04 Agosto 2018
O leigo peruano Luis Fernando Figari está aguardando uma decisão sobre seu segundo recurso ao Vaticano após ser sancionado em 2017 por abuso sexual e de poder e de consciência, tem uma longa história de laços estreitos com um cardeal chileno em meio a maior crise de abuso sexual clerical da Igreja na história recente.
[Nota: esta é a segunda de uma série de três reportagens explorando os laços entre o Cardeal Francisco Errázuriz do Chile, confidente papal, e o leigo peruano Luis Fernando Figari, que agora é acusado de abuso sexual e de abuso de consciência dentro do proeminente movimento leigo por ele fundado.]
A reportagem é de Elise Harris, publicada por Crux, 03-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Nota de IHU On-Line: A primeira reportagem da série pode ser lida aqui.
O cardeal Francisco Errázuriz Ossa, que foi arcebispo da capital nacional do Chile entre 1998 e 2010, é uma figura dominante na cena católica do país. Ele tem estado cada vez mais no centro das atenções à medida em que a crise de abuso na Igreja chilena se desdobra. Ele enfrenta crescentes acusações de encobrimento, principalmente dos crimes do notório Padre abusador, Fernando Karadima.
No entanto, não só Errázuriz tem laços com Karadima, mas também mantém um relacionamento com Figari há pelo menos duas décadas.
Fontes com informações internas do Sodalitium Christianae Vitae, movimento fundado por Figari, enfatizam que Errázuriz não era seu maior apoiador na hierarquia latino-americana, e nem era responsável pelo crescimento inicial do movimento. Isso ocorreu, segundo eles, sob o patrocínio de dois outros pesos pesados da hierarquia latino-americanos, ambos já falecidos - os cardeais Alfonso López Trujillo, da Colômbia, e Eugênio de Araújo Sales, do Brasil.
Enquanto era cardeal de Buenos Aires, Bergoglio doou uma propriedade fora de Buenos Aires para a comunidade usar por cinco anos como base das operações no país.
No entanto, Errázuriz foi imprescindível para o Sodalitium Christianae Vitae, tanto em termos de garantir a aprovação papal para a comunidade quanto para promover sua expansão em seu próprio país.
Nascido em Lima em 1947, Figari é o fundador de uma comunidade leiga masculina, a Sodalitium Christianae Vitae (SCV), uma comunidade leiga de mulheres, a Comunidade Mariana de Reconciliação (MCR), uma comunidade de religiosas, as Servas do Plano de Deus, e um movimento eclesial, chamado de “Movimento da Vida Cristã”, onde todos compartilham a mesma espiritualidade.
Figari estudou humanidades e direito na universidade e liderou vários clubes e associações. Ele estabeleceu a SCV, sociedade católica de vida apostólica, em 1971.
Em 1984, ofereceu uma "Catequese sobre o Amor" na primeira Jornada Mundial da Juventude, realizado na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, em Roma. Em 2002, foi nomeado consultor do Pontifício Conselho para os Leigos por São João Paulo II e, em 2005, foi nomeado auditor leigo do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia. Ele atuou em papéis consultivos subsequentes no Vaticano.
Semelhante a Karadima, a comunidade de Figari era carismática e atraía várias vocações, com o apelo principal sendo uma ênfase em uma vida de estrito ascetismo, formação intelectual e combate espiritual, acreditando que seu chamado era lutar como soldados de elite no exército de Deus.
No entanto, Figari alegou razões de saúde para deixar o cargo de Superior Geral da SCV em 2010, mesmo que por esse época as alegações de abuso já tivessem começado a surgir no Peru.
Em 2011, três pessoas diferentes - que se identificaram como Santiago, Lucas e Juan, se apresentaram ao tribunal eclesiástico da Arquidiocese de Lima, presidido pelo Padre Víctor Huapaya Quispe, membro do Opus Dei, dizendo: em testemunhos escritos que haviam sido abusados sexualmente por Figari quando eram menores. Embora Huapaya tenha prometido a pelo menos uma das vítimas que as alegações seriam investigadas, essa pessoa ainda não recebeu qualquer resposta.
As alegações supostamente chegaram ao Vaticano, e quando representantes do SCV vieram ao local para verificar o progresso do caso de Figari em 2012, foram informados de que nenhum delito havia sido encontrado.
Fontes próximas à situação disseram que após esse encontro em 2012, Errázuriz havia defendido o fundador peruano, argumentando que ele era inocente e que o caso era diferente daquele dos Legionários de Cristo, cujo fundador sacerdotal, Padre Marcial Maciel Degollado, era sancionado pelo Vaticano em 2006, depois de ter sido considerado culpado de abusar sexualmente de menores e de ter filhos com várias mulheres.
Uma investigação completa sobre as denúncias contra Figari não foram aberta até 2015, aproximadamente na mesma época, um livro intitulado Half Monks, Half Soldiers (Metade Monges, Metade Soldados, em tradução livre) foi publicado pelos jornalistas Paola Ugaz e Pedro Salinas, ex-membro da comunidade, relatando anos de suposta violência sexual e física e abuso psicológico por membros do SCV.
Em fevereiro de 2017, uma comissão estabelecida pelo SCV disse em um relatório que “Figari abusou sexualmente de pelo menos um filho, manipulando, abusando sexualmente ou prejudicando vários outros jovens; abusou física ou psicologicamente de dezenas de outros”.
O relatório concluiu que entre 1975 e 2000, e uma vez em 2007, “cinco membros do Sodalitium, incluindo Figari, abusaram sexualmente de menores”.
Naquele mesmo mês, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada do Vaticano emitiu um decreto proibindo Figari de qualquer contato com a comunidade religiosa e o proibindo de retornar ao Peru sem a permissão do atual superior da SCV, Alessandro Moroni Llabrés. Figari também foi proibido de fazer declarações públicas.
Ele lançou entrou com um recurso que foi rejeitado pelo Vaticano em 31 de janeiro. Depois, o fundador entrou com um segundo que também deve ser negado.
Figari também está enfrentando acusações civis no Peru, e em dezembro de 2017, promotores peruanos pediram por ordem judicial que ele seja temporariamente preso junto com várias ex-autoridades da SCV, enquanto uma investigação civil sobre abuso sexual e psicológico e encobrimento continua avançando.
No entanto, o pedido foi supostamente atrasado devido a uma exigência processual de notificar os réus - alguns dos quais vivem no exterior -, incluindo Figari, que agora está alojado nos arredores de Roma.
Em janeiro, o Papa Francisco convocou o bispo colombiano Noel Antonio Londoño Buitrago como comissário da SCV, o que significa que ele assumiu as rédeas como uma espécie de superior geral e foi encarregado de supervisionar e orientar a SCV por meio de um processo de reforma.
A história entre Errázuriz e Figari inicia na década de 1990, dado que a SCV recebeu aprovação pontifícia em 1997. Na época, Errázuriz era o secretário da Congregação para os Religiosos do Vaticano [ele ocupou o cargo de 1990 a 1998], ou seja, a aplicação e a documentação da SCV passaram por suas mãos em algum momento. Estando nessa posição, Errázuriz foi fundamental no para a aprovação pontifícia da SCV.
Quando Errázuriz foi nomeado Arcebispo de Santiago, não perdeu tempo em fazer com que a comunidade de Figari se juntasse a ele no Chile. O cardeal foi instalado em maio de 1998 e a primeira casa comunitária da SCV foi inaugurada na arquidiocese em janeiro de 1999, pouco menos de um ano após sua posse.
A primeira comunidade Sodalit no Chile - grupo de quatro homens incluindo Moroni - chegou naquele ano e começou a trabalhar na escola “Apoquindo” em Santiago, agora chamada de “Mayflower”, que era frequentada por crianças das famílias mais influentes de Santiago, incluindo parentes de Errázuriz.
A SCV foi encarregada de uma capela ligada a uma das maiores paróquias de Santiago, localizada em Maipú, e também lhes foi oferecido um terreno para construir sua própria Igreja, casa comunitária e centro pastoral.
Quando o centro pastoral foi aberto, o SCV começou a liderar grupos para jovens, e muitos de famílias ricas e influentes acabaram se juntando à comunidade do Sodalitium e a outros projetos liderados pelo Movimento da Vida Cristã.
De acordo com um ex-Sodalit que morou na comunidade de Santiago no início dos anos 2000, e que falou sob condição de anonimato, Errázuriz também teve sobrinhas e sobrinhos que frequentavam a escola de Santiago, onde os membros da SCV lecionavam, e pelo menos um sobrinho demonstrou grande interesse pelo grupo.
Um dos irmãos Errázuriz, Eduardo, era um homem de negócios rico no Chile, disse esta fonte, explicando que o filho do homem, José Tomas, frequentou a escola onde os Sodalits ensinavam e estava prestes a fazer a promessa para se tornar “aspirante” na SCV, o que no fim não se concretizou. Este sobrinho era conhecido por ser um favorito de Figari e se encontraria com o fundador quando ele estava na cidade.
Errázuriz, disse a fonte, estava bem ciente do interesse que seu sobrinho tinha pelo grupo, e sabia que Moroni estava se esforçando para o recrutar na época.
Para marcar o 10º aniversário da chegada do grupo ao Chile, Errázuriz também doou propriedades para a SCV, dando-lhes uma grande casa em Las Cruces, com 7 quartos e uma vista à beira-mar do Pacífico Sul.
(Uma fonte próxima à SCV, no entanto, descreveu essa propriedade como “um barraco de madeira em uma cidade costeira decadente fora de Valparaíso, na costa do Chile”. “De qualquer forma,a comunidade mal tem conseguido usá-la", disse Errázuriz).
Camila Bustamante, jornalista chilena que conheceu a SCV em 2000 quando se preparava para a Primeira Comunhão, e que acabou liderando projetos de jovens para o grupo ainda adolescente, disse que a propriedade foi dada sob a condição de “funcionar como algo pastoral”, embora esse tipo de presente não fosse comum.
Além de seu relacionamento, Errázuriz também visitou as comunidades da SCV enquanto viajava para o Peru. De acordo com um segundo ex-Sodalit que viveu no por pouco tempo no Chile, durante visitas a Lima, o cardeal, na ocasião, passou a noite na casa da comunidade no bairro de Camacho, onde se encontra a principal paróquia da SCV, Nossa Senhora da Reconciliação.
Errázuriz e a SCV também compartilharam fortes laços espirituais. Como a comunidade não tinha padres logo nos primeiros anos depois de chegarem ao Chile, eles iam à missa todos os dias numa paróquia carmelita próximo dali, exceto às quartas-feiras. Naquela época, o secretário pessoal de Errázuriz celebrava a missa na capela da comunidade e ouvia as confissões.
O primeiro ex-membro da SCV que viveu no Chile por mais tempo, Germán Doig, morto em 2001, também foi considerado culpado de abuso sexual. Doing disse, certa vez, que Figari e Errázuriz se mantinham em frequente contato através de e-mail e conversas telefônicas, bem como visitas pessoais sempre que Figari vinha a Santiago, muitas vezes Doing trazia presentes para o cardeal.
Segundo ele, Errázuriz nunca visitaria a comunidade. Sempre foi Figari quem foi à casa do cardeal. No entanto, após se aposentar em 2010, Errázuriz visitou a sede da SCV em Santiago várias vezes, pelo menos duas entre 2013 e 2014.
De todas as comunidades do SCV, a do Chile era favorita de Figari, disse a fonte, explicando que “Luís Fernando ia algumas vezes por ano, mas sempre por longos períodos de dois, três, quatro e até cinco semanas.”
Uma das coisas que Figari fez no Chile, que não fez em outro lugar, disse a fonte, foi dirigir pela cidade com um seleto grupo de jovens envolvidos em seus projetos, “sendo um deles o motorista”. Um desses jovens homens, disse ele, "era o sobrinho do Cardeal".
José Rey del Castro, ex-membro da SCV, disse que o motivo pelo qual o fundador preferiu o Chile foi por causa do "conforto", já que a casa da comunidade estava situada em um bairro de classe média alta.
Figari, dizia ele, gostava de estar perto dos brancos e da classe alta, que no Chile é majoritariamente católica. Ele também gostava de poder andar pelas ruas sem que as pessoas soubessem quem ele era. Tinha a preferência por passar seu tempo com aqueles que tinham certos níveis de “poder e influência”, disse Castro.
Apesar do vínculo amigável ao longo dos anos, fontes dizem que Errázuriz e Figari não estavam em sintonia. Por exemplo, Errázuriz, como então presidente da Conferência Episcopal Latino-Americana, pressionou por uma quinta Conferência Geral em Aparecida de 2007, no Brasil, e obteve a aprovação do Papa Bento XVI. Figari foi "totalmente contra", disse uma fonte da SCV, já que ele estava feliz com as conclusões mais "conservadoras" da cúpula anterior, que ocorreu em 1992 em Santo Domingo.
"Ele lutou contra Errázuriz todas as vezes", disse esta fonte.
Apesar desses confrontos, mesmo depois de Figari ter sido enviado a Roma e de as acusações contra ele serem tornadas públicas, Errázuriz manteve laços - entre outras coisas, fazendo várias visitas pessoais a Figari enquanto este estava sob investigação. Figari também foi visitado por várias outras importantes personalidades católicas, incluindo o Cardeal americano James Francis Stafford e o italiano leigo Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio.
Fontes também dizem que os laços entre Errázuriz e a atual liderança da SCV foram impactados por desentendimentos sobre o destino de Figari. A liderança quer que ele seja expulso, enquanto Errázuriz acredita que ele deveria permanecer na comunidade e ser cuidado durante o resto de sua vida.
Bustamante, que escreveu um extenso artigo para o jornal chileno El Mostrador, ilustrando as conexões entre Figari e Errázuriz em 2017, o qual mencionou as visitas que fez ao fundador em Roma, disse que recebeu uma carta de Errázuriz no dia seguinte à publicação de seu artigo, e que pediu para ser postado na íntegra.
Na carta, Errázuriz disse que apesar dos relatos contrários do jornal peruano El Comercio, ele nunca disse à publicação que era um “velho amigo” de Figari.
O cardeal insistiu que sua tarefa como secretário da congregação do Vaticano para os religiosos era ajudar os fundadores a estabelecer a correta aprovação canônica “para que o carisma que Deus deu aos seus fundamentos fosse reconhecido e desse frutos à Igreja e à sociedade”.
Ele disse que já atuou ao lado de muitos outros fundadores além de Figari, e que ficou "surpreso" quando as acusações foram feitas no Peru. Além disso, negou as acusações de que teria usado sua posição e influência na Igreja para "suavizar" a sentença de Figari.
Rocio Figueroa, que foi a primeira Superiora Geral - na época chamado de “coordenadora geral” da Comunidade Mariana de Reconciliação (MCR), a divisão feminina da SCV, disse que considera que Errázuriz não sabia totalmente dos abusos de Figari antes deles irem a público porque “os Sodalits eram gênios enganadores”.
"Luis Fernando é o rei de saber enganar. Ele é um psicopata. Essas pessoas são especialistas em fraude", disse ela.
Figueroa - que foi uma das primeiras a falar sobre os abusos de Figari e que entre 2006 e 2009 atuou como chefe da seção feminina do antigo Conselho para os Leigos do Vaticano - disse que, no exterior, a SCV “tinha tudo que um conservador queria: eles eram fiéis ao Papa [e] muito rigidamente ortodoxos. Sendo assim, não havia maneira de entender o que estava acontecendo”.
O caso de Karadima no Chile, segundo ela, é diferente, “pois as vítimas foram a Errázuriz várias vezes. Então ele simplesmente: não acreditava neles, não queria acreditar, ou acreditava e queria ‘descontar’ neles”.
Proteger os agressores e atacar suas vítimas é “o 'modus operandi' dessas pessoas”, disse ela, e no Chile “ainda mais”, já que o escândalo envolvia pessoas que detinham uma quantidade considerável de poder, como Karadima, que veio de uma família rica que andava nos mesmos círculos sociais que a família Errázuriz.
De acordo com o primeiro ex-Sodalit, apesar do contato frequente que Errázuriz teve com Figari, teria sido difícil para qualquer um fora do Peru saber exatamente como era a cultura interna do SCV, já que a maioria dos graves abusos ocorreram no país enquanto o caso chileno com Karadima estava no “quintal” do cardeal.
Fontes dentro do SCV disseram que Errázuriz, em visita a Figari em Roma, expressou querer apoiá-lo por caridade, e que apesar dele não oferecer especificamente defesa a Figari ou reivindicar a inocência do fundador em sua presença, estava bem ciente da gravidade das acusações e preocupado de que o processo contra ele fosse justo.
Embora Errázuriz não tenha apoiado publicamente Figari desde que o fundador foi sancionado pelo Vaticano em 2017, houve vários relatos de outras pessoas do lado de Errázuriz defendendo Figari em ambientes mais reservados desde que as acusações se tornaram públicas em 2015.
Alguns membros do SCV relatam ter ouvido de pessoas próximas a Errázuriz que o cardeal defendeu diretamente Figari, e que sua defesa era inflexível.
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Laços entre o cardeal chileno e Luis Fernando Figari, fundador peruano da SCV têm raízes profundas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU