Por: Patricia Fachin | 05 Junho 2018
Apesar de a exportação de gado vivo de frigoríficos brasileiros para países do Oriente, com destaque para a Turquia, ter crescido desde o último ano, esse tipo de atividade vem “deixando de lado qualquer preocupação com o bem-estar animal e com o meio ambiente”, adverte a jornalista e fundadora da Agência de Notícias de Direitos Animais – Anda, Silvana Andrade.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Silvana frisa que a exportação de animais vivos gera uma série de riscos não só para os animais envolvidos, mas para o meio ambiente em geral, como o desastre que aconteceu em Barcarena, no Pará, em 2015, quando cinco mil bois morreram num naufrágio. “Isso gerou um passivo ambiental gigante e um impacto ambiental que tem consequências até hoje”, lembra. Ela também comenta a polêmica envolvendo os animais que embarcaram no Navio Nada, no início deste ano, rumo à Turquia. “É algo inadmissível, porque os bois vivem em meio a fezes e urina. Os responsáveis pelo navio dizem que soltam esses excrementos no mar, mas isso significa mais poluição ao meio ambiente. Além disso, há relatos de superlotação, porque os bois não têm espaço e ficam o tempo todo em pé, e às vezes eles caem de cansaço. A poluição sonora é ensurdecedora por conta dos equipamentos de ventilação que, segundo os relatórios, são insuficientes para manter a temperatura adequada para os animais. Há relatos de que quando um animal morre durante o transporte de navio, esse animal é jogado ao mar. Além disso, para atender 27 mil bois, havia somente três veterinários. Como cada veterinário dará conta de nove mil bois? Eles também não têm água e alimentação suficientes, ou seja, estão numa situação degradante, e as empresas não estão preocupadas com isso. Elas tratam esses animais como meros objetos sem qualquer valor, que serão vendidos apenas para gerar lucro para as empresas”, lamenta.
Na avaliação dela, a exportação de gado vivo para outros países sinaliza que o Brasil não respeita o Código Sanitário de Animais Terrestres, que foi feito pela Organização Mundial da Saúde Animal, nem a Declaração Universal dos Direitos dos Animais e a Lei Federal de Crimes Ambientais. Mas mesmo que essas legislações estivessem sendo cumpridas, pondera, “do ponto de vista moral e ético, esse tipo de exportação de animal vivo não tem razão de ser. Esse tipo de exportação não fará qualquer diferença na economia brasileira”.
Silvana Andrade | Foto: Arquivo Pessoal
Silvana Andrade é jornalista, vegana e ativista pelos direitos animais, com carreira de 34 anos desenvolvida na imprensa brasileira. Trabalhou como repórter, coordenadora de produção, editora e editora-chefe em redes de TV (Cultura, Record, Manchete, Globo News) e produtoras de vídeo. Atuou também como jornalista em empresas privadas e em órgãos governamentais. Faz planejamento de estratégias de comunicação interna e externa e cria projetos editoriais para todas as mídias. É a idealizadora, fundadora e presidente da Anda (Agência de Notícias de Direitos Animais), a primeira agência jornalística do gênero no mundo. É responsável por propor a ideia do Projeto de Lei 337/2006, que autoriza o Poder Executivo a criar hospitais veterinários públicos no Estado de São Paulo. É membro fundadora da Sociedade Vegana no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Pode nos dar um panorama geral sobre desde quando e por que o Brasil investe na exportação de gado vivo para outros países?
Silvana Andrade — Esse processo começou no Pará, no Norte do Brasil, e o grande problema é que a demanda por esse tipo de exportação vem crescendo bastante, em especial no ano passado para cá. A Minerva Foods, maior exportadora de bois vivos do Brasil, começou a operar no Porto de Santos, deixando de lado qualquer preocupação com o bem-estar animal e com o meio ambiente.
Há risco de desastres neste tipo de atividade, como o que aconteceu em Barcarena, no Pará, em 2015, quando cinco mil bois morreram num naufrágio. Isso gerou um passivo ambiental gigante e um impacto que tem consequências até hoje para o meio ambiente, o que demonstra que esse tipo de atividade não tem considerações éticas e ecológicas. Somente em março uma área equivalente a cinco mil campos de futebol foi desmatada na bacia do Xingu, para a agropecuária. Além da desconsideração aos direitos animais e ao meio ambiente, essa atividade não tem qualquer impacto positivo para a economia brasileira. Então, o Brasil não precisa desse tipo de exportação considerando do ponto de vista econômico de todo o setor.
IHU On-Line — Há uma tendência de aumentar esse tipo de exportação no Brasil?
Silvana Andrade — A demanda aumentou nos últimos anos, especialmente para a Turquia e países muçulmanos, por uma questão religiosa. A carne consumida pelos seguidores da religião muçulmana deve ser cortada pelo método halal - e para quem não sabe, o animal é morto de cabeça para baixo e o sangue deve ser totalmente drenado.
Infelizmente não existe uma consciência dentro do setor de agronegócio, porque vimos crimes contra o meio ambiente e contra os animais. Se houvesse uma preocupação maior, o agronegócio não faria esse tipo de transporte. Tudo o que se vê na exportação de animais é uma afronta ao Código Sanitário de Animais Terrestres e à Organização Mundial da Saúde Animal. É uma afronta também à lei federal brasileira de crimes ambientais, que é a Lei Federal de Crimes Ambientais número 9.605, de 1998. Além da questão ética, do ponto ponto de vista ambiental estamos gerando problemas não só nas cidades onde existem portos, mas também nos oceanos, por conta desse processo.
IHU On-Line — Em que condições esses animais são exportados? Como é feito o manejo do gado que é exportado e que informações você tem sobre maus-tratos?
Silvana Andrade — Quero deixar claro que sou contrária a esse tipo de exportação, mesmo que os bois sejam embarcados em ambientes climatizados e recebam massagens etc. Mas para além disso, o que acontece com esses animais é um horror. A Magda Regina, perita judicial e médica veterinária que realizou a perícia do Navio Nada, coletou imagens, e fez um parecer sobre o que viu lá. É algo inadmissível, que não podemos aceitar de forma alguma nos dias de hoje. Os bois viajam durante 15 dias em meio a fezes e urina. Os responsáveis pelo navio dizem que soltam esses excrementos no mar, se isso for verdade, significa mais poluição ao meio ambiente. Além disso, há relatos de superlotação. Os bois ficam amontoados uns aos outros, muitos caem de exaustão e ficam deitados em cima das fezes. A poluição sonora é ensurdecedora por conta dos equipamentos de ventilação que, segundo os relatórios, são insuficientes para manter a temperatura adequada para os animais. Há relatos de que quando um animal morre durante o transporte de navio, elel é jogado no mar. Um outro ponto grave é que no caso do Navio Nada havia somente 3 veterinários para atender 27 mil boi. Como é possível cada médico veterinário atender nove mil bois? Isso prova mais uma vez o descaso com os animais. Segundo a perícia, não tinham água e alimentação suficientes para enfrentar a viagem longa e torturante, ou seja, estavam ainda no porto numa situação degradante, e as empresas sem qualquer preocupação com isso. Elas tratam esses animais como meros objetos sem valor, que serão vendidos apenas para gerar lucro para essas empresas.
IHU On-Line – O que caracteriza o bem-estar animal? Que aspectos fundamentais estão envolvidos nessa concepção?
Silvana Andrade — A dignidade dos animais, ou seja, se considerassem o bem-estar desses animais, eles jamais poderiam ser transportados. Quando vamos a um hospital e vemos pessoas deitadas pelos corredores, achamos que essa situação configura um desrespeito à dignidade humana. No caso dos animais, a dignidade deles também não é respeitada quando eles são transportados em pé entre 12 e 14 horas, que é o tempo que leva para sair da fazenda e chegar até o porto. Imagina você sem água e sem alimentação durante 12 ou 14 horas.
Como bem disse o Procurador Geral da República em seu parecer sobre essa questão, muito do que ocorre nesse tipo de transporte se assemelha aos navios negreiros. Para você ter uma ideia, em algumas partes do navio a perícia não foi autorizada a entrar. Se nos locais autorizados a perícia já percebeu várias violações de direitos animais, imagina qual era a situação nos espaços em que os peritos não puderam entrar.
IHU On-Line — Existe alguma legislação nacional que estabelece as regras sobre a exportação de gado vivo e sobre os cuidados com os animais que são criados pela indústria com destino à comercialização?
Silvana Andrade — Existe o Código Sanitário de Animais Terrestres que foi feito pela Organização Mundial da Saúde Animal, mas o Brasil não está por dentro desse código. Além dessa legislação internacional, existe uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais e existe uma lei federal de crimes ambientais, mas nenhuma delas está sendo cumprida. Mas ainda que elas estivessem sendo cumpridas, do ponto de vista moral e ético, esse tipo de exportação de animal vivo não tem razão de ser, pois não fará qualquer diferença na economia brasileira.
IHU On-Line — A que outras condições, além de maus-tratos, os animais criados pela indústria são submetidos?
Silvana Andrade — Essa atividade, por si só, intrinsecamente, é um maltrato, porque leva à morte dos animais e os coloca em condições absolutamente degradantes, que choca mesmo quem se alimenta de animais. Vídeos produzidos por ONGs internacionais mostram as condições em que esses animais vivem: vemos galinhas que têm o útero exposto de tanto pôr ovos, sendo debicadas por outras, animais sendo covardemente espancados por funcionários dessa indústria, animais chorando, percebendo a morte premente etc. Eu não considero que colocar uma música clássica para esses animais ouvirem pode beneficiá-los, porque a própria condição de eles estarem confinados, sabendo que vão morrer ou sendo separados uns dos outros, gera dor. Veja, por exemplo, que a vaca e seu bezerro são separados dois dias depois do nascimento, porque esse bezerro vai virar baby-beef. Eles são seres sencientes como nós, e isso foi comprovado por neurocientistas que escreveram a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal, em julho de 2012. Eles declaram que "a ausência de um neocortex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos".
Se alguns produtores colocam papel dentro das carnes processadas, ou seja, se fazem isso com o cliente que vai dar lucro para a empresa, imagina o que eles não fazem com os animais. Falar dessa indústria é sinônimo de maus-tratos aos animais.
IHU On-Line — Nos últimos anos cresceu a discussão sobre o uso de animais para pesquisas científicas e alguns estudantes se recusam a assistir aulas que envolvam experimentos com animais. Como você vê o uso de animais para esse tipo de finalidade?
Silvana Andrade — Isso é algo absolutamente anacrônico. Eu não gosto de usar a palavra “desnecessário” porque parece que em algum momento este uso foi necessário. Hoje nós temos todos os recursos, toda a tecnologia, todo o conhecimento e o apelo da sociedade para que se usem métodos substitutivos às pesquisas com os animais. Dentro da academia, existe a possibilidade — não só hoje, mas já há muitos anos — de não utilizar os animais em sala de aula, porque temos métodos substitutivos para tudo.
Temos substituição para quase tudo que é testado em animais. Para o que não há temos todas as condições tecnológicas para encontrar métodos novos em substituição aos animais. Os métodos substitutivos são tão ou mais efetivos que os utilizados com os animais. Para se ter uma ideia apenas 1% das pesquisas realizadas com animais extrapolam para a fase humana, o que é nada e em qualquer outra situação seria descartado. Não precisamos ter uma ciência em 2018 tão desalinhada e distante da ética, porque o que fazemos hoje com os animais, os nazistas já fizeram com os judeus, os ciganos e os homossexuais.
IHU On-Line — Como a temática sobre os direitos dos animais tem sido discutida hoje no país? Quais são os principais impasses envolvidos nessa discussão?
Silvana Andrade — Nos últimos anos cresceu bastante na grande imprensa e nas mídias sociais a discussão sobre temas ligados aos interesses dos animais, o que é muito bom, porque mostra que a sociedade está avançando não só do ponto de vista moral e ético, mas também de uma consciência maior de respeito e preservação de todos os seres e tudo que habitam no planeta, como rios, mares, florestas. Mesmo quem consome carne, quando vê como esses animais são transportados, se indigna e não apoia esse tipo de prática. Eu enxergo isso como um avanço para o reconhecimento dos direitos animais.
Outra questão dentro deste tema que tem ganho espaço cada vez maior na sociedade é o fim do uso de animais para testes cosméticos. A sociedade não quer mais isso. Quando um produto não é testado em animais, ele é vendido com um valor agregado, e cada vez mais as pessoas estão privilegiando a compra de produtos que sem exploração animal.
IHU On-Line - Como você vê essas mudanças?
Silvana Andrade — Para ser objetiva vou citar apenas a recente pesquisa realizada pelo Ibope, que mostra que 14% dos brasileiros das principais capitais do país são vegetarianos. Em algumas cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, esse percentual chega a 16%. Isso demonstra uma mudança significativa no comportamento das pessoas em relação aos direitos animais, meio ambiente e à própria saúde. Hoje existe uma consciência maior e crescente, e acredito que esse é um caminho sem volta, porque o mundo tende a se tornar cada vez mais vegetariano e vegano. Os mercados precisam acompanhar essa tendência ou o agronegócio um dia não distante vai falir.
IHU On-Line — Quais são as questões mais urgentes a serem discutidas sobre os animais, hoje, no Brasil?
Silvana Andrade — Muitas coisas com relação aos animais ainda precisam ser discutidas, mas acredito que um dia vamos abolir o consumo alimentar de animais, o que é no meu entedimento, dentro da causa, a última fronteira a ser conquistada. Antes disso, serão abolidos a exploração de animais por entretenimento, na moda e em todos os setores onde ainda, infelizmente, os animais são abusados.
Brasil e Cuba foram os últimos países a abolir a escravidão humana, e, da mesma forma, hoje o Brasil é muito resistente ao fim da pecuária, porque temos uma classe feudal. Os agropecuaristas e ruralistas fazem do país o quintal deles, e querem ditar como deve ser a sociedade, que já não aceita os maus-tratos aos animais. Se hoje já existem 22 milhões de vegetarianos e veganos, a tendência é que esse número cresça ainda mais, e que daqui a 10 anos tenhamos cerca de 50 milhões de brasileiros vegetarianos ou veganos, ou seja, 25% da população. A indústria terá que se reinventar e acompanhar as mudanças da sociedade, assim como a justiça acompanha os avanços morais da socieadade através da renovação das leis.
Na indústria vegana, os produtos estão crescendo muito. Pessoas que eu não imaginava estão se tornando vegetarianas ou consumindo mais produtos veganos, o que reflete essa mudança na sociedade. Estamos mudando para um mundo sem crueldade, mais compassivo, ético e consciente.
Em 2017 o DataFolha já tinha mostrado que 63% dos brasileiros queriam reduzir o consumo de carne. A indústria tem esse dado, mas não se reinventa. Enquanto isso, fora do Brasil o mercado vegano atingiu bilhões de dólares e é cada dia maior. Recentemente, Vancouver aboliu o uso de canudos plásticos, mas mais do que isso, o mundo está discutindo e ainda veremos o fim do uso de plásticos. Por isso, a indústria precisa se reinventar e investir em novas tecnologias e criar novos produtos, assim ela terá muito mais dinheiro. Veja que hoje já existe o ovo, a carne, o camarão e o siri veganos; fora do Brasil é possível comer todo tipo de comida vegana. Além disso, temos os queijos e os leites vegetais, tudo com boa qualidade. Sei que agora estão desenvolvendo uma “carne vegana que sangra”, que é para essas pessoas que gostam da carne crua. O próprio Leonardo di Caprio e a Fundação Bill Gates têm laboratórios para a produção de carne vegana.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Silvana Andrade — O Brasil está passando por um momento estranho. Talvez o joio e o trigo estejam brotando juntos, para que depois sejam separados, por isso é um momento muito difícil, mas tenho esperanças. Para além da classe política que hoje nos causa tanta indignação e reduz o país a um tamanho que ele não tem, espero que a sociedade alavanque essa mudança e que possamos ter governantes com mais consciência em relação à ética animal, à biociência e ao planeta. Espero que possamos ser aquele país que escuto desde que nasci: um país do futuro.
Gostaria de ressaltar que nenhum valor monetário explica e justifica o transporte de animais e a exportação de gado vivo, ou qualquer exploração, maltrato e morte de animais. A economia será grande quando respeitar a vida e o bem-estar de todos, e isso inclui as árvores, os rios, os mares, ou seja, tudo o que existe nesse planeta, animais humanos e não humanos. Essa é uma economia próspera, qualquer outra é danosa aos humanos e aos não humanos.
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Exportação de gado vivo não respeita a dignidade animal. Entrevista especial com Silvana Andrade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU