11 Agosto 2018
"Conhecer a realidade brasileira não é fácil. Também não é simples separar tolerância de omissão e compreensão de conivência. A democracia brasileira tem traído os princípios democráticos do bom funcionamento do sistema. Nas eleições gerais de 2018, há mais uma chance para realizar o debate e o confronto de ideias entre todas as candidaturas, possibilitando a livre manifestação de todas as pessoas, de maneira aberta, transparente e sincera", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 10-08-2018.
“Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e por que assentada na mais bela e luminosa província da Terra” - (Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro)
O Brasil adora uma jabuticaba e tem uma tendência histórica a seguir um modelo único, autossuficiente e indiferente a tudo que deu certo no mundo. A necessidade de se afirmar por meio de um excepcionalismo “verde e amarelo” talvez seja parte de algum “destino manifesto” derivado da especificidade de uma “civilização mestiça e tropical”, deitada eternamente na “mais bela e luminosa província da Terra”, conforme disse Darci Ribeiro, em uma releitura (com todo o respeito) ainda mais ufanista do que a ufanista e antiecológica noção de “berço esplêndido” do hino nacional. Como se diz, o Brasil não é para principiantes e nem é explicado por livros-texto.
Tem a pretensão de ser mais que uma nação, uma coisa especial, talvez uma forma superior como “civilização”. Todavia, o país, também conhecido como Pindorama, comumente se perde na terra da experimentação, dos oximoros, do inesperado e da antropofagia.
A história brasileira está marcada por eventos nada grandiosos. A Independência e a libertação do jugo lusitano ocorreu, de forma inusitada, sob a liderança do herdeiro da Corte Portuguesa. O país experimentou a única monarquia das Américas e tentou inovar com o “Poder Moderador” de um Imperador que não tinha legitimidade da representação popular.
Promulgou a “Lei Áurea” (loira) para libertar o negro e jogá-lo à sua própria sorte e, 130 anos depois, o racismo continua (o Brasil está longe de ser uma democracia mestiça). Em 1889, o povo assistiu bestificado a proclamação da República. Nos primeiros anos da República, tentou a desastrosa política do “Encilhamento” para impulsionar a economia (como se o Brasil fosse uma égua de corrida). Manteve a economia primário-exportadora e o processo de segregação social e política na requentada política do “café com leite” da República Velha. Chamou de “Revolução de 1930”, o golpe que colocou o candidato derrotado nas eleições de 1930, no lugar do vencedor indicado por São Paulo. A maior batalha da história – em Itararé – não aconteceu, mas sob a liderança gaúcha, o novo regime desaguou na ditadura do “Estado Novo”.
Depois da Segunda Guerra, a redemocratização aconteceu com a eleição de um general que foi ministro da guerra e um dos responsáveis pela repressão do Estado Novo. Durante o “Pacto populista” (1945-64), os governantes fizeram um discurso anti-imperialista ao mesmo tempo em que copiavam o modelo desenvolvimentista, adaptado às condições da exclusão, da desigualdade e da segregação social. Em 1961, o presidente eleito renunciou e não conseguiu explicar bem o motivo, deixando o país no caos. Em 1964, os militares se arvoraram salvadores da Pátria, instalaram uma ditadura militar, com a desculpa de salvar a democracia.
Em 1985, houve a redemocratização e o início da “Nova República”, que após a morte do presidente eleito de forma indireta, ficou sob a liderança do velho “cacique” que foi baluarte da ARENA e do regime militar e que terminou seu último ano de governo com uma imensa hiperinflação, mas com a política econômica tupiniquim do “feijão com arroz”. Fez uma “Constituição cidadã” cheia de direitos que são desrespeitados cotidianamente. Elegeu um “Caçador de Marajás”, como primeiro presidente pós Constituinte, que congelou os ativos financeiros dos brasileiros e foi cassado por corrupção. Elegeu um intelectual paulista, que nasceu no Rio de Janeiro, pediu para que esquecessem o que escreveu e promoveu a emenda da reeleição e o populismo cambial, com grande prejuízo para o país. Elegeu um líder metalúrgico com discurso de ética na política que surfou na onda do superciclo das commodities, mas não evitou o processo de desindustrialização precoce do país e teve o partido envolvido em um dos maiores escândalos de corrupção da nação.
Em 2010, o partido que era para representar os trabalhadores, elegeu, em aliança com o partido que se beneficiou da redemocratização e promoveu o estelionato eleitoral do “Plano Cruzado”, a primeira mulher presidenta da República, que foi traída por seu vice, que assumiu o cargo máximo do Executivo e se tornou o presidente mais impopular da história republicana.
Portanto, o Brasil, na eterna busca por uma identidade que represente uma possível essência nacional, é forte concorrente a campeão mundial em inovação, mitificação e experimentação. Winston Churchill gostava de dizer que os “Estados Unidos sempre fazem a coisa certa, mas apenas depois de esgotar todas as outras opções”. O Brasil é semelhante, só não se cansa de tentar, indefinidamente, novas opções. O sociólogo Chico de Oliveira usou a imagem do ornitorrinco (este estranho animal dotado de bico de pato e considerado ao mesmo tempo réptil, pássaro e mamífero), como metáfora do Brasil, enquanto nação presa a um impasse evolutivo. Parecendo que o país desafia as leis da simplicidade e da adaptação progressiva.
Uma pesquisa sobre “Os Perigos da Percepção”, realizada pelo instituto Ipsos Mori e divulgada em dezembro de 2017, mostrou que o grau de percepção equivocada sobre a realidade varia bastante entre os diversos países do mundo. Os países que lideram o chamado Índice de Percepção Equivocada são África do Sul, Brasil, Filipinas, Peru e Índia. O Brasil foi apontado como o segundo país mais sem noção do mundo!
Por exemplo, a maioria dos brasileiros se solidarizou com a greve dos caminhoneiros e desejam preço de combustíveis mais baixos, mas não aceitam os resultados de aumento de imposto ou inflação como resultado da pauta grevista. Quer livre iniciativa, mas clama pelo Estado quando o mercado não funciona e não tem constrangimento em defender o interesse particular e corporativista em nome do interesse geral. Apoia o pacote de bondades, mas não topa pagar a conta. Existe um auto engano sobre o impacto da greve, que pode reduzir o PIB em um ponto percentual, enquanto as exportações caíram 36% nas duas últimas semanas de maio e haverá dificuldade para a recuperação do emprego. Além do mais, o menor preço do diesel vai favorecer quem tem os carrões SUV (4×4) com finalidade de passeio e turismo. Ou seja, o Brasil que assinou o Acordo de Paris do clima, provavelmente vai ter aumento das emissões de gases de efeito estufa. A greve canalizou a insatisfação geral da população contra o atual governo, mas, na prática, favoreceu um grupo pequeno em detrimento do interesse coletivo.
Por essa e outras ambiguidades, os políticos que vão disputar as eleições gerais de 2018 contribuirão para aumentar o “Índice de Percepção Equivocada”. As eleições gerais devem se tornar um campo fértil para o cultivo de mais jabuticabas para alimentar novos ornitorrincos. A polarização nas redes sociais vai contribuir para aumentar a confusão. Ao invés de aprender com os erros dos outros e com os próprios erros, o Brasil tem uma vocação para tentar seguir infinitos caminhos errados, como se a saída do labirinto estivesse perto e, depois de tantas idas e vindas, fossemos escolher corretamente a estrada que representa a opção incontestável ao progresso e ao bem-estar. Mas a história segue o seu caminho e o mundo continua rodando e seguindo em frente, não se importando se estamos tontos, parados ou andando como caranguejo.
Enquanto a população, confusa ou ludibriada pela mídia, pelos partidos políticos e pelas forças populistas, acredita que o Brasil é o país do futuro e tem uma trajetória ascendente, os dados internacionais indicam um processo submergente e, comparativamente, uma mobilidade social descendente. Das últimas 4 décadas, 2 foram perdidas e 2 foram de baixo desenvolvimento socioeconômico. A renda per capita brasileira foi ultrapassada não só pelos tigres asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong) ou pela China e pelo Chile, mas também por países que eram muito mais pobres até a década passada, como Malásia, Tailândia, Costa Rica e República Dominicana.
Para reforçar o mito da superpotência no futebol, o Brasil organizou uma Copa do Mundo, em 2014, perdeu de 7 x 1 para a Alemanha e até hoje está pagando pelos “elefantes brancos” que construiu e pelas obras de mobilidade urbana não concluídas. Na Copa de 2018 perdeu para a Bélgica – um país pequeno e que nunca chegou às finais da competição – e foi ofuscado pelo futebol da Croácia, um país de pouco mais de 4 milhões de habitantes, sem muita diversidade étnica e que chegou à final com muita raça e bom futebol.
Em todas as áreas, existe um descompasso entre a realidade e as percepções da população. As últimas eleições presidenciais (de 2014) foram um show de ilusionismo, de notícias falsas e promessas vazias completamente distantes da realidade. O que foi prometido em outubro de 2014 foi desmascarado com o alto desemprego formal em dezembro de 2014 e pelas medidas de contração fiscal dos primeiros meses de 2015, na gestão Joaquim Levy, o indicado a comandar a economia pela dupla que ganhou as eleições e que prometia o Brasil como 4ª ou 5ª potência mundial.
Na verdade, o Brasil tem diminuído de tamanho relativo em relação ao PIB mundial (por exemplo, foi ultrapassado pelo Indonésia em 2017). Hoje tem uma renda per capita menor do que a média mundial. No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ocupa a nada honrosa 79º posição, no total de 188 países. O Brasil está ficando para trás na economia, nas condições sociais e nos avanços científicos e tecnológicos, com grandes problemas no funcionamento da democracia, aumentando a degradação ambiental e atolado num impasse em relação às perspectivas do futuro.
Nas eleições presidenciais, em geral, sempre aparecem projetos salvadores ou promessas de bilhetes premiados. Evidentemente, cabe à população escolher qual é o melhor projeto para o país. Mas se o caminho for atingir um padrão de vida equivalente ao que tem a Coreia do Sul hoje, não existe segredo, o caminho passa pelo trabalho produtivo, com altas taxas de poupança e investimento, para fazer a permanente renovação do parque produtivo e a continuada qualificação profissional do trabalhadores. Uma política macroeconômica coerente requer precisão nos rumos e grande acerto nos detalhes.
Mas, as indefinições do debate eleitoral de 2018 não ajudam a clarear a verdadeira situação do país e nem a construção de um projeto de nação. Existem diversos fundamentos da economia, sociologia, demografia e da ecologia que não podem ficar de fora do debate sobre o presente e o futuro que se deseja. O debate deve buscar esclarecer e não obnubilar os diversos aspectos da realidade, muito menos ficar preso ao bairrismo e ao nativismo. A seguir, seguem cinco pontos que devem constar em qualquer plataforma minimamente realista.
Atingir o pleno emprego e o trabalho decente (com proteção social) para garantir o direito ao trabalho e aproveitar o bônus demográfico, condição básica para a efetivação de políticas universalistas de redução das desigualdades e de aumento do bem-estar geral;
Aumentar as taxas de poupança e investimento, para renovar a estrutura produtiva nacional e dar um salto na qualidade da infraestrutura, incluindo investimentos em saneamento básico, saúde, educação e segurança pública, etc.;
Garantir a sustentabilidade fiscal, reduzindo o déficit público e reduzindo a dívida pública como proporção do PIB para que o país tenha sustentabilidade financeira que garanta juros baixos, câmbio competitivo e recursos economicamente sustentáveis para o gasto social e a política pública;
Aumentar a produtividade dos fatores de produção para garantir o aumento da produção por trabalhador e garantir a competitividade internacional da economia brasileira para possibilitar uma inserção soberana na dinâmica da globalização;
Interromper a degradação ambiental, reverter o desmatamento, a erosão dos solos, a poluição das águas, reduzir as emissões de gases de efeito estufa, avançar na agricultura orgânica e defender uma sociedade ecocêntrica.
Existem muitos países com indicadores melhores, mas também outros países com piores do que os do Brasil. Existem países que estão avançando, outros que estão estagnados (na “armadilha da renda média”) e outros estão no fundo do poço (na “armadilha da pobreza”). Mas não cabe choro e nem vela. Como disse Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “A pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas”.
Conhecer a realidade brasileira não é fácil. Também não é simples separar tolerância de omissão e compreensão de conivência. A democracia brasileira tem traído os princípios democráticos do bom funcionamento do sistema. Nas eleições gerais de 2018, há mais uma chance para realizar o debate e o confronto de ideias entre todas as candidaturas, possibilitando a livre manifestação de todas as pessoas, de maneira aberta, transparente e sincera. Embora todas as alternativas autoritárias e ilegítimas devam ser rechaçadas, a defesa da democracia tem que ocorrer de maneira crítica, passando a limpo as mazelas do sistema. O Brasil precisa ser construído com pessoas de carne e osso e não com mitos ou com o renascimento de anacrônicos Antônios Conselheiros. A campanha eleitoral de 2018 precisa destilar menos ódio e apresentar mais propostas viáveis para o Brasil e que não haja tanto autoengano.
O verdadeiro diagnóstico da situação do país precisa ser revelado, sem ilusionismos, para que o país se livre da improvisação e possa lidar com as possíveis soluções para ser um país normal, sem grandes desigualdades e com bem-estar social e ambiental. O maior inimigo da democracia brasileira, hoje em dia, é a própria prática democrática confusa, cara e ineficiente. O país está ficando inviabilizado pelo próprio pacto econômico e político que foi a base da fundação da Nova República.
É impossível dar continuidade e viabilidade a uma democracia que, além de não ganhar o jogo econômico, fica marcando gol contra e se sustentando em ilusão, improvisação e autoengano.
Referências de artigos publicados em 2018 sobre economia brasileira:
ALVES, JED. O fim fóssil do pacto político e econômico da Nova República, Ecodebate, 30/05/2018
ALVES, JED. População, desenvolvimento e degradação ambiental no Brasil, Ecodebate, 28/05/2018
ALVES, JED. O déficit orçamentário e a dívida pública que o próximo governo (2019-2022) vai herdar, Ecodebate, 23/05/2018
ALVES, JED. Brasil: quatro décadas de baixo crescimento econômico, sendo duas décadas perdidas, Ecodebate, 16/05/2018
ALVES, JED. Cai o número de pessoas ocupadas e com carteira assinada no Brasil em 2018
ALVES, JED. Brasil submergente vive o pior docênio (2011-2022) dos 200 anos da Independência
ALVES, JED. O nível do PIB per capita brasileiro de 2013 só deve ser recuperado em 2023
ALVES, JED. O Brasil desperdiça a riqueza de 26,4 milhões de trabalhadores
ALVES, JED. Michel Temer e a pior presidência da história da República
ALVES, JED. A maior e a mais profunda recessão da história republicana
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O Brasil entre a ilusão, a improvisação e o autoengano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU