Até 2018, na França, havia uma empresa de máscaras, com uma capacidade de produção anual de 220 milhões de unidades, que acabou sendo fechada pelo grupo estadunidense Honeywell, ao qual pertencia, por falta de demanda. O próprio estado francês comprava máscaras fora da Europa para seus hospitais. E agora sofre dramaticamente por essa carência. A tal ponto que planeja reabrir o mesmo local, fechado há apenas dois anos, cuja estrutura já foi completamente desmontada.
Enquanto isso, estão se insinuando misteriosos empresários de origem chinesa, entre os quais Hsueh Sheng Wang, que pretende abrir uma fábrica de máscaras em apenas duas semanas na Île-de-France, ou seja, na região metropolitana de Paris.
A França está, portanto, em uma situação de dupla dependência, ao mesmo tempo produtiva e tecnológica. Não produz mais os bens necessários para a gestão da atual crise sanitária, mas nem os serviços digitais – as plataformas digitais, os serviços de videoconferência e similares - usados durante essa crise raramente são de propriedade francesa. Nem a França, e muito menos a Europa, conseguiram criar empresas líderes no setor de economia digital.
A desindustrialização também teve consequências sobre as competências e o know-how: a maioria deles foram essencialmente destruídas pela falta de uma demanda suficiente para determinar sua lucratividade.
Outros know-how poderiam ser destruídos devido aos riscos concretos de falência das empresas. Até o momento foram implementadas medidas nacionais e europeias para apoiar as empresas, mas geralmente são empréstimos garantidos pelo Estado e relações de cobrança quando as empresas estiverem em crise de liquidez. As falências, as demissões e ainda a compra geoeconômica de títulos acionários e cotas de empresas estratégicas e inovadoras por parte de estados terceiros serão igualmente elementos que retardarão a recuperação da indústria francesa. Os territórios franceses já frágeis poderiam "falir" se as empresas que contribuíam com seu desenvolvimento tiverem dificuldades.
No entanto, o período atual nos oferece uma oportunidade de recuperar o controle das cadeias de valor. O caminho será longo, oneroso e complexo, pois essa crise também nos ensina que um simples prego pode se tornar essencial para completar um produto de uma fábrica. Controlar toda uma cadeia de valor não é uma evidência, especialmente quando os subcontratados de 2 ou 3 graus não se conhecem e são difíceis de identificar.
Em um recente encontro sobre estratégias francesas e alemãs diante da covid-19, Daniela Schwarzer, diretora do DGAP (Instituto Alemão de Política Externa), indicou quanto a Alemanha considere cada vez mais sua relação com a China em termos geopolíticos, ou seja, com um maior realismo, apesar das estreitas relações comerciais.
Como a França, também a Alemanha não escapa à desorientação. E se vê forçada a repensar a sua diplomacia neutra, fundada na mera expansão de relações comerciais.
Tudo isso torna agora a Itália o país europeu com maior exposição e implicação nas redes geoeconômicas chinesas. Isso só poderá ser disfuncional para acompanhar essa pequena sugestão de mudança, alinhando-se seriamente com a França e a Espanha.
No início de abril, Ursula von der Leyen propôs estender a nível europeu o modelo alemão do Kurzarbeit, programa chamado SURE, que, no entanto, está ancorado a uma linha de crédito condicionante, como pode ser lido no Frankfurter allegemeine Zeitung, certamente não na forma de subsídios. Posteriormente, o ministro do Trabalho alemão, Hubertus Heil, relata o Die Zeit, a partir de meados de abril lançou a proposta, apoiada pela maioria do espectro político dos Verdes e o SPD do centro cristão, para aumentar de 60% (67% para famílias) para 80% (87% para as famílias) o montante de cobertura federal para os salários dos trabalhadores para, pelo menos, os meses de maio, junho e julho.
Finalmente, foi alcançado um acordo entre as forças da coalizão, relata Handelsblatt no final de abril, de modo que o regime do Kurzarbeit aumentará o percentual de sua cobertura de acordo com os casos de modo progressivo: a partir do quarto mês, a cobertura será de 70% (77% para as famílias) e após o sétimo mês 80% (87% para famílias).
No entanto, o IG Metall - o sindicato industrial dos metalúrgicos - pressiona para que a cobertura do Kurzarbeit seja aumentada para 80% imediatamente e seja mantida assim. Os números já são alarmantes: 27% de seus mais de 2 milhões de membros - portanto, quase 600.000 pessoas - estão atualmente tecnicamente desempregados e 57% das empresas reduziram seu tempo de trabalho em mais de 50%. Pensa-se que possa se tornar a pior recessão do pós-guerra. Atualmente, apenas entre a França e a Alemanha há mais de 20 milhões de pessoas para se sustentar através do Kurzarbeit alemão ou do chomage partiel francês, de acordo com o Financial Times, ou seja, o equivalente a um terço da população italiana atualmente sob esses regimes de assistência.
Isso implica a necessidade de pensar não apenas em instrumentos macroeconômicos, mas, sobretudo, atos políticos e institucionais, que não comportem um simples adiamento do inexorável endividamento dos sistemas econômicos e, em particular, das empresas que são já em risco de crise de liquidez.
Assim, necessariamente se coloca a questão de uma política industrial a nível europeu. Atualmente, a UE dispõe em matéria apenas de uma competência de apoio para os Estados membros. No entanto, ela tem a prerrogativa exclusiva de regular o comércio e a concorrência. A Comissão Europeia geralmente adota uma posição que favorece a defesa do consumidor em detrimento das indústrias europeias. Portanto, a crise atual nos mostra a necessidade de pensar em uma política industrial europeia, estabelecendo verdadeiros planos de investimento objetivando as tecnologias emergentes (nuvem, inteligência artificial, biotecnologias e assim por diante). Além disso, será preciso reforçar os mecanismos de controle de investimentos estrangeiros para preservar as indústrias inovadoras do imperialismo chinês, que se esconde por trás de suas declarações em favor do multilateralismo.
No nível nacional, por outro lado, os Estados deverão tomar medidas de apoio à indústria nacional para evitar a iminente crise de liquidez e, ao mesmo tempo, estimular uma demanda por produtos nacionais, por meio de subsídios e instrumentos fiscais que permitam tornar os produtos competitivos em termos de preço no mercado nacional, pois, afinal, não há indústria sem demanda.
Finalmente, as próprias empresas podem tirar proveito dessa situação para transformar seu modelo de produção: ao planejar sua recuperação, podem imaginar repensar suas cadeias de suprimentos para tentar torná-las mais locais, trazendo assim externalidades positivas para o planeta. O que implica que essa conjuntura não comporta necessariamente o abandono da questão ambiental. Muito pelo contrário.
As empresas terão que ser mais ágeis, a fim de integrar juntos e concomitantemente a evolução sinusoidal da demanda e os desafios colocados pelo ambiente: não há uma sem o outro.
Para esse fim, por exemplo, podem introduzir uma contabilidade que preveja não apenas contabilizar nos passivos - ou seja, em seus gastos de capital – o seu impacto ambiental negativo, mas também contar entre os ativos as suas externalidades positivas sobre o ambiente natural e humano, isto é, social e político.
Em suma, é uma questão de repensar radicalmente o que é o valor, além de seu significado econométrico, como medida antropológica da qualidade de vida humana: e as próprias empresas, como sujeitos mais antropológicos que econômicos, podem ser os vetores de tal mudança.
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Cenários pós-coronavírus: entre a necessidade de uma política industrial europeia e a reorganização das cadeias mundiais de valor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU