05 Novembro 2014
Um importante cardeal americano no Vaticano disse que, sob este papa, a Igreja Católica vem sendo um “navio sem leme” e que “os fiéis estão se sentindo um pouco enjoados”.
A reportagem é de Rick Hampson, publicado pelo USA Today, 01-11-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O arcebispo da Filadélfia se queixa de que um recente evento no Vaticano convocado pelo Papa Francisco produziu certa “confusão”, acrescentando: “Confusão é do diabo”.
Leigos de um grupo católico conservador disseram se sentir “traídos” por um relatório provisório produzido durante os dias de encontro, em particular pelas passagens em que se propunha uma atitude mais acolhedora para com as pessoas homossexuais.
Para estes e outros católicos americanos conservadores e tradicionalistas, o papa de Francisco parece ser irritante, preocupante e intrigante.
“Os conservadores tiveram de tudo a seu favor durante aproximadamente 30 anos, e agora a coisa parece estar mudando de lado”, disse o Paul Sullins, padre que leciona Sociologia na Universidade Católica da América, em Washington, DC. “Agora eles estão se sentindo um pouco excluídos, o que é exatamente como os progressistas costumavam se sentir”.
Este sentimento ocorreu durante os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-13), conservadores doutrinais que não gostavam muito de debates e muito menos de dissenções quando se tratava dos ensinamentos da Igreja a respeito de questões tais como a ordenação de mulheres e o celibato sacerdotal obrigatório.
Muitos conservadores se esforçam para compreender o Papa Francisco, o qual, desde que assumiu o cardo no ano passado, tem alertado contra uma preocupação “obsessiva” com questões culturais, tais como o aborto e o casamento homoafetivo, incentivando o debate sobre os ensinamentos da Igreja relativos a assuntos como a contracepção e o divórcio e se perguntando, em relação aos gays que professam a fé religiosa: “Quem sou eu para julgar?”
A reação conservadora vai desde um franco desânimo para com a direção do pontífice até uma convicção mais comum de que não se trata de o papa estar promovendo a liberalização, mas sim de uma mídia que reporta afirmações tiradas de contexto a um público com pouca bagagem sobre o catolicismo.
“Grande parte da mídia convencional se baseia naquilo que as pessoas esperam que o Papa Francisco diga, em vez de se basear naquilo que ele, de fato, está dizendo”, afirmou Arina Grossu, estudante de pós-graduação na Universidade Notre Dame e que frequenta as missas na Arquidiocese de Washington.
Sullins, que é socióloga, diz que, para alguns conservadores, o problema começa de cima: “O sentimento destas pessoas é: ‘Estamos aqui, nas linhas de frente das guerras culturais – lutando contar o aborto, o casamento homoafetivo. Parece que Bento nos dava apoio, e que Francisco, não”.
Um Sínodo para os séculos
No mês passado, John Allen, experiente analista do Vaticano, se perguntou num artigo publicado no jornal The Boston Globe: “Será que estamos vivendo um ponto de inflexão, onde os conservadores, que deveriam dar ao Papa Francisco o benefício da dúvida, irão, pelo contrário, ajudá-lo?
Os 78 milhões de batizados católicos formam a maior denominação religiosa do país. Alguns anseiam por uma era mais simples – como em 2012. “Quando o papa diz: ‘Não julgais’, eu discordo”, afirmou Mick O’Connell, um católico de 68 anos da Filadélfia. “Julgar o certo e o errado é o seu trabalho”.
Qualquer dúvida de que os tempos estejam mudando acabou com o Sínodo realizado no mês passado. Este evento trouxe centenas de bispos e outros a Roma para discutir a aplicação dos ensinamentos da Igreja sobre o matrimônio e a vida familiar.
Depois que, no ano passado, o papa anunciou os planos para este encontro, o Vaticano deu um passo inédito enviando um questionário às dioceses do mundo todo à procura de saber a opinião vinda da base da Igreja sobre assuntos tais como o casamento homoafetivo, o uso de métodos contraceptivos, a coabitação fora do casamento e o divórcio.
Os progressistas se animaram com um relatório provisório que, em harmonia com as inclinações do atual papa, pedia por uma acolhida às pessoas homossexuais de fé e dava esperanças para com um tratamento mais bondoso aos católicos que vivem juntos fora do matrimônio, ou que se divorciaram e casaram novamente fora da Igreja (e que, portanto, não podem receber a Comunhão).
No Sínodo, a ala conservadora se reuniu e se opôs em grande parte contra aquilo que um ataque na primeira versão do texto, alterando a versão final – um movimento relatado pela imprensa como uma rejeição das ideias do papa. Mesmo assim, o mal foi feito.
Charles Chaput, arcebispo da Filadélfia, manifestou desânimo a partir do debate realizado naqueles dias de encontro: “A confusão é do demônio, e eu acho que a imagem pública deixada foi a de uma confusão”.
O cardeal Raymond Burke, ex-arcebispo de St. Louis e agora chefe do Supremo Tribunal do Vaticano, foi ainda mais franco. Numa entrevista a uma revista católica espanhola publicada na semana passada, ele declarou sobre a liderança de Francisco: “Muitos vieram manifestar suas preocupações a mim (...). Há um forte sentido de que a Igreja se parece com um navio sem leme”.
Um grupo conservador católico, o Voice of the Family, disse que seus membros se sentiram traídos. Depois que um casal australiano descreveu, no Sínodo, a decisão deles de permitirem deixar o seu filho gay trazer o seu companheiro para celebrar o Natal em casa, Maria Mardise, a coordenadora do grupo, falou: “A acolhida desqualificada de casais homossexuais para dentro dos ambientes familiares e paroquiais prejudica a todos ao contribuir para a normalização do transtorno da homossexualidade”.
O Sínodo será seguido de um outro do mesmo tipo, com mais pessoas participando. Ele irá acontecer no próximo ano e terá em seu foco o mesmo assunto. Independentemente do que aconteça aqui, uma mudança substantiva só poderá ser ordenada pelo próprio Papa Francisco.
Novos ares vindo de Roma
O jesuíta argentino foi eleito papa em março de 2013 depois que Bento XVI, de forma inesperada, renunciou. Ele imediatamente ficou famoso por sua abertura e relativa informalidade. Ele vem morando numa residência modesta em vez dos apartamentos papais palacianos. Tem telefonado, do nada, para algumas pessoas, surpreendendo a todos. E feito uso do Twitter.
Pouco antes da Páscoa, Francisco foi a uma penitenciária e – imitando a Cristo na Última Ceia – lavou os pés de internos, incluindo muçulmanos.
Seu estilo o fez uma personalidade marcante. (No programa televisivo “Comedy Central”, o normalmente crítico Jon Stewart deixou escapar: “Eu gosto deste cara!”) Os seus discursos aparentemente improvisados o tornaram sensacional.
Ao voar para Roma após a Jornada Mundial da Juventude, no Brasil, o pontífice contou a jornalistas: “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa reputação, quem sou eu para julgá-la?”
Numa outra entrevista, afirmou que a Igreja não deveria falar de forma tão insistente sobre questões tais como o aborto e a homossexualidade: “O ministério pastoral da Igreja não pode ser obcecado com a transmissão de uma infinidade desarticulada de doutrinas a serem impostas insistentemente”. E acrescentou: “Temos que encontrar um novo equilíbrio”.
Ainda numa outra entrevista ele disse: “Cada um tem sua ideia de bem e mal” e todos deveriam “escolher seguir o bem e combater o mal da maneira como os concebe” – aparentemente uma rejeição da visão sobre a moralidade como sendo preto ou branco.
Neste ano, quando perguntado sobre o papel das mulheres, o papa insistiu que elas “devem estar mais presente nos lugares de decisão na Igreja”.
A primeira nomeação de Francisco para preencher um importante posto na Igreja americana causou polêmica entre os conservadores.
O bispo de Spokane, Dom Blasé Cupich, que está substituindo o cardeal conservador Francis George, é um religioso moderado, um prelado conciliador que pediu a seus padres para não rezarem em frente clínicas de aborto porque isto seria demais provocativo.
David Gibson, analista experiente da Igreja, escreveu num artigo publicado no sítio Religion News Service dizendo que a nomeação de Cupich “pode sinalizar o começo do fim de três décadas de dominação conservadora”.
Independentemente do que alguns tradicionalistas pensem, Francisco continua extraordinariamente querido entre os católicos americanos. Ele normalmente recebe uma aprovação acima dos 80%. Mais ainda: muitos ficam ao seu lado. Por exemplo, uma pesquisa feita pela Universidade de Quinnipiac há um ano descobriu que 68% dos católicos concordam que a Igreja esteja focada em algumas poucas questões morais.
Rótulos políticos americanos do tipo “liberal e conservador” não querem dizer a mesma coisa dentro da Igreja. Holly Smith, católica de 36 da cidade de Falls Church, no estado da Virgínia, diz que é vista por pessoas de fora como conservadora quando se opõe ao aborto, e como liberal quando se opõe à pena de morte.
Da mesma forma, muitos católicos percebem que o mundo simplesmente não compreende o Papa Francisco. Quando ele fez as manchetes da semana passada, ao dizer que a teoria do Big Bang sobre a origem do universo é coerente com a teologia e a cosmologia católicas, Smith se decepcionou.
Ainda que a afirmação do papa tenha sido apresentada pelos meios de comunicação como mais um exemplo de seu franco liberalismo, ela sabia que ele estava simplesmente repetindo uma posição anunciada em 1951 pelo Papa Pio XII e reiterada por vários outros desde então.
O amor pelo Papa
Na Igreja, termos como liberal, progressista, conservador e tradicionalista têm mais a ver com a forma como os católicos percebem a autoridade. Isto coloca os conservadores dissidentes em um lugar difícil; a figura a quem eles olham como o seu líder parece estar indo na direção errada.
Mas um êxodo conservador – ou cisma – parece muito distante.
Numa instituição de 2000 anos que que reivindica uma verdade imutável, as continuidades entre os papados quase sempre minimizam as diferenças. E as diferenças são, quase sempre, mais em relação à ênfase do que à substância.
Na qualidade de chefe desta igreja, quase todo papa pode contar com um amplo reservatório de boa reputação, especialmente se ele – o papa – se parecer tão sincero e humilde quanto àquele que atualmente anda nas pegadas de São Pedro. É simples, diz Sullins: “Francisco é o papa, e os católicos sempre os amam”.
Os católicos americanos terão uma oportunidade de mostrar isto em pessoa no próximo ano, quando Francisco fizer a sua primeira viagem papal aos EUA para participar do Encontro Mundial das Famílias. Onde? Na Filadélfia. Quem será o anfitrião? Dom Charles Chaput.
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Papa Francisco perturba católicos conservadores americanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU