18 Março 2023
Francisco Martorell, doutor em Filosofia, pesquisa os imaginários culturais do futuro e, em especial, as suas vertentes utópicas e distópicas, tema atualmente em voga. Dedicou dezenas de artigos à análise dessas questões, assim como dois livros: Soñar de otro modo: Cómo perdimos la utopía y de qué forma recuperarla (La Caja Books, 2019) e Contra la distopía (La Caja Books, 2021).
A entrevista é de Salvador Enguix, publicada por La Vanguardia, 12-03-2023. A tradução é do Cepat.
Em seu livro “Contra la distopía”, diz que “estamos sem utopias influentes e compartilhadas, prisioneiros da impotência, do medo e do fascínio pelo apocalipse”. Falo de sua citação porque, recentemente, li “La sociedade del miedo”, de Heinz Bude, que diz que estamos instalados no medo de muitas coisas. É assim?
Sem dúvida. Ulrich Beck detectou o fenômeno em meados dos anos 1980, em Sociedade de risco, um clássico no qual demonstrou como as sociedades avançadas entraram em uma fase na qual os sentimentos de perigo e incerteza são constantes e um único desejo move os indivíduos: o desejo de segurança. Desde então, esse processo nada mais fez do que inflamar.
O desmantelamento do Estado de bem-estar, os atentados do 11-s, a crise financeira do ano de 2008 e a pandemia não ajudaram precisamente a erodi-lo. O problema do medo surge quando se torna um sentimento funcional ao sistema, quando adquire onipresença e monopoliza os imaginários. A propagação compulsiva de distopias na cultura popular reflete esse cenário. Mas, atenção, não apenas o reflete. Ao mesmo tempo, reforça-o.
Há autores que chegam a dizer que o medo se tornou uma poderosa ideologia para o controle das massas.
Essa função não significa nenhuma novidade, mas, sim, a complexidade que adquiriu. A pessoa dominada pelo medo tende a buscar refúgio. Se existissem os bunkers low cost dos quais fala Isaac Rosa, em seu último romance, todos nós tentaríamos comprar um. No entanto, o medo não instiga apenas letargias, fugas e esconderijos, pode também nos mobilizar. De fato, ultimamente, isto acontece com bastante frequência.
Independentemente de seu lado político, hoje, as pessoas se mobilizam sob a influência do medo, com a intenção de evitarem adversidades e se defenderem das ameaças. Algumas são reais, como no caso da mudança climática e os despejos; outras induzidas, como no caso da ocupação em massa de casas e da delinquência descontrolada. Seja como for, o medo administra.
Em sua obra, você fala sobre o fim das utopias, tema que Enzo Traverso associa principalmente às esquerdas. Quais são as consequências?
Após a queda do Muro de Berlim, a esquerda sofreu uma espécie de estresse pós-traumático do qual ainda não se recuperou. Como terapia, renunciou à utopia, assumiu um realismo mal compreendido e cedeu à direita noções de futuro e de progresso. Como consequência, parou de forjar programas transformadores a longo prazo e passou a gerir problemas imediatos. Desprovida de impulsos utópicos significativos, a esquerda perdeu de vista o futuro e se tornou inofensiva, incapaz de iluminar alternativas apaixonantes ao que existe.
Na minha opinião, não sairá do atoleiro enquanto permanecer acorrentada ao imediatismo e às políticas do medo, enquanto carecer de narrativas sobre futuros desejáveis e programas para materializá-los. Não se trata de sonhar com futuros cor-de-rosa, mas, sim, de abrir horizontes compartilhados e incutir esperança por meio de imagens de futuros que, sem serem perfeitos, nem imaculados, desafiem o fatalismo dominante e contribuam com ideias para tornar as coisas melhores.
Como as distopias são construídas?
Toda distopia segue três passos. Primeiro, escolhe traços da atualidade que inspiram medo. Depois, são hiperbolizados para se tornarem mais visíveis. Uma vez exagerados em maior ou menor grau, são projetados no futuro. Por meio do método indicado, a distopia critica o presente comparando-o com um futuro espantoso e tornando-o responsável pelo mesmo.
Como você vê a saúde da social-democracia na Europa? Na França, desapareceu como partido, na Itália, a extrema-direita se impôs, em outros países, são as forças ecologistas que ocuparam esse espaço.
Em seus anos de esplendor (1950-1975), as formações social-democratas mantinham fortes vínculos com os sindicatos. Quando venciam as eleições, contingência que acontecia com frequência, nacionalizavam indústrias, aprovavam novos benefícios e impunham algumas taxas de impostos às empresas e grandes fortunas, inimagináveis em nosso tempo.
A crise da social-democracia obedece, entre muitas outras razões, à globalização do capitalismo, acontecimento que o emancipou da regulação aplicada pelos governos keynesianos do pós-guerra. E ao fato de, no econômico, os partidos social-democratas terem se tornado, a partir dos anos 1980, indistinguíveis da direita. Sendo assim, qual era o sentido de votar neles?
Mark Lilla adverte que, nos Estados Unidos, a social-democracia abandonou o modelo liberal-social transversal em defesa do “nós”, que irrompeu na Segunda Guerra Mundial, para se instalar no individualismo identitário. Uma posição próxima ao “egoísmo” denunciado por Tony Judt, com efeitos perversos sobre os valores clássicos da esquerda.
A guinada identitária caracteriza a esquerda contemporânea em seu conjunto. Nancy Fraser teorizou a situação em um artigo canônico de 1995. Sua tese era a de que as lutas em favor do reconhecimento da identidade tinham deslocado para segundo plano as lutas em favor da redistribuição econômica. As primeiras almejam maior diversidade, abolir a discriminação sofrida por mulheres e minorias étnicas, por gays e pessoas trans. Por outro lado, as segundas almejam maior igualdade, abolir a pobreza e a exploração do trabalho.
Pessoalmente, recuso-me a perder um pingo de energia com a gritaria em torno dessa dialética. Penso que é perfeitamente viável combinar as demandas socialistas por redistribuição e as demandas identitárias por reconhecimento. Viável e recomendável, pois as injustiças que apontam, frequentemente, estão entrelaçadas. Infelizmente, os êxitos alcançados pela esquerda do século XXI, no tocante ao reconhecimento, coincidem com sua impotência quando se trata de encarar o capitalismo e abordar os problemas das maiorias sociais (salários, aposentadorias, demissões, acesso à moradia e coisas assim).
Considera que o futuro das democracias liberais no mundo está em risco, conforme afirmam muitos autores?
Observando a ascensão planetária da extrema-direita, ficaria tentado a dizer que sim, ao menos em seu formato vigente. Seria necessário questionar o que as democracias liberais fizeram de errado para que setores tão amplos do eleitorado se identifiquem com discursos que acreditávamos, felizmente, superados. Le Pen, Orbán, Trump, Bolsonaro, Meloni e companhia são, em parte, frutos da própria democracia liberal, reações contra a globalização econômica e o pós-modernismo cultural que ela defende.
E são também, embora doa dizer isto, subprodutos da assimetria que acabo de comentar. O filósofo estadunidense Richard Rorty alertou, no mesmo momento que Fraser, que a esquerda não falava mais apenas de dinheiro, que estava deixando a classe trabalhadora desamparada, um coletivo muito castigado, cujo mal-estar corria o risco de ser instrumentalizado pelos populistas radicais de direita. E foi o que aconteceu.
A ultradireita acabará impondo sua narrativa às direitas liberais, como aconteceu na Itália e, inclusive, nos Estados Unidos?
Dependerá do convencimento da direita liberal em cortar qualquer tipo de relação com a ultradireita. E do tipo de ultradireita que se dê em cada caso. Na Espanha, a ultradireita parlamentar é retrógrada, no cultural, e neoliberal, no econômico. Portanto, no importante, coincide com a direita moderada, que no caso espanhol é, aliás, pouco liberal em questões culturais. Então, combinam sem muitos problemas.
O mesmo não acontece em países onde a direita radical é antiglobalista e antiliberal. Na França, por exemplo, há várias eleições, no segundo turno, enfrentam-se um candidato da direita liberal e um candidato da extrema-direita.
Existe produção acadêmica que aponta que a direita, após anos de fragilidade, recuperou suas forças para seduzir um ecossistema onde a sedução digital parece estar acabando com o debate moderado. Ou seja, a hipérbole enfraqueceu o argumento. Concorda?
É óbvio que as redes sociais estão envolvidas no crescimento e divulgação da extrema-direita. O número de perfis, canais e influencers de corte masculinista, racista e homofóbico é inesgotável. A própria arquitetura algorítmica das redes sociais favorece o discurso exasperado e impulsivo. No entanto, sendo isso verdade, cabe especificar que a orientação ideológica das redes sociais não está totalmente predeterminada e que podem ser usadas em benefício de tendências progressistas.
Por outro lado, parece-me igualmente óbvio que a escalada da extrema-direita corresponde a uma multiplicidade de fatores, não só, nem principalmente, às tecnologias digitais. Fatores de tipo econômico, claro, mas também cultural. Pablo Stefanoni explica muito bem como a direita radical é uma consequência perversa da institucionalização das reivindicações esquerdistas. Uma vez que o feminismo, o ambientalismo e os direitos dos gays adquirem status ministerial, muitos indivíduos os percebem como imposições opressoras do poder estabelecido e se sentem rebeldes ao contradizê-los.
Aproxima-se o 28M. Eleições regionais e locais [na Espanha]. Com uma fratura profunda das esquerdas em questões como a proteção da mulher, a identidade de gênero (lei trans) e em temas como a sustentabilidade. Quais podem ser as consequências?
A principal, não estou fazendo nenhuma descoberta, é a derrota eleitoral. Os eleitores penalizam instintivamente as divergências dentro de um mesmo governo. Não valorizam a pluralidade de perspectivas, nem o conflito. Tenho muito receio de que para a maioria das pessoas preocupadas em pagar as contas, as contendas que acontecem em torno de leis tão importantes como a lei “só sim é sim” e a “lei trans” sejam indiferentes, inclusive incômodas.
No nível estratégico, o ideal seria que as diferentes perspectivas discutissem os conteúdos internamente e entrassem em acordo antes de apresentarem as leis em questão, sem lançar reprovações mútuas no parlamento. No entanto, seria muito simplista atribuir a hipotética mudança de governo às discussões desencadeadas em torno dessas leis. A tendência ao conservadorismo rançoso e antigo vem de antes.
Você é pessimista em relação ao futuro? Seremos capazes de construir uma sociedade mais coesa ou as fraturas sociais vão se agravar?
Dadas as circunstâncias, é factível um futuro distópico em que as democracias caiam nas mãos de retrógrados e os direitos que nossos antecessores conquistaram sejam fulminados. Ainda assim, a chegada da futura distopia é, por enquanto, uma eventualidade entre outras.
Por mais difícil que seja concebê-lo, não podemos também descartar um futuro utópico em que a mudança climática e o aumento da desigualdade conscientizem os sucessores sobre a necessidade de aprofundar a democracia e viver de forma menos competitiva, produtivista e individualista.
No fim das contas, não acredito que o assunto dependa de otimismo ou pessimismo. Depende de resistir à tentação de se render ou não. A história atesta que o roteiro do futuro está para ser escrito, que por pior que as coisas caminhem em determinado momento, sempre há a possibilidade de que a contingência faça o seu trabalho e dê lugar, com guinadas imprevisíveis, a sociedades melhores. O ativista se apega a tal possibilidade, remota e incerta, para não ficar de braços cruzados.
Considera que a esquerda propõe soluções adequadas para garantir essa coesão? Há muitos exemplos, como a renda básica universal, as jornadas de trabalho, a reforma trabalhista.
A renda básica universal é a medida que a esquerda precisa para curar seu estresse pós-traumático e retomar a iniciativa. Mas, não a vejo muito decidida a trabalhar nisso e promovê-la. Estamos diante de uma proposta cuja realização, se é que acontecerá, não veremos. Defendê-la implica pensar nas pessoas que ainda não nasceram, praticar a utopia no sentido mais nobre da expressão.
Como ideia utópica, a renda básica universal produz espanto e chacota, o mesmo espanto e a mesma chacota que, em sua época, a ideia de reduzir a jornada de trabalho para oito horas e a ideia de igualar os direitos das mulheres aos dos homens provocaram. Consideradas impossíveis e quiméricas, por fim, foram cumpridas. Por que o mesmo não pode acontecer com a renda básica universal? O que impede a esquerda de se envolver, ainda que seja com a redução da jornada de trabalho?
São objetivos transversais, de médio e longo prazo, que melhorariam a vida das pessoas. Suas repercussões positivas nos âmbitos ecológicos, de gênero e saúde mental seriam, muito provavelmente, notórias. Contudo, sabemos onde estamos. Em um contexto tão conservador como o atual, até uma proposta tão modesta como “a cidade dos 15 minutos” é tachada de norte-coreana.
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“Hoje, as pessoas se mobilizam sob a influência do medo”. Entrevista com Francisco Martorell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU