O direito como categoria imunitária a partir do pensamento de Roberto Esposito. Entrevista especial com Antônio Justino de Arruda Neto

Estágio democrático atual é aquele da emergência política, no qual a exceção está sempre prestes a se converter em regra, alicerçada no medo como instrumento de controle, administração e disciplina. O direito passa a capturar a vida, ao invés de protegê-la

Foto: Pixabay

Por: Márcia Junges | 16 Outubro 2025

“Medo, proteção e segurança são termos presentes no contexto da nossa atual governança e não se limitam às forças da extrema-direita, mas também às forças progressistas. O discurso de imunização e proteção, sustentado por uma tanatopolítica, foi absorvido por ambos os campos de poder. Assim, temos uma governança sobre o próprio corpo social, que produz exclusão, violência e morte. O resultado desse processo de superimunização não é apenas a destruição total do indivíduo ou do corpo, mas a implementação de técnicas de governo da vida por meio de uma destruição gradual do corpo do imigrante, do quilombola, do indígena, da população LGBTQIAPN+, enfim, daqueles que compõem as maiorias não representadas e que são considerados corpos indesejáveis. Trata-se de uma negação da alteridade como forma de completar essa técnica”.

A reflexão é de Antônio Justino de Arruda Neto na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em sua análise, “compreender como a biopolítica se converteu em tanatopolítica exige um processo analítico radical. Esposito retoma a reflexão sobre o bios e suas dinâmicas, dentro das quais as categorias e os dispositivos de corpo e pessoa estão inseridos. A consequência é a formação de um corpo subjetivado, moldado e limitado pelo poder como instrumento imunitário. O autor também ilustra esse processo em Terceira Pessoa, ao discutir o ‘fracasso dos direitos humanos’ como novo ponto de inflexão para compreender o modo como a vida tornou-se uma ‘obra de morte’. Nessa perspectiva, o direito deixa de proteger a vida e passa a capturá-la, contribuindo para o mesmo mecanismo de dominação que pretende evitar”.

Antônio Justino de Arruda Neto (Foto: Arquivo pessoal)

Antônio Justino de Arruda Neto é graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Filosofia pela UNISINOS com a dissertação O federalismo no pensamento de Hannah Arendt e John Rawls e doutor em direito pela UFPE e cursa doutorado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em 18-09-2025, ministrou a conferência O direito como uma categoria imunitária a partir do pensamento de Roberto Esposito na programação do V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea, da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), sediado na Universidade Estadual do Ceará (UECE), em Fortaleza.

Confira a entrevista.

IHU – O direito, a partir de Esposito, opera como um dispositivo imunitário necessário para a proteção da vida do corpo político. Em que momento essa função protetora do direito se transforma no seu oposto: um mecanismo que, em vez de garantir a vida (biopolítica), passa a geri-la de forma negativa, suprimindo a própria comunidade que jurou proteger (tanatopolítica)?

Antônio Justino de Arruda Neto – Assim como estava representado na arte do V Encontro do GT de Filosofia Política Contemporânea, realizado na UECE, em que os “jangadeiros” partem para a labuta e lançam suas redes nas praias cearenses, também buscaremos “lançar as redes” em forma de provocações. Em outras palavras, pretendo devolver aos leitores essa “rede interdisciplinar e conceitual”. É a partir de algumas inquietações nossas, inspiradas pelo pensamento de Roberto Esposito (1), que se formam as perguntas que teremos pela frente.

Desse modo, iniciamos nossas respostas a partir de um movimento interpretativo proposto por Esposito, movimento que não é o de um jurista que busca conceituar e apresentar categorizações do direito. Seu ponto de inflexão encontra-se na afirmação feita em 2020: “a primeira imunização é o direito”. O que o filósofo italiano pretendia provocar ao dizer isso em um contexto pandêmico? Indicamos como resposta inicial às ameaças que extrapolaram o vírus, abrangendo também as ameaças institucionais expressas pelo aumento da violência, do não cuidado e da ausência de conservação da vida, sobretudo diante de governos de cunho autoritário durante a pandemia.

Sabemos, ainda, que o autor nos lança tal provocação para pensarmos uma radicalidade conceitual: a possibilidade de uma “biopolítica afirmativa” como meio de proteção imunitária, voltada à construção de uma comunicabilidade fundada no reconhecimento do outro por meio de uma ação desobrigada, isto é, agir pela impessoalidade como mecanismo de proteção.

Contudo, a provocação enunciada na entrevista nos direciona às entrelinhas políticas: às ameaças, à exclusão, às violências, à disciplina e à destruição enquanto retirada máxima da vida. É justamente nos momentos de crise que se torna possível escanear tais questões. Embora saibamos que a crise representa o ponto culminante de uma condição social, política ou sanitária – como ocorreu na pandemia –, a afirmação de Esposito evidencia o fato de que nem sempre compreendemos as categorias e instrumentalidades que desencadeiam o processo de crise como cisão. A crise, portanto, apresenta tanto o caminho da falta quanto o do excesso de práticas que ilustram a eficiência e não o fracasso das instituições, configurando uma técnica de administração dos corpos.

Emergência disciplinar pós-pandêmica

Desse modo, nossa primeira afirmação é que a crise da pandemia não rompeu com a instituição estatal, mas revelou reproduções e novas formas de atuação. Tivemos avanços médicos e vacinais como instrumentos de proteção, mas também a degradação e a formação de novos sujeitos trabalhistas submetidos a gradações de vulnerabilidade, pois o corpo sofreu transformações profundas. Mesmo que afirmem termos saído da zona de emergência da Covid-19, temos um questionamento: a possibilidade da emergência disciplinar se dissipou no período pós-pandêmico?

Parece-nos que não. Esse silêncio nos inquieta, pois o que persiste é uma continuidade de ameaças. O conflito com o qual o direito se depara situa-se no interior de uma antinomia: o momento em que a proteção se converte em negação da vida. O que essa antinomia nos revela? Indica uma inversão da imunidade, um impulso imunitário que assume a forma de um anticorpo destrutivo. O resultado dessa inversão não se expressa pela negação do direito de proteger, mas pela aplicação positiva do direito como negação da vida. Assim, a administração, a negação e a eliminação da vida tornam-se sentidos próprios da tanatopolítica, que se concretiza na exclusão do corpo do outro.

Além disso, podemos perceber outro movimento presente na interpretação da frase de Esposito: “os mecanismos de efeitos do direito”. Surge, então, uma questão: o direito teria perdido a sua funcionalidade? A resposta é negativa. O que ocorreu foi uma inversão de uso, de linguagem e de aplicabilidade. A ausência de uma imunização política eficaz produziu a normalização de uma falsa sensação de "paz". Basta observarmos o genocídio em Gaza, as guerras no Sudão do Sul e na Ucrânia, diante das quais uma parcela significativa da sociedade assiste e normaliza o agir violento. Assim, o direito perde sua funcionalidade institucional no âmbito internacional, mas não no interno, pois a falta e o excesso o transformam em uma inflexão negativa, marcada pelas técnicas de morte constituídas no seio da communitas.

IHU – Nas democracias liberais, vemos uma tensão permanente entre a expansão dos direitos individuais e a demanda social por segurança. Como a lógica imunitária explica a tendência de essas democracias, em momentos de crise (sejam pandêmicas, terroristas ou econômicas), sacrificarem liberdades em nome de um “princípio de precaução” que pode esvaziar o conteúdo democrático?

Antônio Justino de Arruda Neto – O paradigma imunitário em Esposito nos conduz à finalidade de proteção da vida por meio da liberdade, da soberania e da propriedade, compreendidas como instrumentos que auxiliam a biopolítica afirmativa a agir para evitar a negação e a destruição da vida. Acrescento ainda outra pergunta: quando a exceção deixou de ser necessária? Basta lembrar que nossa herança não é fruto de um período de paz, mas de guerra e de rompimento institucional. A figura do campo e do terror tornou-se a própria potencialidade de destruição da vida. Por essa razão, somos herdeiros de termos e instrumentos constitucionais e políticos, entre os quais destaco: emergência, calamidade, estado de sítio e garantia da lei e da ordem, que exemplificam o atual estágio democrático que vivemos: na emergência política.

Interpreto que o “princípio da precaução” é um instrumento derivado de um discurso da Modernidade que busca salvaguardar as liberdades individuais. A partir disso, ocorre a neutralização da comunicabilidade social e política por meio da atualização do contrato moderno.

A percepção do paradigma imunitário está presente na relação em que o indivíduo, por precaução, entrega, por meio do contrato, os aspectos comuns e conserva aquilo que é próprio. Dessa forma, ocorre um esvaziamento, não total, mas que inaugura a construção de novos sistemas de controle e administração dos corpos. O vazio causado pela emergência constitui corpos que possam ser controlados para uma finalidade disciplinar. A imunização, entendida como precaução, gera um anticorpo e utiliza o isolamento como técnica de exclusão, criando um espaço de não compartilhamento político da pluralidade. Assim, a communitas perde o sentido do comum.

Medo como técnica biopolítica

Por essa razão, a análise das “democracias liberais” permite compreender como a crise produz uma condição política fundada no medo, que se torna instrumento de controle, administração e disciplina, isto é, o medo como técnica biopolítica. Novas categorizações emergem em razão de uma política de “proteção e segurança”, mas ao custo da cessão quase total da liberdade.

Desse modo, a precaução revela a continuidade de uma sombra de controle disciplinar e a manutenção da emergência como limitadora da comunicação social. Vivemos, no presente, sob formas de vigilância digital, estados de exceção, restrições de circulação e controle de informação. A precaução busca diminuir nossa condição política, não necessariamente por meio da supressão da liberdade, mas pela utilização desta como argumento para prevenir. Assim, o “princípio da precaução” tem como finalidade institucionalizar e produzir uma aparência democrática, ao mesmo tempo que oculta o poder que age sobre os corpos.

Além disso, a prevenção implica em um movimento que evidencia o limite do agir social e a força do biopoder. Essa aparência é sustentada por um argumento democrático, ou seja, pelo agir em nome de uma liberdade política. Trata-se do processo que potencializa a emergência, utilizando os próprios instrumentos democráticos para reproduzir mecanismos de exceção e disciplinamento.

IHU – Esposito alerta que quando o dispositivo imunitário se exacerba, ele pode levar o organismo à morte. Os recrudescimentos autoritários de extrema-direita, com seu discurso de “proteger o povo” contra ameaças externas (imigrantes, “globalistas”) e internas (“inimigos do povo”), poderiam ser interpretados como uma “superimunização” tanatopolítica do corpo social?

Antônio Justino de Arruda Neto – Medo, proteção e segurança são termos presentes no contexto da nossa atual governança e não se limitam às forças da extrema-direita, mas também às forças progressistas. O discurso de imunização e proteção, sustentado por uma tanatopolítica, foi absorvido por ambos os campos de poder. Assim, temos uma governança sobre o próprio corpo social, que produz exclusão, violência e morte. O resultado desse processo de superimunização não é apenas a destruição total do indivíduo ou do corpo, mas a implementação de técnicas de governo da vida por meio de uma destruição gradual do corpo do imigrante, do quilombola, do indígena, da população LGBTQIAPN+, enfim, daqueles que compõem as maiorias não representadas e que são considerados corpos indesejáveis. Trata-se de uma negação da alteridade como forma de completar essa técnica.

Desse modo, apresentamos o seguinte questionamento: “por que é que a biopolítica ameaça sempre tornar-se tanatopolítica?” (Esposito, 2018, p. 65). A resposta a essa questão está na “copresença” entre o poder e a soberania, em que o primeiro opera como técnica de captura da vida. Para que esse processo exista, a soberania necessita desse “biopoder” capaz de fazer morrer e, sobretudo, de fazer viver de forma disciplinada. Por essa razão, o biopoder transforma a biopolítica em tanatopolítica, pela aplicação de técnicas sustentadas em discursos que necessitam combater o “inimigo”. Esse inimigo manifesta-se tanto no âmbito externo, nas políticas de fechamento de fronteiras e perseguição a minorias, quanto no âmbito interno, na ênfase excessiva na segurança e na militarização da vida pública.

Superimunização e tanatopolítica

O processo de superimunização, portanto, não é exclusivo das instituições políticas. Ele se reproduz socialmente, pois uma parcela da população é disciplinada a internalizar e reproduzir práticas de exclusão como forma de manutenção da ordem. Assim, a própria população passa a recriar e a negar a condição de existência do outro por meio de um agir violento. O processo de exclusão torna-se uma forma eficiente de colocar em prática a potência destrutiva da tanatopolítica. Temos, assim, uma política da morte baseada no agir negativo de uma população disciplinada a acreditar que é preciso fazer tudo pela segurança e que o estrangeiro é o inimigo, ou ainda, que há direitos e garantias coletivas em excesso que impedem o desenvolvimento econômico e político.

Outro aspecto importante é a captura da opinião individual como forma de consolidar a certeza de que há um inimigo objetivo. A criação de uma zona de medo transforma-se em técnica de controle das vidas e no limite da pluralidade. Tais processos são confirmados tanto pelas opiniões individuais quanto pelas propagandas de governos que reforçam a necessidade de mais segurança. No plano internacional, esse discurso de proteção pode ser observado nos argumentos das deportações e das políticas anti-imigratórias do governo Trump, nos envios de tropas federais sob a justificativa de combater uma “criminalidade descontrolada” em estados da federação e, por fim, no slogan “Make America Great Again”, que se converte em expressão de uma tanatopolítica.

Dessa forma, o exame do processo de superimunização revela que há uma utilização massiva dos instrumentos democráticos, os quais, em vez de protegerem a vida, são empregados em sentido contrário por quem governa. Esse movimento produz mecanismos como os que Trump descreveu ao afirmar que as cidades deveriam se tornar “campos de treinamento” para o combate ao inimigo interno. A cidade, nesse contexto, transforma-se em “laboratório” de produção de dados e números voltados ao controle social, conforme indicado por Foucault (2) (2008) em “Segurança, Território e População” (1978), quando descreve a função da polícia como técnica de proteção e administração da vida.

Diante disso, cabe a pergunta: seria possível evitar esse processo de superimunização e, ao mesmo tempo, preservar a vida comum por meio de uma imunização ou de uma biopolítica afirmativa?

IHU – Desde Foucault, a biopolítica moderna gerencia a vida da população. Como o conceito de imunização de Esposito nos ajuda a entender a passagem de uma biopolítica que faz viver (saúde pública, bem-estar) para uma tanatopolítica que deixa morrer ou, até mesmo, suprime ativamente grupos considerados “dispensáveis” ou “ameaçadores” para a pureza imaginada da comunidade?

Antônio Justino de Arruda Neto – No aspecto conceitual, reconhecemos a importância do pensamento de Michel Foucault não apenas para Esposito, mas também para outros autores italianos. Embora o nosso foco não seja apresentar esse diálogo ou essa transversalidade conceitual entre os autores, em razão do limite de palavras – ressalva que deixamos para outro momento –, recordo a análise de Antonio Negri (3), em seu livro “Quando e como eu li Foucault” (2016), na qual, já na primeira entrevista, afirma que a obra do pensador francês é uma “máquina estranha”, pois permite pensar e discutir o presente.

Com base nessa leitura, interpreto que Esposito não pretende apresentar um “novo Foucault” em sentido interpretativo, mas realizar uma “passagem” não superficial ou apressada, e sim detida e conceitualmente densa. Em outras palavras, não se trata de propor um “Foucault de Esposito”, mas de realizar um “lançar interpretativo”.

Esposito nos apresenta um olhar próprio sobre o tema, conforme observa Laura Bazzicalupo (4): “Roberto Esposito elabora sua própria indagação radical sobre o tema” (2017, p. 134). A questão em análise refere-se à biopolítica que se transforma em tanatopolítica por meio de instrumentos e técnicas voltados à supressão da vida. O resgate conceitual realizado por Esposito ocorre em dois caminhos: o primeiro é o retorno discursivo à Modernidade, a partir do contrato hobbesiano, no qual o comum cede lugar ao próprio, isto é, à individualidade como finalidade da relação; o segundo, conforme pontua Bazzicalupo (2017), refere-se à interpretação do bios e ao uso da vida humana, constantemente ameaçada pela communitas.

Desse modo, emerge o questionamento que conduz à compreensão desse segundo caminho discursivo: “Por que é que, pelo menos até hoje, uma política da vida ameaça sempre transformar-se numa obra de morte?” (Esposito, 2018, p. 23). A provocação do autor está relacionada aos “invólucros imunitários”, os quais operam técnicas de captura e impedem o desenvolvimento da vida. O resultado desse processo é a impossibilidade de uma política da vida, entendida como processo de conservação e proteção. Como explica Bazzicalupo (2017, p. 139), “o processo de imunização fecha, circunscreve, calcula para prevenir a dissolução das formas do fluxo vital, mas, agindo assim, mortifica a vida”.

Biopolítica e tanatopolítica

Compreender como a biopolítica se converteu em tanatopolítica exige um processo analítico radical. Esposito retoma a reflexão sobre o bios e suas dinâmicas, dentro das quais as categorias e os dispositivos de corpo e pessoa estão inseridos. A consequência é a formação de um corpo subjetivado, moldado e limitado pelo poder como instrumento imunitário. O autor também ilustra esse processo em “Terceira Pessoa”, ao discutir o “fracasso dos direitos humanos” como novo ponto de inflexão para compreender o modo como a vida tornou-se uma “obra de morte”. Nessa perspectiva, o direito deixa de proteger a vida e passa a capturá-la, contribuindo para o mesmo mecanismo de dominação que pretende evitar.

O argumento de Esposito em favor da despersonalização e da ruptura com o dispositivo de “pessoa” decorre de sua compreensão de que o poder, as técnicas disciplinares e biopolíticas, e a violência convergem em torno dessa categoria. O objetivo é pensar a separação ou desconstrução da “pessoa” como modo de evitar a unificação entre biopolítica e tanatopolítica, uma vez que tal unificação gera um efeito indesejado: a captura da vida pela estrutura do poder.

Esse efeito manifesta-se no corpo e é definido como “degeneração”, configurando um movimento de empurrar o corpo para uma zona de controle e disciplina por meio das dosagens imunitárias aplicadas a ele. Desse modo, conforme escreve Esposito (2018, p. 173), “é como se o morto se apoderasse do vivo e o mantivesse em sua órbita”. Esta é, precisamente, a finalidade da tanatopolítica: administrar a vida por meio de uma morte não consumada. Soma-se a essa questão o que Esposito apresenta no contexto do paradigma imunitário, em que o corpo-vida sofre as transformações entre nomos e bios. Trata-se da complexidade do agir soberano em razão de “anular antecipadamente a vida” (Esposito, 2018, p. 207). Portanto, não se trata de uma lei protetiva, mas de uma lei que imuniza e conduz a vida ao limite do seu próprio viver, não a conservando, mas destruindo-a em razão da condição natural do bios.

IHU – Frequentemente, a extrema-direita emprega uma linguagem médica e imunológica, falando em “purificar” a nação, “expurgar” elementos corruptores ou combater os “vírus” ideológicos. Como essa apropriação distorcida da metáfora imunitária é eficaz para legitimar políticas excludentes e violentas?

Antônio Justino de Arruda Neto – Para responder à questão proposta, é preciso destacar os extremismos decorrentes das reproduções partidárias. Citam-se, como exemplos significativos das últimas eleições ao redor do mundo, o retorno de Trump nos EUA, o “Chega” em Portugal, a Alternativa para a Alemanha (AfD) e, no Brasil, a fragmentação dessas forças entre diversos partidos. O elemento comum entre esses movimentos é a negação de direitos plurais e a recusa da solidariedade para com os imigrantes. Assim, o “outro” precisa ser nomeado como inimigo permanente de uma “extrema-direita” que busca legitimação pelo voto e, uma vez no poder, distorce a proteção jurídica destinada a maiorias não representadas para beneficiar minorias privilegiadas.

Surge, então, um conjunto de categorias teóricas clássicas que ajudam a compreender esse fenômeno: Hobbes (5), Hannah Arendt (6), Foucault, Agamben (7) e o próprio Esposito apontam para a centralidade do medo, do inimigo, da ideologia e do terror na política. Recordo a eleição de 2022 no Brasil: o debate não se centrava em políticas públicas, mas na construção do “medo e da ameaça” em ambos os campos do espectro político. Esse quadro prosseguiu com o episódio de 08-01-2023, com a elaboração de minutas golpistas e com a presença ampliada de apoiadores do extremismo de direita no parlamento. Em suma, medo e ameaça são argumentos recorrentes na história política nacional e, em grande medida, sintetizam nossa política recente.

Nossa historiografia registra episódios semelhantes. A “Revolta da Vacina” (1904) foi uma mobilização nas ruas do Rio de Janeiro contra a obrigatoriedade vacinal, em que argumentos morais e de desconfiança embasaram a resistência. Na contemporaneidade, a oposição às vacinas foi apropriada por setores da extrema-direita, assim como ocorreu com doenças já erradicadas; o programa vacinal foi alvo de desinformação e personificado em figuras caricatas, como o “Zé Gotinha”, transformado em inimigo social. Boatos e teorias conspiratórias – por exemplo, a narrativa segundo a qual a vacina conteria um “vírus ideológico do comunismo” – constituem bandeiras dessa desinformação.

Imunização invertida

Quanto à lógica imunitária e à razão da sua apropriação pela extrema-direita, interpreto que tal inversão não é exclusividade apenas desse campo político. Trata-se também de um processo que encontra fundamento em determinados vetores institucionais do direito constitucional, o que exige exame estrutural das normas e dos usos que delas se fazem. Ainda assim, a extrema-direita converte essa inversão em prática eficaz por meio de técnicas de atuação que disciplinam corpos e condutas. Em uma leitura foucaultiana, os corpos precisam ser docilizados e adestrados para que os dispositivos de poder se mantenham.

Nesse sentido, retoma-se a figura do médico e da medicina enquanto formas de poder disciplinar que, segundo Foucault (2008), foram assimiladas pelo soberano como técnicas de regulação social. O governo da população, portanto, ultrapassa o antigo âmbito do biopoder, incorporando estruturas de vigilância, policiamento da vida e negação da veracidade como instrumentos de gestão social. Por fim, parece-me que não se trata apenas de distorções eventuais da prática imunitária, mas de um saber-fazer político da extrema-direita: um repertório de ações eficazes para impedir solidariedades (por exemplo, com imigrantes) alegando defesa da soberania, ou para deslegitimar a vacina mediante narrativas sobre riscos à saúde. O objetivo último dessas técnicas é apresentar a intenção maior: a dominação sobre a vida e a eliminação de quem se opõe às suas políticas.

Outro campo atacado por essas narrativas é a educação, também apontada como inimiga em contextos locais. As políticas médicas de imunização podem ser instrumentalizadas como forma de “imunizar” o país juridicamente, com o Judiciário legitimando medidas de retirada de direitos e garantias plurais. Historicamente, regimes autoritários buscam alterar estruturas judiciais por meio de nomeações, aumento de competências ou destituições. No Brasil, a renovação de dois terços do Senado Federal nas próximas eleições gerais é relevante, pois o Senado atua na aprovação e remoção de ministros do Supremo Tribunal Federal; a ocupação estratégica dessas vagas constitui um modo de docilizar o Judiciário.

Portanto, os atores que operam essas inversões sabem o que fazem: identificam e rotulam “amigos” e “inimigos” e empregam instrumentos democráticos para corroer a democracia por meios formalmente democráticos. A pergunta que permanece é: como enfrentar essa reprodução institucionalizada de imunização invertida sem sucumbir às próprias armas da exclusão?

IHU – Em vários países, vemos o direito sendo usado para criar estados de exceção permanentes ou para criminalizar movimentos sociais e dissidências. Isso representa a captura do dispositivo imunitário legal por uma lógica tanatopolítica, onde a lei não protege mais, mas sim elimina politicamente aqueles definidos como inimigos?

Antônio Justino de Arruda Neto – O movimento paradigmático da pergunta está presente na relação de communitas, no contexto em que não há necessidade de outro direito para eliminar politicamente o outro. O mesmo direito que protege pode tornar-se violento e destrutivo. Por essa razão, é preciso recordar a figura institucional do Estado democrático, especialmente considerando o período pós-1945 e o regime nazista, dentro do contexto ocidental. Surge então, a primeira pergunta: o que tivemos? Tivemos Nuremberg, com a criação não exatamente de novas “instituições”, mas de uma linguagem expansiva de novos direitos internacionais, posteriormente incorporados às democracias liberais e às suas constituições.

Da afirmação anterior decorre uma segunda indagação: o que o direito constitucional herdou politicamente desse período? Herdou institutos e reproduziu instituições políticas. No primeiro caso, herdou os institutos de emergência, calamidade, estado de sítio, defesa, intervenção e o instituto de exceção denominado “garantia da lei e da ordem”, todos incorporados no contexto nacional. No segundo caso, observamos que o “Estado” se adaptou a novas interpretações e situações sociais e políticas, mas continuou a trazer em seu DNA uma relação de “biopoder”, atuando para manter o contrato social coeso a todo custo, por meio de suas instituições de controle.

No contexto da captura do dispositivo imunitário para fins de administração tanatopolítica, considero que tal fenômeno ocorre justamente por meio do próprio direito, pela vontade do poder soberano, que necessita capturar o dispositivo para legitimar suas ações diante de inimigos objetivos. Outro ponto que merece atenção é a preocupação com a permanência do “estado de exceção”, sobretudo diante do crescimento de movimentos fascistas e autoritários eleitos dentro de regimes formalmente “democráticos”. O uso do termo democracia, nesse caso, é instrumental: serve como justificativa política para práticas que corroem seus próprios fundamentos.

Autocrítica do direito 

Devemos perceber que vivenciamos um movimento de negação da política tradicional, acompanhado da ascensão desses grupos a cargos de governança, com o objetivo de promover uma corrosão interna das estruturas políticas. Esse processo inicia-se pela desconstrução do agir político a partir do comum, normalizando o discurso violento como se fosse expressão legítima da democracia. Hoje, a etapa de negação da política já foi superada: vivemos a fase de sua destruição simbólica e prática, marcada pelo enfraquecimento do pluralismo político e pela supressão das dinâmicas democráticas. A chegada de um governo de caráter fascista traz, desde sua origem, a finalidade de eliminação e destruição.

Portanto, não se trata apenas de uma captura, mas de uma verdadeira inversão conceitual, em que o direito é aplicado como instrumento de poder. Diante disso, cabe-nos indagar: qual crítica o próprio direito deve realizar a si mesmo para não ser capturado por uma tanatopolítica? A resposta exige deslocar não apenas o sentido e a polissemia dos conceitos jurídicos, mas também sua práxis e seu agir diante daquilo que, em outro momento histórico, deixamos de criticar.

IHU – Para Esposito, a communitas é definida pelo munus (o dever, o dom). A obsessão imunitária das sociedades contemporâneas, centrada no indivíduo proprietário de si, teria corroído completamente a noção de comunidade baseada na obrigação recíproca, abrindo caminho para soluções autoritárias que prometem uma comunidade fictícia e homogênea?

Antônio Justino de Arruda Neto – Esposito, em suas interpretações, apresenta uma retomada da modernidade ao discutir a relação entre o débito não quitado e o dever não realizado por meio da communitas, que se torna o espaço do indivíduo autossuficiente e municiado por sua subjetividade. No entanto, é esse mesmo indivíduo que se torna imunizado a ponto de ser anulável e controlável por esse débito: a ausência de uma comunicabilidade social e a dispensa do que foi definido por munus.

Por essa razão, há um processo incessante de imunização ao qual nossa sociedade é induzida a desejar, tendo como consequência a corrosão do comum e da alteridade. Observa-se uma tendência crescente ao não agir e, ao mesmo tempo, à aceitação das barreiras impostas pelo imunitário: uma desobrigação de agir ou, ainda, um agir homogêneo e categorizado. A finalidade desses argumentos imunitários é atravessar a vida em um sentido negativo, pois a exceção passa a se tornar a normalização da communitas.

O ato de prometer gera expectativa e responsabilidade, ou seja, no senso comum, carrega o sentido de resposta. No entanto, no contexto espositiano, a promessa está associada a uma norma jurídica que assume em si as características de constituir uma realidade de estabilidade. Essa mesma promessa, contudo, adquire a condição de uma técnica de controle, uma vez que não oferece liberdade ou pluralidade, mas tende a esvaziar essas condições. Assim, a promessa revela-se como instrumento de esvaziamento da alteridade, do cuidado e da solidariedade, já que a exceção se torna o nomos necessário para a destituição de uma vida reduzida à subjetivação.

Esse processo de subjetivação e o vazio produzido pelas promessas contratuais potencializam a corrosão do sentido comum e da alteridade presentes nas relações sociais desse corpo subjetivado. Embora Esposito não tenha tratado diretamente das atuais técnicas de controle por meio do algoritmo, é necessário registrar essa correspondência, tendo em vista como o algoritmo político cria novos mecanismos e efeitos que intensificam a produção desses vazios.

Portanto, a comunidade que assume a desobrigação como um ato político de vontade e de querer não o faz de modo inconsciente; ela o faz ciente das consequências e, ao agir assim, margeia a própria morte enquanto indivíduo político e social. Essa dinâmica torna-se evidente tanto no funcionamento dos algoritmos quanto no controle exercido por eles, assim como nas pautas de governos autoritários, que não se limitam à moralidade ou à religião, mas continuam a capturar a espontaneidade e o desejo social, econômico e afetivo. Em consequência, o biopoder transforma-se em um controlador de emoções, catalisando a destruição do comum.

IHU – Se o direito pode ser um dispositivo imunitário perigoso, é possível imaginá-lo também como uma ferramenta de resistência? Existe uma forma de “imunização democrática” que, em vez de isolar e excluir, fortaleça os corpos sociais através do reforço dos direitos sociais, do comum e da participação política?

Antônio Justino de Arruda Neto – A presente resposta terá mais a caracterização de um ensaio do que propriamente de uma resposta, mas, como iniciamos nossas interpretações, “vamos lançar as redes”, iniciando com a seguinte afirmação de Esposito (2023a, p. 136): “se o corpo é o lugar privilegiado de desenvolvimento da vida, ele também é aquele no qual, mais do que em qualquer outra parte, se percebe a iminência da morte”. A citação se encaixa na antinomia presente no contexto da communitas, que, em vez de oferecer proteção, proporciona negação.

Desse modo, o primeiro e principal elemento do contexto é que precisamos do direito como barreira de proteção ou ainda como elemento mediador entre as subjetividades, de modo a indicar uma comunicabilidade. A finalidade dessa relação seria a proteção e conservação da vida, o que se torna possível com o conceito de phármakon como instrumento capaz de indicar formas e doses corretas, funcionando como um poder de imunização.

Como caminho discursivo para pensar o direito como dispositivo de resistência, apresentamos duas funções para compreender a afirmação inicial deste parágrafo: a primeira, “a função imunitária que o direito desempenha em relação à comunidade é de evidência imediata e, como tal, universalmente reconhecida até mesmo fora da literatura jurídica”, e a segunda, “ele garante a sobrevivência da comunidade em uma situação de perigo mortal” (Esposito, 2023a, p. 29). O comentário de ambas as citações converge para o sentido de conservação da vida. Esse intuito advém da condição de violência gerada pela própria comunidade, que deveria proteger, mas destrói sua própria vida. Por isso, o direito, em sua dosagem correta, indica um ato de combate e de proteção contra o patógeno da violência.

O “dispositivo imunitário” mencionado por Esposito pode ser entendido como uma “terapia imunitária”, que, na quantidade adequada, não resulta em violência. O segundo tipo de intervenção, baseado no conceito de phármakon, também deve equilibrar qualidade e quantidade para evitar a violência (Esposito, 2023a, p. 49). No entanto, essas intervenções estão condicionadas à ação da comunidade, que constitui o espaço de exposição dos indivíduos à exteriorização da vida.

Imunização democrática

O sentido da resistência, portanto, está na condição do phármakon como via imunitária, inserindo a impessoalidade como estratégia para pensar não apenas a exterioridade, mas também a internalidade desse processo de comunicação. Pensando em uma imunização democrática, quais seriam seus elementos? Não apresento respostas definitivas, mas indico algumas pistas: a primeira refere-se à condição de uma biopolítica afirmativa e sua relação com a impessoalidade, e a segunda ao termo Instituzione (Esposito, 2023b), por isso, temos os argumentos seguintes.

O primeiro argumento se baseia na conservação da vida como ação estratégica de ruptura das inércias produzidas pelos processos de subjetividade. A impessoalidade atua como condição de resgate da alteridade política, ao reconhecer o outro como extensão de nossa própria comunicabilidade; trata-se de um agir desobrigado, ou seja, um agir como forma de extensão de um coletivo.

O segundo argumento se baseia em Instituzione, que não representa uma instituição, mas um movimento que expressa não uma síntese, mas a constância do que se pode dizer sobre práxis instituinte, por meio de um movimento plural de sujeitos, em que cada vida importa no contexto de conservação da vida.

Desse modo, podemos ensaiar a conclusão de que há uma imunização democrática baseada nos seguintes argumentos: liberdade, agir coletivo e, sobretudo, justiça pelo impessoal. Esse movimento visa a conservação da vida por meio do reconhecimento da alteridade plural e da capacidade de agir desobrigadamente em relação ao outro. Estamos “desobrigados”, mas ainda assim agimos; trata-se de um agir que transcende o próprio direito e a responsabilidade individual, emergindo como ação coletiva derivada da extensão de nossas subjetividades em relação ao outro.

Essa interpretação converge com o que Esposito apresenta em “Terceira Pessoa”, em que, mesmo que o corpo esteja fragmentado como consequência de conflitos e da violência resultante de altos níveis de imunização que o marginalizam, o horizonte da “impessoalidade” surge como alternativa de resistência. Ela proporciona a capacidade de evitar a anulação ou expulsão da pessoa. Segundo o autor, a terceira pessoa demonstra a condição paradoxal de ser singular e, ao mesmo tempo, plural, levando consigo suas singularidades ao espaço público.

Outro argumento de resistência é pensar que a terceira pessoa oferece uma condição de justiça. Esposito retoma, nesse contexto, a discussão com Simone Weil (8), ao considerar uma justiça fundada no impessoal. A consequência é a construção de um retrato que atravessa a vida por meio de uma biopolítica afirmativa, na qual o que resiste é a vida. O pensamento de Weil atravessa a análise de Esposito ao pensar a vida como uma graça e não como uma justiça de restos. Assim, o processo de resistência do direito consiste em considerar a justiça do impessoal como instrumento de resgate da alteridade, prevenindo o egoísmo social e político.

IHU – A recente pandemia de Covid-19 colocou em evidência as tensões entre vida, economia e liberdades. Como essa experiência global ilustra os limites tênues entre uma biopolítica necessária (medidas sanitárias para proteger a vida) e os riscos de uma deriva tanatopolítica (como a hierarquização de quais vidas valem mais a pena serem salvas)?

Antônio Justino de Arruda Neto – No ensaio “Vírus Soberano?Donatella Di Cesare (9) apresenta que o “vírus” rompeu com os aspectos soberanos, pois ultrapassou a condição territorial, sem precisar de um exército ou de armas, mas impactando diretamente uma sociedade “cansada”. Sabemos que o “vírus” paralisou momentaneamente o aspecto econômico, que precisou se remodelar e encontrar novas formas de instrumentalidade; o mesmo ocorreu com a política. Por fim, o “vírus” atuou como um freio obrigatório e necessário no quesito de aproximar os outros em razão das práticas de combate e proteção sanitária.

No que tange ao elemento da pergunta, os riscos se manifestaram no embate constante entre ciência e política, evidenciando como a linguagem médica foi utilizada tanto por aqueles que defendiam as medidas de proteção da vida quanto pelos contrários. O negacionismo atingiu seu ápice no contexto político. Recordamos das declarações do ex-presidente Bolsonaro em 20-03-2020, no início do processo de lockdown, chamando a doença de uma “gripezinha” e, posteriormente, imitando uma pessoa com falta de ar.

No caso brasileiro, o conflito entre governadores e o presidente, que priorizava sua sobrevivência política, transformou o discurso contra a pandemia em um instrumento de tanatopolítica, já que a questão da Covid-19 foi utilizada para potencializar um discurso extremo e contrário a uma vida plural, como exemplificou o próprio Bolsonaro: “tem que deixar de ser um país de maricas”. A ação dos governadores e do STF assumiu a linha de frente contra a tanatopolítica do governo Bolsonaro, especialmente em relação a grupos indígenas e quilombolas, com a chegada das vacinas.

Apesar do período de maior impacto ter passado, o vírus continua a circular e, em seu silêncio biológico, pode se transformar em outras cepas mais potentes. Após 05-05-2023, data em que a OMS declarou o fim da “emergência mundial” sobre o Covid-19, muitas vozes indicaram que o pior havia passado. No entanto, permanece a pergunta: o que ainda não aprendemos com o pós-Covid-19 no contexto político, desconsiderando o aspecto psicológico? O mundo não acabou, mas apresenta novas formas, e o capitalismo desenvolveu novas instrumentalidades, enquanto discursos negacionistas ganharam força, evidenciando o crescimento de governos, partidos e movimentos de cunho fascista em escala global.

A consequência do embate entre biopolítica e tanatopolítica é que esta última conseguiu expandir suas malhas, tornando-se mais visível, enquanto as instituições de conservação da vida permanecem fragmentadas e, mesmo assim, resistem. Há, ainda, um sentido de esperança: quando o povo se mobiliza, não se trata apenas de um ato isolado, mas da potência de constituir um agir necessário diante das ameaças.

IHU – Diante dessas pressões imunitárias exacerbadas, qual é o prognóstico para as democracias liberais? Estamos condenados a um ciclo de autocontração autoritária, ou existe a possibilidade de uma “cura” que não seja através de mais “vacinas” autoritárias, mas sim pela reconstrução de um munus democrático que aceite o risco inerente à comunidade e à alteridade?

Antônio Justino de Arruda Neto – De fato, a pergunta tem em sua essência um tom de esperança sobre a possibilidade de resistência, e acredito que sim. Embora a pergunta sugira que, para aceitar o munus democrático, seja preciso assumir algum tipo de risco, cabe refletir: qual seria esse risco? Acredito que viver com uma “bala de prata” direcionada a você representa um tipo de vida que não desejamos. Sabemos, porém, dos riscos atuais, sobretudo no contexto político e das estruturas do capital, que buscam moldar nossa percepção de mundo e capturar nossa espontaneidade.

Outro ponto que merece atenção é o uso do termo “prognóstico”, que pode aprisionar em metas, muitas vezes não cumpridas. Além disso, os prognósticos podem nos impedir de compreender o presente, que é o que realmente devemos considerar, evitando a camuflagem do momento atual. Conforme elencou Arendt em Homens em tempos sombrios, necessitamos de espaços de aparição, no sentido de o indivíduo se mostrar ao outro.

Aceitar o risco, penso eu, significa reconhecer a camuflagem dos prognósticos e assumir a função de oráculos e profetas, que anunciam uma espera por um momento político ainda não vivido. Desse modo, os prognósticos não devem nos aprisionar em nossos medos, mas nos levar a refletir sobre a essência que existe no intervalo entre nós, ou seja, os vazios produzidos pela forma como assumimos contratos e ações projetadas para o futuro. Por isso, o uso do termo “reconstrução do munus democrático” é útil para pensarmos não em prognósticos, mas no tempo presente, ou seja, em nossos presentes e em como agir sobre eles. O termo envolve a questão da alteridade e da forma como lidamos com o outro, além da conjuntura do poder, que molda a nós e ao nosso entorno.

De população para povo

No contexto atual das democracias liberais, não percebemos um movimento de reconstrução das relações de sociabilidade com o outro; pelo contrário, observa-se um poder que disciplina ainda mais essas relações. O poder atua de maneira direta nesse processo, e as democracias liberais não escondem o poder disciplinar, mas o exercem de forma explícita. Contudo, é necessário pensar em possibilidades. Como mencionei na resposta anterior, quando o povo deixa de ser população, atua para romper com esse processo disciplinar.

Nesse sentido, o questionamento de Arendt (2018), “quem somos?”, nos permite extrapolar nossa capacidade de aparecer no mundo, considerando esse olhar como interno, e não apenas externo, reconhecendo nossa ancestralidade como forma de cuidado do outro. Portanto, a reflexão não está apenas no risco, mas no afastamento dele, questionando quando deixaremos de ser população e nos tornaremos povo, quando aparecemos efetivamente ao munus democrático.

Referências

BAZZICALUPO, Laura. Biopolítica: Uma Mapa Conceitual. Tradução de Luisa Rabolini. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2017.

DI CESARE, Donatella. Vírus Soberano? A Asfixia Capitalista. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.

ESPOSITO, Roberto. Immunitas: Proteção e Negação da Vida. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2023a.

ESPOSITO, Roberto. Instituição. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2023b.

ESPOSITO, Roberto. Communitas: Origem e Destino da Comunidade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2022.

ESPOSITO, Roberto. Terceira Pessoa: Política da Vida e Filosofia do Impessoal. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.

ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e Filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2018.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

NEGRI, Antonio. Quando e Como Eu Li Foucault. Tradução e Organização de Mario Antunes Marino. São Paulo: n-1 edições, 2016.

Notas

(1) Roberto Esposito (1950): filósofo italiano, especialista em filosofia moral e política. Leciona Filosofia Teorética no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Escola Normal Superior de Pisa, é pesquisador do Centro Universitario di Ricerca sul Lessico Politico e Giuridico Europeo (CIRLPGE), reconhecido principalmente pelas contribuições ao debate acerca da biopolítica. Suas reflexões têm como temas principais o impolítico, a comunidade, a imunidade, a biopolítica, a desconstrução do paradigma da pessoa, o pensamento do impessoal, a Italian Theory e a filosofia europeia. Destacou o caráter conflituoso da dimensão política através da introdução de novas categorias intelectuais, muitas delas inspiradas nas obras de Arendt, Heidegger e Nietzsche. Esse caminho o levou a contrastar, por exemplo, os conceitos de Communitas e Immunitas como os dois polos da ação coletiva em oposição à ação individual.

(2) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Sobre seu pensamento confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia); Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, e Edição 119, de 18-10-2004, Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois.

(3) Antonio Negri (1933-2023): filósofo político marxista, acadêmico e militante político italiano, um dos expoentes do marxismo operaísta, entre os anos 1960 e 1970. A partir dos anos 1980, dedicou-se ao estudo do pensamento político de Baruch Spinoza, contribuindo, juntamente com Louis Althusser e Gilles Deleuze, para a redescoberta teórica do filósofo neerlandês. Em colaboração com Michael Hardt, escreveu algumas obras muito influentes na teoria política contemporânea. Ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império – que se tornou um manifesto do movimento antiglobalização – e de sua sequência, Multidão, ambos escritos em coautoria com seu ex-aluno Michael Hardt. Paralelamente ao seu trabalho teórico, desenvolveu intensa atividade de militância política, tendo sido um dos fundadores das organizações da esquerda extraparlamentar Potere Operaio e Autonomia Operaia. Em 1979, já professor universitário de filosofia, Toni Negri foi investigado, preso e julgado por “cumplicidade política e moral” com o grupo terrorista Brigadas Vermelhas, em um polêmico e controverso inquérito judicial chamado pela imprensa de “julgamento de 7 de abril”, condenado a 12 anos de prisão, aos quais foram acrescentados outros tantos, nos anos 1990, pelos crimes de “associação subversiva” e “cumplicidade moral em roubo”. Cumpriu um total de dez anos, os últimos dos quais em regime de semiliberdade.

(4) Laura Bazzicalupo: professora de Filosofia Política na Universidade de Salerno, na Itália, e preside a Sociedade Italiana de Filosofia Política. Entre suas obras recentes estão Superbia (Bologna, 2008); Biopolitica. Una mappa concettuale (Roma, 2010, lançada pela Editora Unisinos em 2017 com o título Biopolítica. Um mapa conceitual); Eroi della libertà. Storie di rivolta contro il potere (Bologna, 2011); Dispositivi e soggettivazioni (Milano, 2013) e Politica. Rappresentazioni e tecniche di governo (Roma, 2013). Concedeu ao IHU a entrevista especial A teoria liberal-democrática é incapaz de dar conta de um mundo seletivo e hierárquico, onde as diferenças estão instaladas em corpos e vidas concretas, publicada nas Notícias do Dia de 09-01-2018.

(5) Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.

(6) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975.

(7) Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer. Formado em Direito, em 1965, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, participou dos seminários promovidos por Martin Heidegger, no fim dos anos 1960. De 2003 a 2009 lecionou Estética e Filosofia, no Instituto Universitário de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Em seguida decidiu abandonar a atividade de ensino nas universidades italianas. Atualmente dirige a coleção “Quarta prosa” da editora Neri Pozza. na Università IUAV em Veneza. A sua produção se concentra nas relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e, fundamentalmente, a política. Responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, foi professor visitante da New York University, antes de se decidir a não mais entrar nos Estados Unidos, em protesto contra a política de segurança do governo Bush. Sobre o pensamento de Agamben, confira a Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna.

(8) Simone Adolphine Weil (1909-1943): escritora, mística e filósofa francesa, que se tornou operária da Renault para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas. Lutou na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos, e na Resistência Francesa, em Londres; por ser bastante conhecida, foi impedida de retornar à França como pretendia; acometida de tuberculose, não teria admitido se alimentar além da ração diária permitida aos soldados, nos campos de batalha, ou aos civis pelos tickets de racionamento. Com a progressiva deterioração de seu estado de saúde, em estado de desnutrição, faleceu poucos dias depois de seu internamento hospitalar. De sua vasta bibliografia, destacamos: A condição operária e outros escritos sobre a opressão (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979), O Enraizamento (São Paulo: EDUSC, 2001), Pela supressão dos partidos políticos (Veneza: Editora Âyiné. 2016) e Contra o colonialismo (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 2019). Sobre Simone Weil, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Ed. 313, de 06-11-2009, Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil, cem anos, Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX; Ed. 84, de 17-11-2003, Simone Weil Palavra Viva.

(9) Donatella Di Cesare: filósofa, ensaísta e colunista italiana que leciona Filosofia Teorética na Universidade “La Sapienza”, de Roma. É uma das pensadoras mais influentes no debate público italiano e internacional, seja acadêmico, seja midiático. Colabora em vários jornais e revistas, incluindo L’Espresso e il Manifesto. Seus livros e ensaios são traduzidos mundialmente, dentre os quais destacamos: O complô no poder (Aynè, 2022), Vírus soberano? A asfixia capitalista (Aynè, 2020) e Terror e modernidade (Aynè, 2019). Concedeu ao IHU a entrevista “A esquerda deveria sair do estupor que a acomete e reagir antes que seja tarde demais”, publicada nas Notícias do Dia 09-04-2025. Em 04-11-2025, ministrará a conferência Etnocracia e limpeza étnica: no coração do pós-fascismo, dentro da programação do XXI Simpósio Internacional “A extrema-direita e os novos autoritarismos. Ameaças à democracia liberal”.

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