“O Brasil tem que ser muito hábil nessa hora para se mostrar um mercado importante e manter toda a sua soberania”. Entrevista especial com Fernando Sarti

Para o doutor em economia da Unicamp, a política protecionista defendida por Trump para os EUA, se colocada em prática, deve minar relações comerciais e políticas mundo afora, principalmente em relação à China. Com isso, o Brasil pode fortalecer suas parcerias com os chineses e europeus, assim como já o fez no acordo Mercosul e União Europeia (UE)

Arte: Mateus Dias - IHU

Por: Elstor Hanzen e Patricia Fachin | 21 Janeiro 2025

Ainda sem certeza qual a intensidade e a velocidade da política protecionista americana de Trump, que voltou à presidência no dia 20 de janeiro, o Brasil pode ter uma oportunidade nesta disputa de mercado para melhorar e ampliar suas relações externas. “É possível que a reação chinesa abra espaço para alguns setores brasileiros, a partir do momento em que haja alguma retaliação às exportações americanas”, aponta o professor Fernando Sarti.

Sarti afirma que a indústria brasileira pode abocanhar novos investimentos diante de uma política externa refratária dos EUA, tanto dos chineses como dos europeus. Além do protecionismo americano, há uma outra questão importante que pode ser positiva para o Brasil e a América Latina. “O reposicionamento das grandes corporações dentro das cadeias globais de valor desde a pandemia, por ter havido um excesso de concentração e dependência da produção na Ásia e na China. Muitas grandes corporações estão se reposicionando, buscando novos parceiros além dessas regiões”, explica o pesquisador.

A respeito do acordo Mercosul e União Europeia, fechado por Lula em dezembro de 2024, avalia haver mais pontos positivos do que negativos para o Brasil, embora saliente preocupação com a paralisação da indústria brasileira. “Vai em direção contrária ao protecionismo colocada pelo atual governo dos EUA. Então não vejo com tantos problemas. Houve avanços importante, se o Brasil souber aproveitar seu potencial interno, com relação à margem que foi dada na negociação no UE, inclusive, pode trazer investimentos relevantes para cá”.

Nesta entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele critica os rentistas que só querem viver de juros. “Basicamente, diria que o capital encontra, na ideia de baixo crescimento econômico, sua continuidade na acumulação de riquezas sem produzir nada. Claramente eles (os agentes financeiros, mercados) querem um processo concentrador de renda por meio de juros altos, sob baixa taxa de crescimento. Para eles é o ideal”, lamenta.

Sarti destaca ainda ser difícil governar e desenvolver um país diante de um Congresso que tem mais gana por emendas parlamentares do que pelos interesses nacionais. “Próprio Congresso é muito conversador, e tem uma parcela bastante hostil ao governo. Já o grupo do Centrão impõe sua agenda e pressiona o governo, transformando o presidencialismo de coalizão num presidencialismo de coerção”, afirma.

Fernando Sarti | Foto: Reprodução/Unicamp

Fernando Sarti é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestrado em Economia com a dissertação: “Evolução das Estruturas de Produção e de Exportação da Indústria Brasileira nos Anos 1980” e doutorado em Economia com a tese “Internacionalização Comercial e Produtiva no Mercosul nos anos 90”. Participante da terceira edição do Cambridge Advanced Programme on Rethinking Development Economics na Universidade de Cambridge-Inglaterra em 2004.

Confira a entrevista. 

IHU - Como avalia a economia brasileira e o desenvolvimento do país à luz da terceira gestão do governo Lula?

Fernando Sarti - Vamos lembrar que este governo teve que enfrentar dificuldades de todas as ordens, das políticas econômicas, tanto internas quanto externas. Do ponto de vista externo, houve um período de inflação global importante, além de todo estresse sobre as cadeias globais de valor, somado às guerras. Tudo mexeu muito nos preços de energia globalmente, por exemplo. Então, houve realmente um impacto aí da inflação que o governo teve que tratar.

Já do ponto de vista interno, acho que as maiores dificuldades têm a ver, em primeiro lugar, com a situação absolutamente excepcional: a tentativa de golpe e o desmanche do país. Não foi uma coisa trivial, representou um risco muito sério à democracia, além de um desgaste político grande. Ao mesmo tempo, o próprio Congresso é muito conversador, e tem uma parcela bastante hostil ao governo. Já o grupo do Centrão impõe sua agenda e pressiona o governo, transformando o presidencialismo de coalizão num presidencialismo de coerção.

Aí se pode observar claramente, não é só de agora, mas há algum tempo, que o poder executivo vem perdendo poder em relação ao legislativo, sobretudo, por causa das emendas parlamentares. Tudo isso atrapalha o desenvolvimento do país e a execução da política econômica, da política pública, de uma forma geral.

Por outro lado, apesar de todas essas dificuldades, seja no plano político, no plano econômico, interno ou externo, é um governo que, em dois anos, entregou bastante coisa. Nós tivemos um crescimento acima da média dos últimos anos de 3% do PIB, o que não é pouco. Estamos num nível mais baixo de desemprego das últimas décadas, obviamente um aumento da transferência de renda e da redução de pobreza. Então, nesse ponto de vista, é o atendimento de uma agenda social que estava colocada, era uma promessa do programa de governo, que foi entregue. Ainda do ponto de vista econômico, as contas externas em uma situação bastante tranquila, com geração de superávits comerciais.

IHU - Alguns especialistas avaliam que o governo está refém dos rentistas. Concorda? Quais os impactos disso na política industrial e no desenvolvimento do país como um todo?

Fernando Sarti - Sim, é refém do mercado financeiro, mas isso não é novidade, algo que já vinha acontecendo com governos anteriores. Temos que contextualizar um pouco isso dentro do que vem ocorrendo também globalmente. Isso é próprio sistema capitalista, um processo de acumulação do capital sob a dominância financeira. Isso é generalizado, talvez com algumas poucas exceções, como é o caso da China, realmente colocando um aumento no poder financeiro e dos donos do capital na política. Portanto, os capitalistas e seus gestores, impõem condição bastante assimétrica. Um exemplo, para ver, é a recente especulação cambial. É o sistema financeiro que avalia risco a partir das suas expectativas, o que é o melhor para eles. Dessa forma, o sistema financeiro avalia o risco e o precifica.

Quando se vê uma desvalorização cambial como ocorreu, essa puxada da taxa de juros, são os preços precificados pelo próprio mercado a partir das suas avaliações com relação ao risco, conforme seus interesses. Isso faz com que, evidentemente, esse poder concedido ao sistema financeiro subordine, tanto a política monetária quanto a fiscal, respaldando as suas demandas e interesses. Basicamente, eu diria que o capital encontra, na ideia de baixo crescimento econômico, sua continuidade na acumulação de riquezas sem produzir nada. A experiência que o mercado teve nos demais governos progressistas de crescimento produtivo, levou a um conflito distributivo. E isso não interessa o mercado financeiro.

Claramente eles querem um processo concentrador de renda por meio de juros altos, sob baixa taxa de crescimento. Para eles até é o ideal. E aí, obviamente, com a geração e extração de valor, seja da forma fictícia, seja durante a economia. Mas, evidentemente, para eles o processo de acumulação é cada vez mais independe do crescimento. Essa é uma questão importante que tem que ser considerada.

IHU - O senhor está entre os economistas que costumavam chamar a atenção para o processo de desindustrialização do Brasil nas últimas décadas. Como está esse processo? Há focos de industrialização com desindustrialização?

Fernando Sarti - É óbvio que o Brasil passa para um processo de desindustrialização. Claro, não é um processo generalizado no mundo, porque quando se olha para os indicadores que mensuram a desindustrialização, nem todos os países embarcaram nessa tendência, alguns sim. Porque há realmente algumas economias emergentes, mais dinâmicas, que têm participação do valor agregado, manufatureiro ou industrial, ainda se mantendo no crescente em relação ao PIB. No caso do Brasil, não, isso realmente é declinante.

Isso se dá por dois fatores, vetores. O primeiro que, obviamente, tem a ver com o que ocorre hoje. Que a gente chamaria de “chinalização”, nessa crescente participação da fábrica asiática, em particular a fábrica chinesa, como grande motor de produção industrial global, em volumes, em escalas absolutamente excepcionais, provocado vários efeitos. Esse grau de concentração da indústria nessa região, só para ter uma ideia, quando se pega o valor agregado, o manufatureiro chinês, sozinho, é maior do que somar o segundo (americano), o terceiro (alemão), o quarto (japonês), e o quinto (coreano). Algo inédito, que mostra como houve uma concentração importante da produção.

Com essas escalas, você impressiona o próprio preço dos produtos. Investimentos industriais. Essa é uma condição que está colocada e é uma dificuldade para você rentabilizar o ativo industrial, ter retorno com os investimentos industriais. Para um país como o Brasil, que precisa de um processo de reindustrialização, claramente essa é uma dificuldade importante que tem que ser considerada.

Um outro aspecto importante, além da escala, é a questão do que a gente tem observado nas mudanças tecnológicas, em particular as tecnologias digitais. Estamos falando de inteligência artificial, internet das coisas e todas as demais tecnologias, que claramente propiciada uma mudança importante, um dinamismo importante na fronteira tecnológica. E, neste vetor, o Brasil também está aquém.

Então temos duas pressões importantes, diria dois tsunamis: de um lado essa concentração industrial, escala industrial que é provocada pela concentração da produção na Ásia, na China; e, do outro lado, essa mudança na fronteira tecnológica. Os dois fenômenos são desafios importantes para a indústria brasileira e, se não houver uma reação importante do ponto de vista da política, promover o desenvolvimento produtivo e tecnológico, isso só tende a acentuar a desindustrialização no Brasil.

IHU - O acordo entre Mercosul e União Europeia tem sido criticado por alguns especialistas que o veem como uma possibilidade de acentuar a condição agroexportadora brasileira. Como avalia a proposta de acordo?

Fernando Sarti - Vejo o acordo de forma mais positiva do que negativa. Primeiro, a Europa cedeu em diversos pontos na negociação com o governo Lula, muito mais favoráveis ao Brasil do que teve no governo Bolsonaro. As condições que havia lá atrás, realimente, feriam a soberania nacional. Seja pelo fato de abrir não dos critérios de compras governamentais, seja por renunciar às questões ambientais. Claro, a União Europeia também está fragilizada internamente, então houve realmente uma cedência em favor do Brasil nesse acordo.

Assim, não vejo, honestamente, esse acordo, da forma que foi desenhado, tão negativo. Claro, há pontos que podem reforçar inserção do agro, mas também a indústria, entre elas, a automobilística. Penso que se o acordo fosse prejudicial à indústria, a Fiesp não teria o apoiado.

Além do mais, vai em direção contrária ao protecionismo colocada pelo atual governo dos EUA. Então não vejo com tantos problemas. Houve avanços importante, se o Brasil souber aproveitar seu potencial interno, com relação à margem que foi dada na negociação, inclusive, pode trazer investimentos novos para cá dos europeus e chineses.

IHU - O que a inserção de empresas chinesas no Brasil significa e representa para a economia e a indústria brasileira?

Fernando Sarti - Crescente protagonismo pelo mercado chinês no cenário global, rivalizando, questionando a hegemonia norte-americana, está cada vez mais explicitado. Teremos que ver agora o jogo em relação ao mercado americano, diante do protecionismo anunciado por Trump. E, mais do que isso, qual vai ser o papel cada vez mais esvaziado das instituições internacionais, como Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio. Elas parecem muito desgastadas e não dão conta mais de serem os instrumentos entre essas duas economias hegemônicas.

A resposta da China ao protecionismo americano para nós ainda é uma incógnita, certamente outros mercados vão ganhar importância dentro da estratégia chinesa. O Brasil é, certamente, um deles, fundamental, como vai ser para toda a América Latina, com a ideia da China de expandir seus investimentos em infraestrutura, trazer seus investimentos industriais, que já tem ocorrido aqui.

Logo, acho que tudo isso vai implicar necessariamente uma nova relação Brasil-China, que temos que aproveitar, mais cuidar também, porque isso vai representar um ponto de vista da dinâmica industrial, das relações internas também com a China.

Há riscos e oportunidades. De um lado, é importante para o Brasil esses investimentos, mas tem que manter a sua soberania, além de promover desenvolvimento tecnológico em áreas estratégicas, o que não é uma tarefa fácil diante das relações com a China. Mas, certamente, o Brasil passa a ser, também agora, dentro das estratégias chinesas, um mercado mais importante diante do posicionamento americano bastante protecionista.

IHU - A China está remodelando a geopolítica internacional com sua estratégia de desenvolvimento sustentável?

Fernando Sarti - Essa é uma incógnita. Obviamente que há uma preocupação, não apenas chinesa, mas global, de um processo de transição para energias limpas. Já no caso americano, diante da posição negacionista do Trump, isso vai ser um retrocesso. Não sei como a China vai usar isso como uma moeda importante de troca, ou mesmo de dar visibilidade à sua política externa. Não podemos esquecer, entretanto, a China também tem uma matriz, apesar de todos os avanços, energética bastante suja.

O que é certo, como já comentei anteriormente, é esse aumento do protagonismo chinês na agenda internacional e com uma posição cada vez mais forte do ponto de vista da geopolítica. Repito, acho que a Brasil e a América Latina vão ganhar ainda mais importância.

IHU - Elon Musk é um empresário com relações políticas e empresariais em vários países e em várias empresas. O que essa atuação e influência significam do ponto de vista da geopolítica e das relações comerciais entre os países, especialmente agora que ele integra a equipe do governo Trump?

Fernando Sarti - Musk e Zuckerberg, a Meta e todas as demais plataformas, têm um poder realmente impressionante. Isso preocupa, não apenas pelo grau de concentração, mas seus interesses, essa aproximação dos seus proprietários e empresas às estratégias da extrema-direita. Além disso, têm uma visão distorcida do que é liberdade de expressão, posicionando-se absolutamente contra qualquer nível de regulamentação nas redes. Então, o Brasil tem que realmente fazer esforço junto, sobretudo, aos países europeus para que haja um contraponto nisso, para que a gente não veja esse grau de concentração e esse uso por parte da extrema-direita das plataformas digitais, na política, no dia a dia das economias dos demais países.

IHU - Como o Brasil deve se posicionar neste cenário?

Fernando Sarti - Precisamos saber com qual intensidade vai chegar a nova política americana. Protecionismo certamente vai minar as relações, não apenas comerciais, mas também políticas, seja com o Canadá, México, ou Brasil. Por outro lado, nós temos a China com interesse de crescer na região. Então o Brasil vai ter que aproveitar esse contencioso, certamente o próprio protecionismo americano em relação aos chineses. É possível que a reação chinesa abra espaço para alguns setores brasileiros, talvez o agro seja um desses beneficiados, a partir do momento que haja alguma retaliação às exportações americanas.

Por outro lado, há uma outra questão importante que vem antes do governo Trump: o reposicionamento das grandes corporações dentro das cadeias globais de valor desde a pandemia, por ter havido um excesso de concentração e dependência da produção na Ásia e na China. Muitas grandes corporações estão se reposicionando, buscando novos parceiros além dessas regiões.

O Brasil tem que ser muito hábil nessa hora para se mostrar um mercado importante, também para esses investimentos, mantendo, evidentemente, toda a sua soberania. Contudo, buscar aspectos positivos dessas relações comerciais e produtivas. Esse é o grande desafio da diplomacia brasileira que tem se mostrado muito competente nesse atual governo.

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