13 Outubro 2018
Por fora de qualquer prognóstico, o candidato neofascista Jair Bolsonaro quase levou a eleição no primeiro turno. Enquanto todos aqueles que têm ojeriza a suas ideias e princípios, e as agressões de seus apoiadores se multiplicam pelo país, se organizam para derrotá-lo no segundo turno, notam-se tensões entre setores da elite econômica brasileira, historicamente lenientes com a violência de estado. Para analisar o dramático momento, o Correio da Cidadania publica entrevista com a historiadora Virgínia Fontes.
O resumo é que o governo Haddad não permite ilusões, mas ao menos lutar contra as decepções. Aprendemos desde 2013 que ninguém lutará em nosso lugar. Somos nós, coletivamente, que teremos de enfrentar os monstros que saíram do abismo. Votaremos no número 13 contra o terror. Mas a convocação é, sobretudo, para a retomada das organizações das classes trabalhadoras e dos movimentos populares. Eleições são um momento. Há urgência aqui e agora. As milícias nas ruas controlando nossos passos e pensamentos são a antessala de um horror ainda mais dramático”, resumiu
Há anos distanciada das fileiras de um partido que ficou totalmente atrelado à figura de uma liderança hoje fora do jogo, Virgínia, autora de Brasil e capital-imperialismo: teoria e história é enfática em dizer que a derrota da chapa-militar é condição inegociável a todos que querem continuar a ter direito à cidadania. E sobre a campanha de Bolsonaro, afirma que há inúmeras mãos invisíveis a investir num presidente que garantiria o terrorismo de Estado e a liquidação de todos os direitos sociais e universais.
Soluções totalitárias com ameaças de extermínio da esquerda não resultam da eficiência ou ineficiência do PT. O que está por trás dessa enorme truculência espelhada no atual Congresso e na campanha Bolsonaro é o pânico diante do crescimento de uma enorme população de trabalhadores totalmente desprovidos de direitos. São terceirizados, flexibilizados, nano-‘empreendedores’ empurrados para as periferias, onde já vivem sob a violência. Essa gente, em breve, exigirá seus direitos. Por isso, precisam de um Congresso capaz de tornar letra-morta as leis existentes, como Temer fez e Bolsonaro promete piorar; por isso precisam de um Judiciário cujos integrantes ganhem como se fossem empresários, para pensar como eles”, analisou.
No entanto, não há espaço para ilusões num governo Haddad em tempos de crise estrutural de um capitalismo que não consegue renovar seus ciclos sem abusar dos trabalhadores(as) e dos recursos naturais. O que as eleições podem colocar em jogo é o simples direito de discutir e agir em prol de um projeto que não seja o totalitarismo híbrido de Estado e mercado.
“A institucionalidade burguesa, sob o capitalismo, é cada dia mais antidemocrática, mantendo entretanto um viés legal. Os interesses da grande propriedade capitalista estão sendo constitucionalizados, em detrimento dos interesses das populações trabalhadoras. As lutas das massas trabalhadoras precisam resultar em conquistas institucionais, uma vez que delas depende a própria subsistência de milhões de pessoas. Mas precisam saber que ao se manterem unicamente nesse viés, perdem capacidade de organização e formulação e reduzem sua própria capacidade de luta. Autonomia de classe e autossustentação são condições fundamentais para as lutas dos trabalhadores. Aliás, é assim que agem as classes dominantes”, explicou.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 11-10-2018.
Eis a entrevista.
Como você recebeu o resultado geral das eleições deste domingo? Como explicar a ascensão de Jair Bolsonaro, que subiu mais de 20 pontos percentuais na última semana?
Recebi o resultado com enorme tristeza. E, como muitos outros e principalmente outras, fiquei com muito medo. Medo de bandos que andam pelas ruas agredindo de quem discordam. Medo de novas milícias, que já desgraçavam a vida em nossas capitais, mas que agora se espalham por outros bairros das cidades, ameaçando bater e matar os que discordam deles. Quem são essas pessoas? O que farão se seu ‘chefe’ chegar ao governo? Violentarão mulheres, agredirão crianças, apenas por que elas defendem a justiça? Atacarão nossos jovens, apenas por pronunciarem alguma palavra que não gostem? Proibirão mães de amamentar seus filhos, como fizeram no Rio de Janeiro, dizendo que isso é uma ‘putaria’? Controlarão nossas vidas, pois seus chefes compram milionários sistemas eletrônicos que invadem nossos telefones e nossos e-mails, espalhando ameaças de todos os tipos, inclusive de mortes? O que isso significa?
Não é essa a vida que queremos.
O medo é o sentimento mais angustiante para o ser humano, mas é também um importantíssimo sinal de alerta. É preciso agir, é preciso enfrentar essas ameaças. Elas são um sinal grave de descompromisso com a própria humanidade.
Como explicar essa ascensão? As pesquisas de opinião assinalavam que Bolsonaro tinha a dianteira no primeiro turno. Mas não imaginei que ocorreria uma subida de tais proporções. A meu juízo, a primeiro razão é que Bolsonaro se apresenta falsamente como se fosse uma ruptura com “tudo o que está aí”, quando na verdade é a continuidade terrivelmente piorada do desgoverno Temer. Isso precisa ser dito e demonstrado todo o tempo, pois os eleitores querem mudança. E têm razão de querer mudança. Mas precisam saber que a campanha Bolsonaro é um prato requentado e meio azedo, temperado com agrotóxicos, fermentado sob o desgoverno Temer.
Uma segunda razão é que alguns acreditam que, afinal, ‘não faz diferença’. Faz sim! Há uma técnica explícita de amedrontamento em curso. Para além da perseguição no whatsapp e no facebook, algumas entidades empresariais, especialmente aquelas ligadas ao agronegócio e ao comércio, fazem chantagem com seus empregados, ameaçando demiti-los e outras coisas do mesmo estilo, caso não votem em Bolsonaro. Fazem reuniões, impõem roupas especiais de campanha, invadem caixas postais etc.
A Justiça e a grande mídia evitam enxergar o que a grande imprensa internacional já grita, apavorada com o que estão vendo aqui: uma candidatura cercada de bandos armados, que apregoa a violência, é um risco para toda a humanidade. Não pode ser tratada como uma ‘candidatura’ normal.
Podemos considerar normais os elementos que constituem e financiam a campanha da chapa militar Bolsonaro-Mourão?
Tudo é estarrecedor nessa campanha. Ainda não temos os dados precisos dos financiamentos oficiais da campanha, mas já é evidente que muita coisa está sendo oculta, a começar pelo custo da mídia e das redes sociais. Trata-se de programas de computação para serem replicados em redes sociais. Estes programas investigam a vida das pessoas através de suas compras em cartão, dos dados de lojistas, dos termos usados nos e-mails e das consultas na internet.
Analisam os dados e mandam mensagens individualizadas de diferentes tipos: para as que têm medo, prometem proteção; para as que são ‘descoladas’ mandam mensagens ‘engraçadas’; para os que têm opiniões diferentes, mandam mensagens ameaçadoras ou pornográficas. Também podem usar ‘endereços de internet’ falsos, e disparar enxurradas de mensagens. Esse tipo de campanha custa caríssimo, pois a mineração dos dados é custosa e a programação de máquinas de resposta que usam e-mails e fotos aparentemente verdadeiros também é cara.
Há muitas máquinas agindo a partir centrais implantadas fora do Brasil. Isso ocorreu no caso Trump e na Inglaterra, e gerou processos importantes contra a Analytica, empresa que disponibilizou tal ‘guerra de redes’, assim como contra o Facebook, que forneceu dados individuais. Essa empresa está implantada também no Brasil. Eduardo Bolsonaro se encontrou com Steve Bannon, multimilionário estadunidense, que foi chefe da campanha de Trump nos EUA, e disse: “Bannon se colocou à disposição para ajudar”, disse Eduardo Bolsonaro, em agosto (de 2018). “Isso, obviamente, não inclui nada de financeiro. A gente deixou isso bem claro, tanto eu quanto ele. O suporte é dica de internet, de repente uma análise, interpretar dados, essas coisas”.
Como se vê, recebem ‘suporte’ informático. Bolsonaro mantém ainda estreitas alianças com grupos abertamente apoiados por empresários dos EUA, como o MBL, que não tem pejo de envergonhar a bandeira brasileira com propaganda em inglês e com dinheiro do estrangeiro, divulgando vídeos de extremada violência. Sem falar de jogo em vídeo apavorante, denunciado inclusive em matéria d’O Estado de São Paulo.
O mais impressionante é a falsificação insistente da verdade. Bolsonaro é candidato da continuidade da tragédia econômica aprofundada por Michel Temer. Bolsonaro prometeu que “nada do que foi aprovado pelo governo Temer será desfeito”, em reuniões com empresários.
O Major Olímpio, que levou milhões de votos em São Paulo, foi matéria na revista Piauí por ter empresas de segurança, disfarçadas em nome de familiares, pois a lei impedia que fosse o proprietário. Também menciona que não pagou os impostos dessas empresas. A questão da corrupção é grave no país. E o grupo de Bolsonaro reúne os elementos para permitir que ela fique onde sempre ficou. Com os de cima desobedecendo as leis quando lhes interessa. Com os de baixo sem direitos.
Com certeza, há militares e empresários corretos. Alguns vêm se pronunciando publicamente. Muito poucos, entretanto. Todos estamos vivendo as consequências do desgoverno Temer e precisamos enfrentar de cabeça erguida as dificuldades do momento, que são gravíssimas. A vida política em democracias, mesmo se blindadas, é uma construção permanente. Bolsonaro não melhorará a vida da nação, como não o fez Temer. Ao contrário, a deixará quebrada economicamente, isolada no mundo, exaurida e ensanguentada.
Acredita na reversão de sua vantagem no segundo turno?
Tenho certeza de que a maioria da população enfrentará o medo e virá para as urnas derrotar o risco que Bolsonaro e seus seguidores representam. O que vemos agora, nessas eleições, é bem mais grave e dramático do que mera polarização. É a defesa do extermínio e da liquidação de oponentes, física e intelectualmente. Os vídeos e as campanhas de Bolsonaro veiculadas pelas redes sociais pregam espancamentos, assassinatos e humilhação de todos aqueles que eles discordam e que definem como inimigos. Apenas por discordar. Não há nem mesmo razões ou argumentos, e apenas votar em outro candidato pode ser motivo de agressão. Essa violência já está nas ruas. Bolsonaro sofreu um ataque homicida. O agressor está preso. Os apoiadores de Bolsonaro rondam as ruas, muitos deles armados, arvorando-se em milícias do pensamento. Soltos e circulando.
Quando a expressão do pensamento é interditada, quando pensar diferente pode ser razão de assassinato, estamos diante de crimes contra a humanidade. O desgoverno Temer já mostrou o que isso significa, com o silêncio sobre a execução de Marielle Franco e de Anderson Gomes e com a desmedida ocupação militar no Rio de Janeiro.
Muita gente votou em Bolsonaro por estar de ‘saco cheio’ de” tudo isso que está aí”. Pela mesma razão, muitos nem foram votar. Também estou de saco de cheio de tudo isso que está aí, e quero mudanças urgentes. Desgraçadamente, Bolsonaro é a continuação piorada de tudo isso que está aí. Com mais violência e brutalidade contra os de baixo e com mais subserviência com os de cima.
Aqueles que hoje apoiam Bolsonaro podem tornar-se amanhã seus alvos de ataque. Ninguém está a salvo. Não é uma razão pequena. Precisamos virar esse jogo brutal, antes que atinja a todos e, principalmente, a todas.
Haddad é o melhor oponente ao deputado de obscura carreira parlamentar neste segundo turno? O que dizer da influência de Lula nessas eleições e no cenário político nacional?
Sou socialista com muito orgulho, e o PT não correspondeu às minhas expectativas, por diversas razões. Fui e sou acidamente crítica de seus governos desde a primeira hora. Há muita diferença entre identificar corrupção em quase todas as relações entre grandes empresários e os partidos e entre atribuir toda a responsabilidade a apenas algumas pessoas. O processo contra Lula está sendo contestado por inúmeros juízes de primeira linha mundo afora, que reafirmam seu caráter político. Vale ler o processo, pois a situação é kafkiana. Lula realizou dois governos de mãos dadas com as burguesias brasileiras. Decerto, contribuiu para implantar políticas de melhorias, como a do salário mínimo, da ampliação da bolsa-família etc. Dilma prosseguiu de mãos dados com o empresariado, mas desagradou a alguns deles.
O candidato, porém, não é Lula, e sim Fernando Haddad. Ele tem o apoio de Lula, mas Fernando Haddad é outro candidato, outro percurso, outra trajetória política. Votarei com convicção em Fernando Haddad e já estou em plena campanha.
Nós, porém, aprendemos desde 2013 que ninguém lutará em nosso lugar. Somos nós, coletivamente, que teremos de enfrentar os monstros que saíram do abismo. Votaremos no número 13 contra o terror.
Mas a convocação é, sobretudo, para a retomada das organizações das classes trabalhadoras e dos movimentos populares, pois somente sua autonomia permitirá sustentar as lutas que se avizinham.
Eleições são um momento. Há urgência aqui e agora. As milícias nas ruas controlando nossos passos e pensamentos são a antessala de um horror ainda mais dramático. Eleger Fernando Haddad é dar o primeiro passo para um longo enfrentamento.
Com a configuração do Congresso, não estamos diante de um governo praticamente selado em seus rumos?
A configuração do Congresso só piorou desde a Constituição de 1988, enquanto o ativismo das diversas burguesias brasileiras e estrangeiras cresceu. Há inúmeros fatores que merecem ser mencionados, a começar pelos financiamentos de campanha fartamente irrigados por empresários, que compraram partidos inteiros, que elegeram seus amigos, à custa de campanhas milionárias e, agora com o controle das verbas públicas, se autofinanciam ou pagam pelas campanhas dos muito ricos. O próprio PT deixou de lado sua militância histórica e aderiu a marqueteiros e às práticas usuais dos dominantes. No atual Congresso de 2018, 48,85% dos eleitos são milionários, como patrimônio superior a R$1 milhão. No Senado, os milionários são 66%.
O empresariado brasileiro vem atuando de diversas maneiras, e não apenas pela violência à qual muitos parecem aderir. Implantaram uma extensa rede de entidades sem fins lucrativos, que penetram na educação e na saúde pública, e a partir dessas entidades entendem substituir a gestão pública pela privada. Isso vem significando profundo golpe nas práticas democráticas, e na destinação dos fundos públicos. Isso contribuiu para enfraquecer todos os partidos políticos, inclusive os seus.
Nenhum destino está selado para sempre, entretanto. Sou historiadora e sei que o futuro não está traçado, e resulta das contradições que emergem nas sociedades. E a sociedade capitalista é a maior produtora de tensões, catástrofes, crises e contradições. Ninguém pode controlar essas contradições, nem mesmo o mais poderoso dos presidentes, ou o mais rico dos empresários internacionais, ou o mais terrível dos matadores. Eles podem lançar suas populações em guerras terríveis – e já o fizeram diversas vezes. Podem matar milhares ou milhões. Mas não controlam o curso da História. A história é o resultado silencioso das aspirações das grandes maiorias.
Qualquer que seja o próximo governo, teremos lutas duríssimas pela frente. Seguramente haverá lutas intestinas entre os empresários que parecem agora estar quase todos com Temer e seu continuador, Bolsonaro. As disputas entre eles já estão ocorrendo, mas são cuidadosamente escondidas. Sua gravidade vem sendo adiada pelos assaltos diários aos direitos dos trabalhadores.
Soluções totalitárias com ameaças de extermínio da esquerda não resultam da eficiência ou ineficiência do PT. O que está por trás dessa enorme truculência espelhada no atual Congresso e na campanha Bolsonaro é o pânico diante do crescimento de uma enorme população de trabalhadores totalmente desprovidos de direitos. São terceirizados, flexibilizados, nano-‘empreendedores’ empurrados para as periferias, onde já vivem sob a violência. Essa gente, em breve, exigirá seus direitos.
Afinal de contas, são gente! É por isso que tropas ‘bolsonaro’ já começam a erguer muros por dentro do país, muros com barreiras feitas por aloprados com armas, dispostos a atirar sem direção. Por isso, precisam de um Congresso capaz de tornar letra-morta as leis existentes, como Temer fez e Bolsonaro promete piorar; por isso precisam de um Judiciário cujos integrantes ganhem como se fossem empresários, para pensar como eles.
As contradições, entretanto, persistem. Há muitos juízes limpos, há parlamentares que ousarão lutar. A população está dividida e mesmo aquela que votou em Bolsonaro não se deixará enganar por muito tempo.
A repressão organizada contra a esquerda, contra negros, mulheres e homossexuais não tem futuro. O assassinato de jovens da periferia tampouco sustenta governos. Tudo isso pode ser sangrento e terrível, mas será derrotado. A grande maioria dos trabalhadores são as mulheres. A desigualdade brasileira é um estopim permanente e só enfrentando suas causas é possível modificar o processo perverso no qual estamos mergulhados.
Existiria uma espécie de “segunda linha” das burguesias nacional e internacional interessada na vitória de seu outsider de extrema direita, no sentido de encontrarem espaço para negócios liquidacionistas do Estado brasileiro em bases jurídicas mais flexíveis?
Essa é uma pergunta muito difícil de responder. As burguesias brasileiras jamais demonstraram ter um projeto de país ou de nação, mas a situação tornou-se grave nos últimos cinco anos. Apesar de nascidas no Brasil, empresários e empresas estão há várias décadas permeados por capitais estrangeiros. A condução política é feita por brasileiros, mas ela precisa contemplar seus associados, muitas vezes majoritários. Como alertou Florestan Fernandes, são constituídas com e pelo imperialismo, mas são entretanto burguesias, e não são fracas ou débeis, e sim truculentas.
Essas burguesias brasileiras se enredaram de maneira impressionante em desmantelar um partido como o PT, que lhes foi fiel. Elas atuam de maneira direta e indireta no interior do Estado brasileiro há muitas décadas, independentemente de voto ou de partido. O golpe de 2016 favoreceu um assalto burguês conjunto aos fundos públicos, desvencilhando-se dos integrantes do PT que também participavam da transformação de recursos públicos em ‘investimento’ privado.
Não é o Estado que acaba, mas as conquistas de políticas universais, com teor popular e social, que estão na mira. Os processos de privatização de empresas públicas – freados pelos governos PT, inclusive com apoio dos militares – devem se intensificar. Nesse sentido, até aqui há tensões, mas não há uma ‘segunda’ linha, e sim uma única, voltada para tentar contemplar as contraditórias exigências dos grupos díspares empresariais, às custas das massas trabalhadoras. A violência de Estado aumenta na mesma proporção do esbulho.
Tudo leva a crer que os governos do PSDB e do PT resultaram em profundas modificações intraburguesas. Nos governos de FHC, as privatizações escancararam as portas aos capitais estrangeiros, como já haviam feito os militares após o golpe de 1964. Essas privatizações, porém, não se limitaram aos estrangeiros, e reforçaram alguns setores das burguesias brasileiras que, com auxílio dos cofres públicos e das ‘moedas podres’, alçaram-se à condição de empresas multinacionais.
As privatizações também redesenharam o mapa da implantação burguesa no país, com o crescimento de parcela burguesa fora do eixo central paulista. Nos governos do PT o movimento de centralização e concentração da propriedade burguesa no Brasil se ampliou exponencialmente, com um pequeno grupo de megaempresários controlando enormes massas de capitais, que iam desde bancos a empreiteiras, de mineradoras a siderúrgicas, chegando ao agronegócio e aos fundos de pensões. Sempre mantendo escancaradas as portas para os capitais estrangeiros.
Este grupo se internacionalizou ainda mais e estreitou laços com bolsas de valores estrangeiros, com fundos de pensão brasileiros e estrangeiros, com fundos de investimentos e grandes bancos brasileiros e estrangeiros. A maioria é estadunidense, mas há também presença de capitais de diversos países, como os suíços, espanhóis, ingleses, franceses ou chineses. Este não é um perfil apenas urbano ou rural, pois atravessa ambos os territórios. O agronegócio é uma reunião de proprietários de terras, de bancos, de fundos de investimento, de indústrias, de mídia e de megacorporações estrangeiras.
A grande maioria das burguesias médias e até mesmo parcela expressiva da grande burguesia brasileira ficou fora desse processo e espremeu-se entre as conquistas de direitos de trabalhadores e a pressão das megaburguesias, brasileiras ou estrangeiras. Estas tinham facilidade de captação de recursos públicos diretos, via BNDES e fundos de pensões, de captações no mercado de capitais brasileiros e estrangeiros e aos paraísos fiscais, além de atuarem econômica e politicamente através de malhas de entidades sem fins lucrativos.
As jornadas de junho de 2013 foram o momento em que as tensões sociais tornavam-se explícitas. Do lado popular, 2013 mostrava a reivindicação de mais direitos e a descrença no PT para assegurá-los. Do lado das direitas, emergiram grupos protofascistas, com apoio empresarial (brasileiro e estrangeiro, como o Atlas Network) e de seus políticos, que entre truculência, recursos informáticos e forte apoio midiático, buscaram construir um inimigo público (a feição é tipicamente fascista), as ‘esquerdas’, inicialmente identificadas pelo petismo.
E isso apesar da atuação do PT estar distante de qualquer comunismo ou socialismo e atrelada ao compromisso com setores burgueses no neodesenvolvimentismo. A atuação da Lava Jato foi fundamental para os grupos fascistas, ao atuar de maneira seletiva sobre a corrupção, deixando intocadas suas profundas raízes históricas, e podando sobretudo o PT, o ‘parvenu’. Embora tenha atingido outros partidos, a Lava Jato manteve durante quase todo o tempo o foco, desigualmente, no PT. Colunista do jornal Valor chegou a dizer que Moro entrou na defesa de Bolsonaro de maneira quase direta.
Ou seja, as disputas internas da burguesia não são lineares como parecem ao público.
No início da crise econômica, o golpe de 2016 foi a evidência da incapacidade burguesa de direcionar tais tensões através da institucionalidade. As burguesias pequenas, médias e grandes iniciaram o golpe, associando-se aos grupos fascistas e dando-lhes enorme visibilidade, com o pato da Fiesp. Acionaram toda a capilaridade empresarial através do amedrontamento, nos campos e nas cidades, mobilizando os pequenos gestores, comerciantes, pequenos proprietários de terra, profissionais liberais ainda sobreviventes.
A megaburguesia, em parte sob ataque da Lava Jato, em parte próxima da extrema-direita, aliou-se à aventura do impeachment. O ponto de união entre todas elas foi rebaixar drasticamente as condições de vida dos trabalhadores no Brasil e extorquir recursos públicos. As principais joias da Coroa restantes são a previdência pública e a Petrobrás, e estão no alvo cotidianamente.
Após o golpe de 2016, o governo Temer exibiu todas as fissuras e contradições desses grupos, com muitas malas e algumas mochilas de dinheiro, com conversas noturnas com megaempresários etc. Sua sustentação dependeu de aumentar a violência contra os setores populares, para garantir a pauta extorsiva dos recursos públicos, enquanto assegurou facilidades para praticamente todo o empresariado (PEC do Teto de Gastos para o setor financeiro, Refis e repatriamento de capitais etc.).
Não era uma direção política, mas o remendo disponível. Cumpriu todas as pautas impostas, aprofundando ainda mais a crise econômica, social e política. Com isso, exacerbou a insegurança pública, e ela foi elevada à questão central nas atuais eleições. Um inimigo, as esquerdas (agora já genéricas) e uma pauta quase única, a insegurança (também genérica). Ambas a serem atacadas pela truculência. A composição bolsonarista se consolidava, agora assentada no senso comum da violência genérica, a ser atacada com maior violência.
Vale ressaltar dois movimentos nesse processo: em plena crise econômica acirrada pelas tensões partidárias e pela Lava Jato, ampliou-se o ataque frontal da grande propriedade capitalista, hoje expressa em grandes holdings. Quer tenham origem em empresas brasileiras, estrangeiras ou associadas, avançam sobre todos os ativos que podem se tornar fonte de lucro, especialmente águas, saúde, educação, mineração e as terras agricultáveis. É a escalada da devastação da natureza e dos direitos. A crise brasileira favoreceu a compra de empresas pelos grandes fundos internacionais, e algumas das megaburguesias perderam espaço. Até agora nenhuma desapareceu, embora tenham estreitado ainda mais suas alianças com capitais estrangeiros, inclusive chineses.
A redução de seu papel, entretanto, não salvará as pequenas e médias, que continuam a ser devoradas, agora por startups das grandes holdings e de fundos que prometem ‘alavancá-las’. A perda do controle das empresas por essas burguesias que aceitaram liquefazer as instituições democráticas é intensa. Estão sendo reduzidas seja a capatazes das empresas que lhes pertenceram outrora, seja a proprietários de mínimas proporções de participação em algumas holdings. O segundo movimento é ainda mais destrutivo, e resulta da suposição de que captando recursos externos poderão enfrentar a crise fiscal que o primeiro movimento intensifica. Aprofundam a crise e bloqueiam perspectivas de saída. Inclusive econômicas.
A aliança entre o PT e boa parte dessa megaburguesia favorecia alguns passos peculiares, como a penetração de capitais brasileiros, muitas vezes associados a capitais estrangeiros, em países com governos progressistas ou mesmo socialistas, assim como a incorporação ao grupo dos BRICS. Isso envolvia manter aberta a circulação de capitais e comportamentos formalmente democráticos. Mas envolvia também presença política no cenário internacional.
A aliança – precária e sem saídas institucionais – entre interesses e comportamentos empresariais díspares no pós-petismo apoiou-se na extrema-direita estadunidense, através de Institutos como o Von Mises e ativistas de extrema direta, como o MBL. Definido qual seria o inimigo comum, partidos burgueses como o PSDB, o DEM e o MDB acreditaram que poderiam direcionar tal extrema-direita através de suas organizações clássicas e, sobretudo, por seu controle da mídia. Bolsonaro e os grupos pró-fascistas deveriam permanecer como chantagem permanente, como retaguarda. Não foi o que ocorreu.
Não à toa a imprensa burguesa internacional se preocupa com essa rápida escalada da extrema-direita fascista no Brasil. Ela vem observando a atuação de seus pares jornalistas e das burguesias brasileiras e sabem – por experiência – que práticas totalitárias não são controláveis. Essa é aliás uma diferença entre a imprensa brasileira, que procura ocultar os traços gritantemente totalitários de Bolsonaro, e a estadunidense, que expressa as divisões internas das classes dominantes e alerta para o risco de fascismo.
Há ainda outras modalidades de atuação empresarial, e eu e vários pesquisadores acompanhamos as participações no Estado de entidades sem fins lucrativos, mas que apresentam fortes sinais ‘engordativos’. Pela última pesquisa do IPEA, contam-se atualmente 820 mil Organizações da Sociedade Civil, com uma folha de pagamentos de 3 milhões de trabalhadores. O IPEA não tem como avaliar os trabalhadores precários que orbitam nessas entidades, pudicamente chamados de ‘voluntários’.
Há enorme variedade entre essas entidades, desde associações efetivamente populares até grandes universidades e hospitais que não pagam impostos (‘beneficentes’, mas caríssimos), ou semiempresas responsáveis pela terceirização no setor público, como as OS da saúde. Incluem entidades voltadas para a própria organização das burguesias, assim como outras agem para transformar a gestão pública em privada. Traduzem o ‘ativismo’ empresarial para domesticar populações em períodos formalmente democráticos. Em muitas delas, mesclam-se empresários brasileiros e estrangeiros. O principal modelo é tipicamente estadunidense, visível na atividade das Fundações Ford e Rockefeller, por exemplo.
Envolve também grandes números de entidades brasileiras, pois o modelo está disseminado e ocupa nichos estatais, de formulação política e de mercado. A atuação de tais entidades empresariais (‘aparelhos privados de hegemonia’) contribuiu, nos últimos anos, para deslegitimar as opções eleitorais populares, ao encaminhar soluções empresariais pré-preparadas para a atuação política dos gestores em municípios, estados e no próprio governo federal. Dadas as suas dimensões, é possível imaginar que tensões apareçam também nesse terreno ‘associativo’, especialmente na questão ambiental. Mas não há ainda sinais claros.
Nenhum desses processos aponta para o fim do Estado brasileiro nem para sua atuação menos ditatorial ou violenta. Ao contrário, assinalam que a expansão das relações sociais capitalistas contemporâneas se faz sob o signo do crescimento da violência direta sobre as grandes massas da população, trabalhadores a cada dia com menos direitos.
Temer foi o remendo disponível. Bolsonaro segue comprometido com as pautas de Temer, mas agora a situação é outra. Bolsonaro vem da ditadura, se apoia em militares dela saudosos e estimula os setores fascistas até então ruidosos, mas sem acesso direto à institucionalidade, pela qual aliás não manifestam apreço. As tensões intraburguesas talvez se acomodem com Bolsonaro. Mas não as que fermentam na vida das classes trabalhadoras.
A defesa do voto em Fernando Haddad não tem a ilusão de interromper a escalada da grande propriedade no Brasil, mas de interromper uma dinâmica que pode se tornar incontrolável. É preciso que os trabalhadores tenham a possibilidade de organizar-se para enfrentar o atual cenário.
O que considera da influência evangélica no pleito?
As Igrejas têm um histórico antigo de interferência política conservadora no Brasil. A concorrência entre as grandes denominações religiosas, especialmente Católica e Neopentecostal se acirra, mas isso não tem se traduzido em diferenciação política forte. Há mesmo uma certa aproximação em posições muito conservadoras. O papado aparentemente se aproxima de posições mais populares, criticando as formas de violência pública e privada, mas pelo visto sofre boicote entre suas próprias fileiras. O caso da atuação da Arquidiocese de São Paulo em seu estrangulamento político na PUC é inquietante. A CNBB deu uma declaração vaga, sem se pronunciar por um ou outro candidato, apenas sugerindo ‘candidatos favoráveis à democracia’. Alguns de seus integrantes, entretanto, iniciaram uma campanha contra o fascismo, mas não parecem ter a organicidade de uma iniciativa institucional.
As Igrejas protestantes são muito variadas e, na diretriz mais influente, como a Universal, sua principal liderança, Edir Macedo, apoiou abertamente Bolsonaro, o qual contou com intensa campanha de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro. Após reunião, 5 mil líderes da Assembleia de Deus declararam publicamente apoio a Bolsonaro. Ambas estão assentadas na teologia da prosperidade, até aqui baseada em fervorosa obediência e em comportamentos sociais definidos de maneira bastante rígida, especialmente contra a homossexualidade e o feminismo.
Tais igrejas têm assumido um comportamento político de apoio às medidas antipopulares e de viés moralizante, tanto nas pregações quanto na política (a bancada da Bíblia, e sua proximidade com as bancadas da bala e do boi). Ao mesmo tempo realizam uma acolhida espalhafatosa e prometem milagres para minorar os crescentes problemas econômicos e sociais de seu largo público. Algumas delas já vinham organizando milícias próprias.
Com Bolsonaro, que trafegou do catolicismo para a Assembleia de Deus, aumenta o risco gravíssimo de imposição violenta de princípios religiosos aos que não compartilham da mesma crença e é de se esperar um aumento de tensões entre religiões.
Essas tensões estão sendo transferidas – empurradas para a frente – através do acesso aos fundos públicos, pela via de isenções fiscais milionárias para entidades religiosas, ‘sem fins lucrativos’. Nesse âmbito, até aqui – ao que eu conheça – todas as grandes denominações religiosas se unificam e deixam em segundo plano os valores religiosos específicos, em troca dos fundos públicos.
Não obstante, as contradições da vida social concreta se expandem, há enorme juventude participando de cultos e missas, com comportamentos que não se coadunam com imposições milicianas. A enorme frequência de mulheres e de negras e negros em todos os espaços (profissões, religiões, universidades) exprime mudanças na composição da base social, onde grande parte das famílias é dirigida por mulheres. Essa base social reivindica políticas sociais públicas.
A estratégia empresarial tem sido a de propor um formato privatizado para as políticas sociais, através de ‘entidades sem fins lucrativos’. A longa duração e o aprofundamento da atual crise econômica, com a retirada de direitos e as disputas entre grandes empresários pelo fundo público – inclusive religiosos que são grandes empresários – tende a levar a disputas severas, transferidas para o próprio interior das religiões.
Qualquer seja o vencedor, o que ficará para o país, em especial por fora da institucionalidade, nos próximos tempos?
A institucionalidade burguesa, sob o capitalismo, é cada dia mais antidemocrática, mantendo entretanto um viés legal. Os interesses da grande propriedade capitalista estão sendo constitucionalizados, em detrimento dos interesses das populações trabalhadoras. Chantagens sobre grandes massas populares e expropriações de direitos duramente conquistados têm sido um triste espetáculo. E isso não apenas no Brasil. As classes dominantes, aqui e afora, aprofundaram sua atuação por dentro e por fora dos Estados, além de agirem dentro e fora das nações. Sob a batuta da grande propriedade do capital em escala internacional.
As lutas das massas trabalhadoras precisam resultar em conquistas institucionais, uma vez que delas depende a própria subsistência de milhões de pessoas. Mas precisam saber que ao se manterem unicamente nesse viés, perdem capacidade de organização e formulação e reduzem sua própria capacidade de luta. Autonomia de classe e autossustentação são condições fundamentais para as lutas dos trabalhadores. Aliás, é assim que agem as classes dominantes.
Qualquer que seja o vencedor das próximas eleições, o que se abre é um enorme período de lutas e de tensões sociais.
Bolsonaro é a ameaça do extermínio aberto de oponentes, num primeiro momento, o que já vem ocorrendo (não esquecer de Marielle Franco e Anderson Gomes, ainda sob Temer). Tudo indica uma generalização de situação similar à mexicana, onde se mesclaram traficantes, milícias, policiais e forças armadas em massacres quase cotidianos, devastando os setores populares e a oposição política. O país se desfazia, mas o sétimo maior bilionário do planeta, em 2018, é o mexicano Carlos Slim Helu.
Bolsonaro se apresenta como a defesa do empresariado para além de todas as instituições e à custa de todo e qualquer direito popular. Ninguém, nem o próprio empresariado (inclusive a mídia) a quem ele pretende servir, tem ideia do que isso significará caso ele seja eleito. O assalto ao fundo público tem um limite – o próprio fundo público, mesmo se convertido em dívida pública, como vem ocorrendo. A generalização de violência direta e miliciana se abaterá em cheio sobre os opositores, mas em seguida poderá se transferir também para as lutas intestinas entre grupos específicos ou entre setores das próprias classes dominantes.
A eleição de Fernando Haddad é fundamental para bloquear esse cenário dantesco. No entanto, a eleição de Haddad não deve suscitar ilusões. A luta das classes trabalhadoras serão mais duras nos próximos tempos.
O enfrentamento ao capital, no formato dramático que vem impondo, é a cada dia mais fundamental.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Um Brasil de Bolsonaro será quebrado economicamente, isolado no mundo, exaurido e ensanguentado”. Entrevista com Virgínia Fontes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU