24 Março 2017
“Como explicar que 80%, no mínimo, da população seja contrária à redução dos direitos trabalhistas ou previdenciários? Parece não ter caído a ficha ou que entramos em um estado de apatia como fase seguinte da frustração. Fica nítida a fragilidade da participação política na nossa democracia totalmente sequestrada pelas oligarquias”, escreve Moysés Pinto Neto, graduado e mestre em Direito, doutor em Filosofia e professor na Universidade Luterana do Brasil - Ulbra Canoas, em post publicado no Facebook, 23-03-2017.
E conclui: “Quem irá ocupar o espaço dessa insatisfação? Com que discurso? Jucá esses dias disse que "não podemos entregar a política para algum aventureiro". Em resposta, talvez devêssemos hoje estar nos preparando para organizar essa aventura”.
Eis o texto.
A raiz da tragédia de ontem não está exatamente no impeachment (que considero um golpe parlamentar, ainda que bem diferente do que é descrito em geral), mas em camadas mais profundas -- o que é ainda pior. Havia forte probabilidade de que esse Congresso derrotasse o governo anterior, como já havia feito na Câmara, em relação à matéria. A questão já estava em pauta contra a vontade do governo derrubado. O motor do processo é um Congresso que se aproveita do vazio do Poder Executivo para implementar um projeto próprio de poder. Um Congresso que, com o método Eduardo Cunha -- isto é, a utilização de interpretações regimentais distorcidas e quebra dos padrões consolidados para votações públicas -- tornou-se o todo-poderoso soberano do país, e cujo reacionarismo já era patente no momento seguinte após a eleição. A Lava-Jato, que joga a população contra o sistema, torna ainda maior o fosso e o descompromisso dos parlamentares com seus representados. E a convergência com o governo Temer, obviamente, também agrava a situação.
Mas não consigo não guardar algum rancor nessa situação. Quem, afinal, votou nesses caras? No vazio do projeto de futuro que se instalou, foi o discurso liberal-conservador, a partir dos movimentos virtuais e suas estratégias de viralização, que ocupou o espaço. Hoje a capilaridade desse discurso é impressionante, com ou sem a mescla com o fascismo (no caso dos apoiadores de Bolsonaro). Foi essa capilarização conseguida via redes sociais que possibilitou um mínimo respaldo, de baixo para cima, para que essas medidas fossem adiante. A classe média, inclusive a nova, comprou ferozmente esse discurso (da elite nem se precisa comentar). Ele ocupa o espaço daqueles dispostos "ao sacrifício" (dos outros, claro) para um novo projeto de país, ou "a ponte para o futuro".
E como explicar que 80%, no mínimo, da população seja contrária à redução dos direitos trabalhistas ou previdenciários? Parece não ter caído a ficha ou que entramos em um estado de apatia como fase seguinte da frustração. Fica nítida a fragilidade da participação política na nossa democracia totalmente sequestrada pelas oligarquias. Mesmo tendo havido um pouco mais de gente no último protesto contra a Reforma da Previdência, a massa ainda continua imóvel. Quando você vê vídeos de 2013, tem um monte de gente que diz "me sinto vivo pela primeira vez, me sinto participando da política", mostrando que aquele foi um momento em que a mobilização extrapolou seus atores tradicionais. Só algo desse tamanho seria capaz de enfrentar hoje o que está se passando, embora ache improvável. Hoje, no entanto, a oposição é formada basicamente pelo habitual.
A esperança é que, com o sofrimento na carne da redução de direitos, o discurso liberal se enfraqueça. O economia ortodoxa e sua visão atomizada de sociedade é completamente contra-intuitiva. Sua visão idealista de sociedade mantém uma esperança tola na "mão invisível" que qualquer um de bom senso sabe ilusória.
Os exemplos empíricos são comparações com sociedades totalmente diferentes -- Japão, EUA, Austrália -- como se a variação na regulação econômica fosse, por si só, um elemento que explicasse questões que nitidamente dizem respeito a níveis culturais mais complexos. Apesar da sofisticação econométrica, do ponto de vista da compreensão global da sociedade o discurso ortodoxo é raso como um pires. E será confrontado, em breve, pelos fatos. Conseguiu hegemonia porque sustenta dois pilares com apoio popular que foram relativizados erradamente pelo governo anterior: o equilíbrio das contas públicas e o controle rígido da inflação. Mas todo resto, que a rigor é um projeto de futuro (cuidar mais da propriedade individual, desregular os mercados, privatizar serviços públicos etc.), vai aparecer na sua plena artificialidade, tendência que aliás já está visível no Norte. Quando Temer entregar o bastão, os prejuízos individuais serão sentidos com nitidez pelo povo.
Quem irá ocupar o espaço dessa insatisfação? Com que discurso? Jucá esses dias disse que "não podemos entregar a política para algum aventureiro". Em resposta, talvez devêssemos hoje estar nos preparando para organizar essa aventura.
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“Quem irá ocupar o espaço da insatisfação? Com que discurso?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU