Porto Alegre e o RS como símbolos altermundialistas marcaram o fim de uma era civilizatória e o começo do que nos levou à barbárie climática. Entrevista especial com Luís Augusto Fischer

Para o professor e pesquisador, profundo conhecedor dos aspectos culturais e políticos gaúchos, a tarefa que nos cabe daqui para a frente é recuperar o sentido de trabalho cooperativo, solidário, coletivo

Arte de Marcelo Zanotti/IHU a partir da foto de Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Por: Baleia Comunicação | 13 Junho 2024

A tragédia que o Rio Grande do Sul viveu e continua vivendo, agora no período de reconstrução, tornou-se uma marca indelével não somente na história do território, mas de como vivemos nas duas últimas décadas uma virada política que nos levou ao caos. Portanto, ao contrário do discurso oficial de que se trata de uma catástrofe natural, a tragédia foi contratada por sucessivas gestões neoliberais e de desmonte dos aparelhos públicos. Porto Alegre, que no começo do século XXI foi vista como um símbolo altermundialista por conta do Orçamento Participativo - OP e do Fórum Social Mundial - FSM, no fim das contas não era o começo de uma era, mas precisamente o fim de um momento luminoso da história do RS.

“De certo modo, o OP e o FSM são resultados de um processo de articulação social, em associações de bairro, em sindicatos, nas antigas Comunidades de Base, numa história que vem dos anos 1940 e 1950, sobrevive à ditadura e ganha tração nos anos 1980 e 1990. De certo modo, chegamos ao ponto máximo de desdobramentos dessa história, e esse máximo costuma gerar uma oposição forte – agora, encarnada na extrema-direita racista, sexista, xenófoba, ecocida”, descreve Luís Augusto Fischer em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

É evidente, por outro lado, que o mundo mudou radicalmente nas últimas duas décadas e meia, incluindo uma radical midiatização da vida – com plataformização de serviços e inserção radical das redes sociais –, incluindo aí uma pandemia que serviu de acelerador desses processos. Mas todas essas transformações cobram sua conta.

“Ao lado da uberização, como irmã gêmea dela, temos a vida on-line, a impressionante dominância das relações mediadas pelo smartphone e o computador, o que foi especialmente agravado pela pandemia, uma dura experiência civilizatória que não tem paralelo. É com esse horizonte que precisamos lidar – porque nem uma nem outra vão desaparecer do cenário real, e as duas são claramente individualistas, em sentidos e alcances inéditos”, avalia Fischer.

Como sócios majoritários da tragédia que vivemos, a despeito do importante trabalho de cobertura realizado durante a enchente, está a imprensa, como fiel depositária simbólica do colapso social e ambiental em que nos metemos. “Agora, durante as enchentes, a Zero [Hora] ficou ‘surpresa’ (isso dito pelos que fazem o jornal, por escrito mesmo) com a existência do IPH, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas, da UFRGS, uma instituição acadêmica de mais de 60 anos!!! Essa surpresa é diretamente proporcional ao pouco-caso e mesmo à recusa da RBS em fazer um jornalismo de verdade, que ouça a ciência rotineiramente e enfrente os temas que a atualidade precisa enfrentar, como a emergência climática”, critica o entrevistado. Negacionista, "a elite midiática do RS, nominalmente a RBS, não senta na mesma mesa da elite científica, e suspeito que quisesse ser convidada para a mesa do grande capital, mas este sabe que não precisa dela, de tão irrelevante que está se tornando", conclui.

No dia 18 de junho próximo, às 10h, Luís Augusto Fischer participará da videoconferência O ethos gaúcho e o desafio de reconstruir o RS diante do novo regime climático, junto com Vítor Ortiz, historiador, gestor e produtor cultural, e Tânia Farias, atriz e diretora teatral. Acompanhe a transmissão ao vivo no site do IHU e em nossos canais. 

Luís Augusto Fischer (Foto: João Vitor Santos | IHU)

Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona. Foi professor visitante na Universidade de Princeton, EUA, ligado ao Brazil LAB e é editor da revista Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo. Em 2021, lançou o livro Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago, 2021), resultante de sua tese de professor titular e do estágio pós-doutoral realizado na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris VI.

Além disso, é autor de várias obras, entre elas, A ideologia modernista (Todavia), Dicionário de porto-alegrês (L&PM Editores), Literatura gaúcha: história, formação e atualidade (Leitura XXI) e Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta (Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (L&PM Editores) de Simões Lopes Neto e de Antônio Chimango (Editora Belas Letras) de Amaro Juvenal.

Confira a entrevista.

IHU – Porto Alegre, na virada do século, foi vista globalmente como uma espécie de farol altermundialista (Fórum Social Mundial), fundado na cooperação global, em contraposição à globalização neoliberal. Duas décadas e meia depois, a mesma cidade se converte em signo da destruição resultante do novo regime climático global. O que explica toda essa transformação?

Luís Augusto Fischer – Certamente são vários fatores. Há uma tendência meio geral à direita, por toda parte, com expoentes estridentes como Trump nos EUA e aqui Bolsonaro. Mas, tentando ir mais além da fumaça imediata, ao fundo, é preciso ver a imensa virada “uber” do mercado de trabalho, que ocorreu neste período. A uberização, como se sabe mas não é tão óbvio perceber, traz junto um sentido forte de individualismo que se opõe à solidariedade social, que era o centro nervoso das práticas altermundialistas. As escolhas de governantes, locais e nacionais, caminharam também nessa direção, com uma tendência forte de operar a diminuição dos aparelhos administrativos e também das práticas coletivas, quer dizer, o dito estado mínimo – o Orçamento Participativo (OP) foi desprestigiado em Porto Alegre, virando um tradicional balcão de barganhas, e no estado não chegou a ganhar tração, por desinteresse explícito de vários dos governantes.

(Era estado mínimo o que queriam, mas agora na catástrofe exigem que os governos sejam o máximo.)

A solidariedade esclarecida requer uma constante pedagogia, uma constante presença do debate público etc., coisa que não tem acontecido no estado, muito pelo contrário: o que temos é no máximo campanhas pontuais de solidariedade em momentos de tragédia, como agora, mas tudo tratado como varejo. E ao lado da uberização, como irmã gêmea dela, temos a vida on-line, a impressionante dominância das relações mediadas pelo smartphone e o computador, o que foi especialmente agravado pela pandemia, uma dura experiência civilizatória que não tem paralelo. É com esse horizonte que precisamos lidar – porque nem uma nem outra vão desaparecer do cenário real, e as duas são claramente individualistas, em sentidos e alcances inéditos.

Em outro sentido, é preciso reconhecer que deu muito certo o caminho anterior, porque chegamos a ter um OP exemplar em nível mundial, apoiado explicitamente pela UNESCO como uma prática recomendável, e a invenção do Fórum Social Mundial, que colocou a cidade e sua democracia como um caso mundial. Esses resultados são de encher de orgulho, claro, mas eles são o ponto final de um processo de conscientização e produção social de solidariedade que encontrou seu limite, tipo “fadiga dos metais”. De certo modo, o OP e o FSM são resultados de um processo de articulação social, em associações de bairro, em sindicatos, nas antigas Comunidades de Base, numa história que vem dos anos 1940 e 1950, sobrevive à ditadura e ganha tração nos anos 1980 e 1990. De certo modo, chegamos ao ponto máximo de desdobramentos dessa história, e esse máximo costuma gerar uma oposição forte – agora, encarnada na extrema-direita racista, sexista, xenófoba, ecocida.

Acompanhe a transmissão ao vivo da live com o professor Fischer. 

IHU – A tragédia que os gaúchos testemunham vai muito além da capital, passando por cidades da Região Metropolitana e dos vales do Caí, Paranhana, Sinos e região Sul do Estado. Do ponto de vista social, como esse evento extremo reconfigura a imagem do próprio Rio Grande do Sul?

Luís Augusto Fischer – Uma coisa que deveria entrar na conta da autoimagem que costuma circular sobre os habitantes dessa parte do mundo é o local específico das enchentes. O centro do horror ocorreu nas bacias do Taquari, Jacuí e outros, que desaguam no Guaíba, com um repique lá no sul da Lagoa dos Patos. Essa região nada tem a ver, originalmente, com a imagem construída como identidade geral, o gaúcho a cavalo no pampa. A região atingida nem pertence ao bioma Pampa, mas à Mata Atlântica, à serra e seus entornos, aqui no nordeste do estado, mais o litoral sul. Não sei quanto desse mundo vai furar a carapaça do gauchismo, especialmente aquele comandado pela lógica dos CTGs [Centros de Tradições Gaúchas]. Mas é isso: a parte atingida nada tem a ver com o Pampa e a estância de criação de gado. É basicamente o mundo originalmente indígena ( e guarani) e foi ocupado pelos colonos germânicos e italianos há uns 200 anos, mais a ponta sul, na região de Pelotas, terra das maiores charqueadas, portanto terra de uma imensa população que descende dos escravizados já urbanos, não aqueles que lidavam com o gado vivo, na estância. Esses dois mundos sociais atingidos, o colonial e o charqueador (mais Porto Alegre), não fazem parte da imagem que se fixou para o gaúcho, simplesmente não têm lugar nessa imagem. O problema é que símbolos identitários, quando têm força e apelo, como é o caso do gaúcho, extrapolam sua origem para virar uma espécie de verdade geral, o que se chama, desde Marx, ideologia – uma visão específica de uma classe e um grupo transformada em identidade de todo o corpo social. Muito difícil alterar isso.

IHU – Neste sentido, como poderíamos compreender o “ethos gaúcho”, que é construído simbolicamente nas relações sociais, mas também muito mediado pela arte, especialmente pela literatura?

Luís Augusto Fischer – Pois é, assunto mais uma vez complexo. Essa construção identitária tem uma longa trajetória, de mais de 150 anos, com ênfase maior há uns 70 anos, depois da Segunda Guerra Mundial, com a criação e expansão dos CTGs e de sua lógica, que engoliu outras representações, algumas das quais mal e mal começavam a se desenhar, como é o caso do mundo colonial (açoriano, depois germânico e italiano) e o mundo litorâneo (seja o de matriz negra, que se expressa por exemplo no maçambique de Osório ou no samba pelotense, seja o de matriz lusa urbana, com epicentro em Rio Grande e Pelotas), para nem falar do apagamento da matriz indígena propriamente dita. O boom dessa construção imagética do gaúcho ocorreu nos anos 1970 em diante, e teve força simbólica suficiente para definir os rumos mentais da migração de gente nascida no RS, especialmente (e meio paradoxalmente) no minifúndio colonial, que foi espalhando soja pelo oeste do Brasil e gado por tudo, até chegar ao extremo norte. Nesses lugares o CTG foi clube social e se transformou num motor ideológico fortíssimo, provendo identidade “gaúcha” para os descendentes desse pessoal, hoje lideranças do agro, em grande medida gente ultraconservadora e ecocida.

IHU – Um dos efeitos mais nefastos da tragédia vivida no RS ficou bem longe da água ou das áreas alagadas: a massiva circulação de mentiras e desinformação. Como compreender esse tipo de postura de uma população que costuma se ver como “politizada”?

Luís Augusto Fischer – A combinação entre aquelas duas variáveis que mencionei na primeira resposta (uberização e digitalização da vida) se combinam com a descomunal força de grupos clara ou veladamente antidemocráticos, como aqueles que orbitam em torno de Bolsonaro e seus aliados locais, uma gente que, para combater posições democráticas e social-democratas ou socialistas, aceita aliança com o diabo, se preciso for. Eles sabem que as mentiras que veiculam são mentiras, as ditas fake news, e impedem ativamente, por exemplo, a aprovação de legislação de controle público democrático das redes sociais. Essa combinação resulta na tia do zap, aquela pessoa que já é isolada socialmente, que perdeu as referências sociais coletivas e solidárias que eventualmente tinha (a família, a vizinhança, a igreja, o sindicato, a imprensa profissional, etc.) e ganhou o zap na mão, que a torna refém de qualquer aproveitador desses, incluindo muitos líderes políticos e religiosos.

Mas há o outro lado: não podemos esquecer que Bolsonaro foi derrotado no estado, na última eleição, fruto dos votos de grandes centros e do que restou de organização social. O que entrou em crise agora, portanto, não foi um mundo ideal platônico: foi o mundo com hegemonia de um projeto democrático e popular. Essa derrota é específica e, como disse acima, se explica por muitos fatores, até mesmo um fator geracional. É preciso não jogar a toalha achando que não tem mais jeito!

IHU – O sistema de proteção de enchentes de Porto Alegre foi projetado para suportar uma cheia de até 6 metros. Contudo, parte da cidade foi alagada e o sistema de defesa colapsou com menos 5,35m, índice mais alto da cheia. Como o sucateamento de aparelhos públicos como DMAE e a flexibilização da legislação ambiental estadual estão no cerne dos efeitos sociais e urbanos da enchente?

Luís Augusto Fischer – É isso: há uma série de corrosões no serviço público e nos mecanismos de controle público, processo que vem vindo aos poucos e se agravou nessa onda bolsonarista atual, em que o ministro do Meio Ambiente protagonizava justamente o desmanche desses controles, de alto a baixo, do Oiapoque à Amazônia, para “passar a boiada”. (E mais uma vez devemos lembrar a pandemia, que nos pegou a todos de calça curta, como se dizia antigamente.)

Muita gente de boa vontade, instrumentada por uma visão fragmentada e alimentada pelas mentiras, não via a imagem de conjunto, que, no entanto, ia sendo construída aos poucos. O caso do governador [Eduardo] Leite é exemplar: um sujeito educado, moderno, com coragem até para publicizar sua orientação sexual minoritária, foi capaz de fazer campanha pela megamina de carvão que quase foi liberada, aqui ao lado de Porto Alegre, uma coisa medonhamente atrasada sob qualquer parâmetro razoável, e é capaz de desmanchar controles como o Código Ambiental e o sistema de licenciamento ambiental, construído por muitas gerações, desde o padre [Balduino] Rambo, passando por [José] Lutzenberger e a AGAPAN [Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural] etc.

Em Porto Alegre, um eficiente Departamento de Esgotos Pluviais foi sucateado e transformado em um apêndice do DMAE, o qual, por sinal, tem mais de R$ 400 milhões no mercado financeiro mas sonegou dinheiro para consertar as bombas e as comportas do eficiente sistema de proteção de Porto Alegre. (Se duvida, olha a matéria de capa do Estadão de domingo, dia 9 de junho de 2024.) É isso: tudo à luz do dia! E com voto!!!

IHU – O bioma Pampa é um símbolo geográfico que caracteriza a imagem do gaúcho. Contudo, o assédio do agronegócio em áreas de proteção ambiental tem reconfigurado esta característica ambiental tão simbólica do Sul do Brasil. Como tudo isso reorganiza ou reinventa a imagem do gaúcho? Que imagem é essa? Que gaúcho é esse materializado na figura humana do agro?

Luís Augusto Fischer – Como disse na outra resposta, nada dessas configurações reais (como a cultura do arroz e mais recentemente da soja) arranhou a imagem do gaúcho a cavalo na imensidão do pampa, como elemento identitário. Esses símbolos têm um poder de catalisar os corações e as mentes que a gente não pode menosprezar, nem deve parar de tentar decifrar. Agora o sujeito é megaprodutor de soja no Cerrado irrigado ou de gado na Amazônia destruída, tem sobrenome italiano, polaco ou germânico em todas as suas ascendências, mas se vê nesse símbolo do homem solitário a cavalo num horizonte pampiano e vota em gente sem qualquer compromisso com a preservação do bioma Pampa. É contraditório, mas só se vê esse conjunto de contradições olhando a coisa em perspectiva histórica aguçada. Estamos quase como o menininho aquele que denunciou a nudez do rei, quando todos os puxa-sacos dele elogiavam a roupa inexistente.

IHU – Os dois maiores jornais do RS foram muito pusilânimes ao tratar das questões políticas de fundo que são causa e efeito da maior tragédia climática do estado e, talvez, a maior do país. A rigor, costumam produzir uma falsa simetria nas análises dando voz a negacionistas climáticos e científicos e trazendo poucos cientistas ao debate público, mesmo com universidades de alto nível na região. Qual a responsabilidade da imprensa na construção do caldo de cultura que nos levou à tragédia política que vivemos e que desembocou nesta catástrofe ambiental?

Luís Augusto Fischer – É imensa a responsabilidade, claro, e eu tenho abordado essa questão nos editoriais da revista Parêntese, que eu ajudo a editar. De fundo, tem essa imensa transformação do jornalismo em nosso tempo, por causa do ambiente digital sem regulação decente (nos EUA e na Europa, já há leis que mandam as big techs pagarem por conteúdo que o jornalismo profissional produz, enquanto aqui nada...) e do fim da imprensa tradicional, em papel e nos meios tradicionais como o rádio e a tevê. Não conseguimos ainda encontrar o jeito de lidar com essa novidade e manter aceso o farol do jornalismo de reportagem, crítico, inteligente etc., nesse novo mundo.

Em escala local, o problema se agrava por uma combinação muito nossa. A RBS quase nunca se sentiu responsável pelo jornalismo, de verdade, entre nós. Um exemplo desse descaso foi o modo absolutamente aleatório como a antiga TVCOM foi fechada. Ela não era uma coisa extraordinária, mas atendia a uma vocação de jornalismo local com muita qualidade, fruto mais do trabalho dos jornalistas do que de deliberação da empresa, me parece. Tudo que se sabe é que a TVCOM nunca deu prejuízo; mas mesmo assim a concessão foi devolvida para o governo federal porque era hora de entrar no digital, e a empresa teria que desembolsar algum capital para isso. A RBS preferiu simplesmente terminar com tudo, mesmo sabendo que poderia manter a empresa como viável – prestando um serviço de alta necessidade, como jornalismo e como ambiente para divulgação da produção cultural local.

Na antiga Caldas Júnior, do Correio do Povo e de rádio e tevê, havia, até os anos 1970, uma estrutura diretiva que ecoava o poder das antigas elites gaúchas: os donos do jornal podiam conversar com os donos do dinheiro e todos se tuteariam. Essa convergência de elites fazia do jornalismo da Caldas Júnior antiga um elemento com consciência política, com vocação para o debate público, com seu viés particular mas sempre significativo. A atual Caldas Júnior é igual à RBS, se não pior, porque nenhuma ousa dizer qualquer coisa que contrarie interesses econômicos ou políticos significativos, mesmo que sejam espalhadores de mentiras ou ecocidas.

A RBS é pior ainda, em certo sentido, e a atual reforma da Zero Hora atesta isso. Acabaram com o Segundo Caderno, por exemplo, como se fosse qualquer jornalzinho de fim de linha, num desprezo à cultura exigente impensável numa cidade e numa região como a nossa (somos 4 milhões de pessoas na região metropolitana!). Agora, durante as enchentes, a Zero ficou “surpresa” (isso dito pelos que fazem o jornal, por escrito mesmo) com a existência do IPH, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas, da UFRGS, uma instituição acadêmica de mais de 60 anos!!! Essa surpresa é diretamente proporcional ao pouco-caso e mesmo à recusa da RBS em fazer um jornalismo de verdade, que ouça a ciência rotineiramente e enfrente os temas que a atualidade precisa enfrentar, como a emergência climática. Fazendo o mesmo raciocínio que fiz acima: a elite midiática do RS, nominalmente a RBS, não senta na mesma mesa da elite científica, e suspeito que quisesse ser convidada para a mesa do grande capital, mas este sabe que não precisa dela, de tão irrelevante que está se tornando.

IHU – Tal como ensaiamos por alguns momentos durante os salvamentos aos atingidos pelas cheias, qual a importância de recuperarmos o cooperativismo e o associativismo como saída às encruzilhadas em que nos metemos?

Luís Augusto Fischer – Essa é uma chave importante do momento, recuperar o sentido de trabalho cooperativo, solidário, coletivo. Acho que esse sentimento andou por aí – mas mesmo ele foi açambarcado pela direita como uma propaganda contra o governo federal, com o papo do “é nós por nós”, sugerindo que os governantes federais não estavam fazendo o que deviam. Estamos numa maré muito difícil.

IHU – A tragédia do RS nos transformou em uma espécie de Angelus novus, de Paul Klee, na interpretação dada por Walter Benjamin, na qual um anjo de asas abertas é arrastado de costas pelas ruínas do passado em direção ao futuro. Como podemos, então, pensar o porvir diante desta grande catástrofe que nos lança diante da necessidade da reconstrução, inclusive do que significa ser gaúcho?

Luís Augusto Fischer – Pois é, é isso: do nosso lado, do lado da visão solidária, que gosta da participação popular e busca condições decentes de vida para todos, as forças são poucas agora e costumam dar resultado apenas a longo prazo. Especialmente a educação, que recupere a capacidade de pensar no coletivo, prestigiando evidentemente as virtudes das iniciativas individuais; uma educação que ajuda a entender as megadimensões envolvidas na crise do clima, que não se esgotam numa cidade, numa região, nem em um país, mas envolvem o planeta todo, sabendo que a escala humana tende a ser muito pequena, o tempo de uma vida apenas e a aldeia em que o sujeito vive, tão somente. Pois essa escala macro é que é difícil expor, num contexto em que as mentiras argumentam com casos isolados e descontextualizados, como é o caso dos negacionistas. Mas a razão está do nosso lado, e isso deve ser para nós um consolo e um alento.

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