05 Junho 2018
“Sob a Pata do Boi”, que estreia nesta quinta-feira na Mostra Ecofalante, explica por que o problema persiste na Amazônia apesar de sua solução ser conhecida.
A reportagem é de Claudio Angelo, publicado por Observatório do Clima, 30-05-2018.
Ninguém ‘veve’ em torno de prejuízo. A gente ‘veve’ em torno de lucro”. Sentado na porta de um barracão de madeira, de chapéu de aba larga e camisa aberta, o pecuarista José Aureliano dos Santos resume em uma frase por que seu ganha-pão botou abaixo quase 20% da floresta Amazônica e não dá sinais de que vá parar.
A cena singela, gravada em São Félix do Xingu (PA), é uma das mais reveladoras do documentário Sob a Pata do Boi, dirigido por Márcio Isensee e produzido pelo site de notícias ambientais Oeco. O filme estreou na quinta-feira (31) na Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, em São Paulo, depois de ter recebido um prêmio do Ministério da Cultura da França. Em 49 minutos, ele explica como a cadeia da pecuária causou e causa a destruição da floresta – e como às vezes os agentes dessa destruição, como José Aureliano, merecem mais compaixão do que raiva.
O filme é uma grande reportagem. Isensee e seus colegas (os jornalistas Juliana Tinoco, Eduardo Pegurier e Bernardo Câmara) valeram-se de diversas viagens a campo, imagens históricas e muitas entrevistas para retratar um problema complexo, cujos impactos e as soluções são bem conhecidos, mas que persiste porque é lucrativo.
O quadro completo e didático – às vezes cruamente didático – traçado do setor da carne na Amazônia permite ao espectador fazer a ligação direta entre o pacote de carne na gôndola do supermercado e as violações ambientais e de direitos humanos e trabalhistas cometidas pelos desmatadores. Também relembra as razões históricas para o imenso passivo ambiental dos produtores rurais na região: nos anos 1970, eles foram chamados pela ditadura militar a colonizar a Amazônia “pela pata do boi” (daí o título do filme) e precisavam demonstrar ter desmatado 50% de suas propriedades para obter títulos de terra.
Os personagens são de uma franqueza tocante. Um dos pecuaristas entrevistados recorda-se, entre risadas, de como escravizou 200 peões para “formar” (desmatar) sua fazenda, auxiliado por ninguém menos que a polícia local. O prefeito de uma das cidades campeãs de devastação do Pará argumenta, aparentemente convicto, que criminosos ambientais deveriam ser tratados como “heróis”. Um fazendeiro que busca produzir de forma intensiva e sem desmatamento confessa que o setor é muito bom em chorar suas dificuldades, mas igualmente proficiente em esconder seus pecados.
Mas uma das melhores (e mais tristes) coisas do filme é documentar como a pecuária transformou não só a paisagem, mas a cultura do sul e sudeste do Pará. Saem as “lendas e mistérios da Amazônia”, entram a exposição agropecuária e o rodeio. Não fosse pelas feições indígenas dos peões, as cenas de rodeio do filme poderiam passar por Barretos ou Uberaba, mas são de Rio Maria e Xinguara. Em menos de 40 anos, criou-se um modo de vida e um conjunto de valores na população que tem mais identidade com o Texas do que com os igapós.
Este é um efeito colateral particularmente insidioso do desmatamento, que passa longe do radar da imprensa quando esta é mobilizada de tempos em tempos para cobrir a emergência dos números da devastação ou a sandice da vez da bancada ruralista. Uma parcela da população amazônica já incorporou a ausência da floresta no seu cotidiano – portanto, não tem mais nenhum motivo para defendê-la. Essas pessoas foram perdidas para a pata do boi; não toparão fácil nenhuma conversa sobre zerar desmatamento e recuperar o passivo ambiental da região, mesmo que isso seja o melhor para elas, para o Brasil e para a consciência de quem ama um churrasco e não quer vê-lo associado ao crime.
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