05 Setembro 2017
O fosso eclesial entre o papa e os Estados Unidos será tão persistente quanto o fosso geopolítico; talvez ainda mais. Há uma fenda clara e inegável entre o Vaticano e o governo Trump em uma longa série de questões.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 04-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Poucos dias após a posse do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, eu falei da necessidade de o Vaticano forjar uma nova “Westpolitik” na sua relação geopolítica com os Estados Unidos e com o resto do mundo ocidental.
“Isso seria o paralelo à Ostpolitik vaticana em relação ao comunismo na Rússia e na Europa Oriental entre o início dos anos 1960 (João XXIII e Vaticano II) e a queda do Muro de Berlim (João Paulo II e Reagan-Bush I)”, eu escrevi.
Mas vários eventos dos últimos oito meses mostraram que a criação de uma “Westpolitik” não é uma das prioridades do Papa Francisco.
Seu discurso aos chefes de Estado e de governo da União Europeia no dia 24 de março, marcando os 60 anos do Tratado de Roma, mais uma vez demonstrou o seu pragmatismo muito real e o seu europeísmo não romântico.
A criação de cinco novos cardeais em junho passado – de Mali, Laos, San Salvador, Suécia e Espanha – confirmou que Francisco está redesenhando o mapa global da Igreja Católica, dando maior ênfase às “novas” Igrejas.
E, em uma mensagem publicada durante o verão europeu para o primeiro Dia Mundial dos Pobres, Francisco mostrou que a opção preferencial para os pobres também requer um mapa geopolítico.
“Infelizmente, nos nossos dias, enquanto sobressai cada vez mais a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos privilegiados, frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes sectores da sociedade no mundo inteiro”, disse ele na mensagem.
Tudo isso equivale a uma mudança historicamente notável. O Vaticano, que durante séculos teve um foco privilegiado no Ocidente, está agora praticamente deixando órfã essa parte do globo. Nisso, a questão estadunidense se destaca. Ao longo do ano passado, as tensões entre os Estados Unidos e o Papa Francisco, evidentes desde o início do pontificado, tornaram-se ainda mais claras.
Os anos entre 2014 e 2016 foram uma espécie de interlúdio. Foi uma transição das tensões no período inicial do pontificado de Francisco, que se concentrou principalmente nas questões da biopolítica – a posição do papa em relação ao foco às vezes exclusivo sobre questões da vida e homossexualidade, assim como o debate sobre a família e o casamento nos Sínodos dos Bispos de 2014 e de 2015.
Esses dois anos também se focaram nos preparativos para a visita papal aos Estados Unidos em setembro de 2015. Apesar da famosa coletiva de imprensa no avião, quando, em referência ao então candidato a presidente Donald Trump, o papa disse que construir muros “não é cristão”, o Vaticano tentou permanecer em silêncio sobre as eleições de 2016 nos Estados Unidos (embora, claramente, esperasse que Trump não ganharia).
O ano de 2017 marcou uma mudança significativa que esclareceu as posições dos dois lados e ilustrou o golfo que os divide. O agora bem conhecido artigo publicado em julho passado na revista La Civiltà Cattolica pelo editor, Antonio Spadaro SJ, e Marcelo Figueroa foi muito mais um diagnóstico de uma condição pré-existente do que a causa das tensões entre o Vaticano de Francisco e alguns setores do evangelicalismo branco e do catolicismo conservador (ou, mais precisamente, tradicionalista e neointegralista) nos Estados Unidos.
Agora, a questão é: “Qual o futuro das relações EUA-Vaticano?”. É essencial perguntar isso, porque as tensões atuais provavelmente irão perdurar, dada a falta de mudanças no futuro visível, tanto do lado geopolítico quanto do lado eclesial.
Geopoliticamente, o Vaticano sabe que a posição de Trump é mais sólida do que muitos imaginam. O presidente e a sua administração ainda têm o apoio da sua base e do Partido Republicano, e, dado o caos atual do Partido Democrata, é bastante improvável que o GOP irá perder uma das duas câmaras do Congresso nas eleições de meio de mandato do ano que vem.
Além disso, não há grandes eventos no horizonte que ofereçam uma chance de reforçar as relações transatlânticas. Não é imaginável que Francisco fará em breve (se é que fará) outra viagem aos Estados Unidos. E Trump não deve visitar o Vaticano no futuro próximo.
Além disso, a provável confirmação de Calista Gingrich (a terceira esposa de Newt Gingrich) como embaixadora dos Estados Unidos junto à Santa Sé provavelmente não vai melhorar a situação.
O elemento mais importante é que Francisco vê o mundo geopoliticamente a partir da perspectiva do Sul global. O mapa das suas próximas viagens ao exterior fala muito. Ele vai voltar à América Latina (Colômbia, Chile e Peru) e continuará pondo um foco particular na Ásia, onde as suas visitas a Mianmar e Bangladesh devem significar uma mensagem aos dois gigantes da região, China e Índia.
O outro gigante com o qual o Vaticano está se envolvendo nos níveis mais altos é a Rússia, que inclui um maior diálogo tanto com o governo quanto com a Igreja Ortodoxa Russa. O cardeal Pietro Parolin foi o primeiro secretário de Estado vaticano desde 1999 a visitar o país euroasiático, mas a sua visita a Moscou no mês passado não é sequer o auge dos contatos entre a Rússia e a Santa Sé.
“O presidente Vladimir Putin visitou o Vaticano cinco vezes e já teve duas conversas privadas com o Papa Francisco, em 2013 e 2015. Espera-se que ele irá encontra-lo novamente em janeiro próximo, quando ele for para a abertura de uma exposição de arte russa no Vaticano”, relatou a revista America.
A linha de fundo é que, no mapa-múndi de Francisco, o papel dos Estados Unidos não está no centro, senão para a situação coreana, que o papa abordou no dia 2 de junho em um discurso ao Conselho dos Líderes Religiosos Coreanos.
O fosso eclesial entre o papa e os Estados Unidos será tão persistente quanto o fosso geopolítico; talvez ainda mais. Existe uma fenda clara e inegável entre o Vaticano e o governo Trump em uma longa série de questões. Eles incluem imigrantes e refugiados, o ambiente, a proteção dos pobres e marginalizados, a política externa e questões de guerra e paz.
É de se esperar que a publicação do livro-entrevista de Francisco com o sociólogo francês Dominique Wolton ampliará o fosso cultural entre este papa e o neoamericanismo católico.
E, aliás, a grande história do livro não é que o futuro papa se consultou com uma psicanalista quando ele era um padre jesuíta de 42 anos.
A fenda entre Francisco e o conservadorismo católico estadunidense é óbvia. Mas o que também é notável é uma insatisfação persistente, embora discretamente expressada, que os liberais e progressistas católicos estadunidenses têm com esse pontificado. Primeiro, há insatisfação com o que o papa diz e faz, por exemplo, sobre as mulheres na Igreja e sobre as pessoas LGBT.
Assim como os conservadores questionam a “ortodoxia católica” de Francisco, os progressistas acreditam que ele “não foi longe o suficiente” na hora de promover mudanças na Igreja.
Mas há uma fenda maior e mais profunda entre o Vaticano e os Estados Unidos neste momento particular. A abordagem do Vaticano em relação à vasta nação da América do Norte também levanta um problema para os liberais estadunidenses que veem a sua pátria como um farol dos direitos individuais e um império benevolente de tutela moral que indica a estrada brilhante, mostrando ao resto do mundo o caminho.
Essa tensão de liberalismo e progressivismo de alto nível moral tem sido fortalecida como uma reação ao fenômeno Trump. Mas, do ponto de vista cultural e religioso, não coincide com a oposição do Papa Francisco ao presidente dos Estados Unidos; em vez disso, na realidade, ela contribui para caricaturar o seu pontificado de uma forma ideológica.
O fato é que o Vaticano é um tipo particular de “exterior” – embora também certamente parte dele – com o qual a cultura estadunidense – e não apenas a cultura conservadora – está tentando lidar neste mundo pós-estadunidense. Como um jornalista estadunidense afirmou em um livro de memórias recentemente publicado, “os estadunidenses estão surpresos com a relação direta entre o seu país e os estrangeiros porque nós não reconhecemos que os Estados Unidos são um império”.
Isso também se aplica às relações extremamente complexas entre o Vaticano e os Estados Unidos – e continuará a fazê-lo até mesmo para além deste pontificado.
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Qual o futuro das relações EUA-Vaticano em um mundo pós-estadunidense? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU