12 Mai 2020
Ainda é muito cedo para um veredito, mas, até agora, as ameaças à Amazônia seguem inabaladas em plena pandemia de Covid-19. Enquanto o vírus se espalha e produz cenas dramáticas na região, grileiros avançam e o desmatamento não dá sinais de redução. Pelo contrário: disparou no primeiro trimestre de 2020.
A reportagem é de Caio de Freitas Paes, publicada por Mongabay, 07-05-2020.
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) aponta que 796 km2 de floresta foram derrubados nos três primeiros meses do ano. Um terço da devastação ocorreu em terras públicas, como florestas nacionais e unidades de conservação, alvo da cobiça de grileiros em geral. De acordo com o instituto, o aumento nos alertas de desmatamento entre janeiro e março foi de 51% na comparação com 2019.
À perda de floresta, somam-se as alterações climáticas: no primeiro trimestre deste ano, o Centro Nacional dos Estados Unidos para Informação Ambiental notou que a floresta amazônica sofreu com temperaturas muito acima da média esperada para a época. Monitoramentos da Nasa também sugerem que grandes áreas da Amazônia estão com seus lençóis freáticos mais secos que o normal. Além disso, a floresta já vem sofrendo com estações chuvosas mais fracas que o habitual.
Pesquisadores e servidores ambientais ouvidos pela Mongabay não escondem sua preocupação com a chegada da estação seca. É a partir de maio que se alastram queimadas criminosas, inicialmente na região norte, em estados como Roraima.
“O que espanta é que, mesmo no período de chuvas, houve alta expressiva [do desmatamento]. Quem grila e desmata tem recebido sinais claros para prosseguir — seja do setor econômico, seja do governo federal”, diz Paulo Moutinho, um dos fundadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
A disputa por terras continua intensa na floresta, fator esse considerado decisivo na última crise das queimadas, em agosto de 2019. Só em março, o Imazon registrou alta de 279% nos alertas de desmate na comparação com o mesmo mês em 2019. Na primeira quinzena de abril, os satélites do Inpe identificaram quase 200 km2 de desmatamento na floresta.
Dados recentes mostram quais são as atuais frentes de devastação: a divisa entre o sul do Amazonas e o norte do Mato Grosso — no chamado Arco do Desmatamento — e o sul do Pará. Ali ficam municípios como Apuí (AM), Marcelândia (MT) e São Félix do Xingu (PA), todos entre os mais desmatados até agora, em 2020.
“São regiões com rodovias asfaltadas recentemente, facilitando o escoamento [da madeira derrubada de modo ilegal], e também grande estoque de terras ‘griláveis’ — áreas devolutas [terras governamentais] e reservas indígenas”, afirma Paulo Barreto, pesquisador-sênior no Imazon.
A repercussão de uma fiscalização ambiental caiu feito bomba no Planalto na primeira quinzena de abril. Equipes do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) investiram contra garimpeiros clandestinos nas terras indígenas Apyterewa, Araweté e Trincheira-Bacajá, no interior do Pará. Seguindo a lei, destruíram as máquinas usadas para a extração ilegal de minérios nas reservas.
No primeiro ano de governo Bolsonaro, a destruição de equipamentos em operações como essa caiu 51% na comparação com a média entre 2014 e 2018. As cenas do maquinário em chamas no Pará — e de um garimpeiro dizendo-se motivado pelo atual governo — desencadearam uma crise instantânea.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, demitiu o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, dias depois. Desde então, há uma disputa nos bastidores entre servidores de carreira (concursados, com perfil técnico) e comissionados (indicações políticas). 15 dias depois, os embates resultaram na demissão de dois chefes de fiscalização, agentes de carreira, envolvidos nas operações no Pará.
“As demissões deixam nítido como há uma pressão para deixarmos de fazer, para não fiscalizar. Isso gera desconfiança e muito mais trabalho para o Estado como um todo”, diz um fiscal do Ibama. A agência foi uma das que passaram por uma ampla militarização desde a posse de Jair Bolsonaro.
O desmatamento causa por garimpeiros na Amazônia aumentou quase 25% de 2018 para 2019, segundo relatórios obtidos pelo jornal O Globo. A área mais atingida fica no oeste do Pará, palco de outras operações conjuntas entre Ibama, ICMBio e Polícia Federal, justamente para desativar garimpos.
Maquinário de garimpo ilegal incendiado por fiscais do Ibama no Pará. (Foto: Ibama)
Emparedado, o Ibama também sofre com outras escolhas do atual governo. Hoje, a gestão de Jair Bolsonaro protela a contratação de quase 900 servidores, muitos deles fiscais.
De acordo com o Ministério do Planejamento, em março de 2020 o Ibama tinha 9% dos seus agentes no grupo de risco (com 51 anos ou mais). Com servidores mais velhos, aumentam as restrições durante a pandemia. As operações acontecem frequentemente em locais afastados, com infraestrutura de saúde precária, por vezes em terras indígenas com povos isolados.
“O governo não definiu normas para fiscalizações [em campo] durante a pandemia, nos sentimos desprotegidos. Faltam kits de EPI [Equipamento de Proteção Individual] para os agentes, normalmente deslocados de outras regiões do país”, disse outro agente.
Procurado pela Mongabay, o Ibama disse que os agentes devem seguir as orientações do Ministério da Saúde, e que “cada superintendência [estadual] foi incumbida de providenciar Equipamentos de Proteção Individual para seu quadro de fiscais”, sem informar a quantidade de kits à disposição.
Junto ao Tribunal de Contas da União, o Ministério Público alega que a defasagem de fiscais se arrasta há anos. O último concurso para admissão de agentes aconteceu em 2014. Desde então, o desmatamento sobe e as multas caem — foram 34% a menos em 2019, na comparação com o ano anterior.
“Há métodos eficazes para fiscalizarmos remotamente, com imagens de satélite, cruzando dados de propriedades. Mas não é o suficiente”, diz um agente. “Só indo a campo é que podemos apurar quem contratou o serviço, quem alugou o maquinário pesado, quem está realmente investindo no crime”, complementa.
Para piorar, o estresse cresce entre os agentes em atividade. Já em maio, um fiscal do Ibama foi atacado por madeireiros próximo ao município de Uruará, no Pará. A multidão não se conteve nem mesmo pela presença da Força Nacional durante a abordagem, em plena floresta. O município é vizinho à Terra Indígena Cachoeira Seca, a terceira mais desmatada no país entre agosto de 2018 e julho de 2019.
A escalada nas tensões contra agentes ambientais se alastra pelo país. Em São Paulo, garimpeiros ilegais atacaram uma equipe de policiais no Parque Estadual Intervales, no Vale do Ribeira – lugar de origem de Jair Bolsonaro. A emboscada durou mais de 12h. Da equipe atacada, Luís Soares de Lima saiu ferido com um tiro na perna e Damião Cristino de Carvalho Júnior morreu com um tiro na cabeça – os dois são vigias na reserva.
Em 2019, um terço do desmatamento — e do fogo — ocorreu em terras griladas.
Para pesquisadores, a lógica por trás dos desmatamentos na Amazônia pouco mudou nos últimos seis meses. Não apenas os alertas do Inpe seguem em alta como ainda há muitas toras derrubadas há meses, à espera do fogo.
Durante o Carnaval de 2020, o Ibama afrouxou as normas para exportação de madeira, um estímulo extra à destruição ambiental. Para o Ipam, é um cenário propício para queimadas fora de controle, como as ocorridas no segundo semestre de 2019.
O instituto analisou a última crise com a expectativa de antever riscos do novo ciclo. Entrecruzando dados de propriedades e focos de calor, o Ipam aponta a relevância da invasão de terras no caso: áreas griladas concentraram 30% dos incêndios em 2019.
“Nas áreas públicas e sem informação [sobre propriedade] o fogo foi fruto do desmatamento para a posse ilegal, para especulação imobiliária”, aponta o estudo. Para Paulo Moutinho, o padrão se mantém — como a alta do desmatamento no primeiro trimestre sugere.
Segundo o Ipam, entre janeiro e março de 2020, as áreas públicas respondem por 33% do desmatamento, quando em 2019 eram responsáveis por 22%. “Há muita concentração [de desmate] em terras públicas, como florestas não destinadas pelo governo, e aumento das invasões, com acenos para a regularização das grilagens vindos do governo federal”, diz o pesquisador.
“Quem financia o desmatamento paga caro, algo em torno de R$ 1.000 por hectare. Na ótica deles não há dúvida: o que não virou cinzas no ano passado precisa queimar o quanto antes”, afirma Moutinho.
Mais queimadas também significam mais problemas para a saúde pública. A última crise disparou as internações, em especial a de crianças, nas redes privada e pública. É possível uma explosão de casos de complicações respiratórias em todo o continente. Em 2019, a fumaça vinda da floresta transformou o dia em noite em São Paulo, no sudeste, e cobriu metade da Argentina e do Uruguai.
Na floresta, o sistema público está praticamente colapsado em estados como Amapá, Amazonas e Pará em decorrência do surto de infecções pelo novo coronavírus. Faltam leitos para pessoas com dificuldades respiratórias e até mesmo equipamentos, como ventiladores mecânicos.
A preocupação aumenta em relação a idosos e pessoas com doenças crônicas, como asma e outras síndromes inflamatórias, mais vulneráveis à Covid-19. “Há previsões de menos chuva e maior temperatura no Acre e no sul do Amazonas [para 2020]. Com mais fogo, naturalmente aumentam os casos de intoxicação por causa da fumaça. É uma receita preocupante”, diz Paulo Moutinho.
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Desmatamento em alta, grileiros à solta, crises políticas: queimadas na Amazônia podem ser piores que as de 2019 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU