Por: Márcia Junges | 26 Outubro 2017
Pensar sobre a biopolítica como paradigma de nosso tempo significa refletir sobre o contexto de seu surgimento e suas diferentes definições. E nesse sentido é necessário ter no horizonte as obras de Agamben, Foucault, Derrida, entre outros pensadores fundamentais acerca dessa temática. A conceitualização mais conhecida sobre a biopolítica é tributária a Foucault, e só pode ser compreendida adequadamente através do surgimento do conceito de população. “Lembremos que entre as técnicas de poder do século XVIII desponta o surgimento da população como problema político”, assinalou a filósofa Penelope Deutscher, da Nortwestern University - EUA.
A reflexão faz parte da conferência Gênero e biopolítica, em 17-09-2017, proferida pela pesquisadora dentro das atividades do IX Colóquio Internacional IHU – A Biopolítica como teorema da Bioética. O evento foi organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Com a emergência da população, a biopolítica é o método de poder que expressa a governamentalidade, que visa controlar e modificar a vida em termos macro. “Temos que falar de biopoder para falar da vida que entrou para dentro dos cálculos governamentais”, acrescenta Deutscher.
Em sua linha de raciocínio, a biopolitica e a bioética dizem respeito intrinsicamente ao poder de nosso tempo, que deixa morrer e faz viver. É um outro marco, diferente daquele do poder soberano, que fazia morrer e deixava viver. A biopolítica investe inteiramente na vida com a administração e o melhoramento da população. “Trata-se de uma nova forma de conhecimento que pode levar vida para dentro da governamentalidade, para dentro da categoria de população. Pensemos, por exemplo, no surgimento da demografia como problema político”.
Deutscher observou que Foucault não dá ênfase à questão da biopolítica de gênero em suas obras. A questão é problemática desde o surgimento do gênero como questão no século XX. A terminologia gênero nasceu nos anos 1960 como um novo aparato para regulação dos processos de vida, conforme expõe Jemima Repo.
“É importante vermos o nexo entre biopoder e gênero de forma mais problemática, e devo dizer que minha fala aqui na Unisinos não é moldada pelo contexto brasileiro e latino-americano. A resposta de Repo a Foucault conecta gênero à questão da sexualidade. A invenção do gênero cindiu o sexo entre cultural e biológico, reorientando a forma como biólogos, psiquiatras e políticas públicas debatem em torno do sexo”, argumentou. Foucault não debate o gênero como problema filosófico.
A política de igualdade de gênero desempenha papel fundamental na biopolítica contemporânea. O gênero se tornou o linguajar dominante para governar corpos, práticas e a reprodução da vida, bem como gerenciar a vida no nível da população nas várias áreas das políticas públicas europeias. Deutscher argumenta que a biopolítica também precisa ser entendida através do poder de morte, tomando em consideração o marco foucaultiano. “Assim como a vida não é igual para poder político e soberano, o limite extremo ou expressão do poder soberano é o direito sobre a vida e de tirá-la. É uma vida que pode ser tirada, gasta, experimentada, extinta pela guerra que tem interesse no ‘bem estar’ de uma certa parte da população.” Esses argumentos biopolíticos foram baseados na em tudo contestável hierarquia de raças.
Quando se discute a biopolítica, temos que ter em mente que a preponderância desse marco governamental não substitui e exclui aquele do poder soberano, responsável por tirar a vida, marcar os corpos, fazer a guerra. “São modos de poder que se sobrepõem”, analisa Deutscher.
A exposição de alguém a um tipo de morte, rejeição e discriminação é sinal da operação de uma zona cinzenta na qual se mesclam biopolítica e soberania. A população privilegiada, contudo, pode prosperar, como Foucault aponta na obra Em defesa da sociedade.
Já o assassinato indireto na biopolítica, como por exemplo com métodos reprodutivos que são negados para a população pobre, inclusive pela aplicação das leis e métodos contraceptivos disponíveis, é algo que precisa ser considerado. As mulheres podem ser expostas direta ou indiretamente a danos a sua saúde através de decisões governamentais desse tipo, e nessa lógica diversas vidas são suprimidas para que outras possam prosperar. “O sexo e a reprodução recebem viés racista. Já aqueles que não ameaçam a população em sua otimização não precisam ser reprimidos em sua sexualidade.”
Deutscher especifica que o sexo gira em torno da gestão da vida, e não da morte. A sexualidade precoce foi apresentada até o final do século XVIII como uma epidemia que ameaçava o futuro dos adultos, da sociedade e da espécie em última instância. Já as mulheres tinham um papel associado com a reprodução e a manutenção da ordem social e do cuidado. Recentemente, Ruth Miller reformulou a teoria de Agamben sobre o campo como paradigma biopolítico da Modernidade e afirma de modo provocador que o útero é o espaço biopolítico predominante.
Penelope Deutscher | Foto: Ricardo Machado – IHU
Especialista em filosofia francesa contemporânea do século XX, bem como em estudos sobre sexualidade e gênero, Penelope Deutscher desenvolve pesquisas na intersecção da biopolítica, futurismo reprodutivo e genealogia de gênero. É autora de obras como Feminism, Deconstruction and the History of Philosophy (Routledge 1997); A Politics of Impossible Difference: The Later Work of Luce Irigaray (Cornell University Press, 2002), How to Read Derrida (Granta/Norton 2006), e The Philosophy of Simone de Beauvoir: Ambiguity, Conversion, Resistance (Cambridge University Press, 2008). Leciona na Nortwestern University, Estados Unidos da América - EUA.
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Gênero, biopolítica e a questão da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU