Lançado recentemente, o livro Duas formações, uma história. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio retoma a literatura brasileira para além dos autores e das estórias da faixa litorânea
Machado de Assis ou Guimarães Rosa? Plantation ou sertão? Roberto Schwarz ou Viveiros de Castro? Quem oferece, afinal de contas, uma melhor imagem do Brasil? A melhor resposta para estas questões, que cercam a produção literária nacional, não está na escolha de um dos “lados”, mas na compreensão que a história da literatura brasileira passa por ambas as dimensões. Há casos, inclusive, que tais fronteiras são completamente ultrapassadas, transpostas, subvertidas. Em um trabalho da vida toda, o professor e pesquisador Luís Augusto Fischer aborda essas e outras questões em sua mais recente obra, que foi, também, tema de sua tese para professor titular.
“O livro nasce da percepção de que o que se costuma pensar sobre literatura brasileira tende a prestigiar o que se produz nas grandes cidades e a desprestigiar o que se produz no ‘sertão’, ou o que a ele se refere. Resulta então que fica parecendo que a literatura dita ‘regionalista’ — termo que eu repudio — é uma espécie de estorvo na história da literatura”, descreve Fischer, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. “Ora, na medida em que esse sertão — quer dizer, todo o Brasil menos a faixa litorânea — é parte essencial do país como tal, é ou deveria ser óbvio que a literatura relativa a ele não pode ser menos do que essencial”, complementa.
Mais recentemente, algo como 30 anos, a literatura da região amazônica, sobretudo aquela produzida por indígenas, passou a fazer parte mais intensamente do cenário e do debate da escrita ficcional e do próprio Brasil. Esses são elementos relativamente novos, mas ricos do pano cultural brasileiro. “Esse é um caso [da literatura amazônica] que não aprofundei mas indiquei, porque se trata de uma novidade, especialmente ligada à emergência de uma geração de escritores identificados como ameríndios, com práticas literárias de valor, muitas delas ligadas ao imaginário da região, fortemente marcada pela presença de populações tradicionais (indígenas vivendo em formas tradicionais ou não, ribeirinhos, etc.), muitas delas ligadas à tradição oral. Este mundo é novo, do ponto de vista da literatura”, frisa Fischer.
Tudo isso se manifesta em um contexto social que está longe de superar (na verdade vem aprofundando nos últimos anos) as profundas desigualdades que dão forma ao Brasil, mas que, paradoxalmente, tem tido menos impacto na produção que outrora. “Impacta mas menos do que já impactou, por incrível que possa parecer. Os meios de produção e de divulgação de literatura (incluindo a canção, segundo eu penso) estão hoje muito mais disponíveis do que jamais antes, por força da digitalização da vida toda”, explica.
Luís Augusto Fischer (Foto: João Vitor Santos | IHU)
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona. Lançou recentemente o livro Duas formações, uma história. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Porto Alegre: Arquipélago, 2021), resultante de sua tese de professor titular e do estágio pós-doutoral realizado na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Além disso, é autor de várias obras, entre elas Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores), Literatura gaúcha – História, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI) e Inteligência com dor – Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores) de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras) de Amaro Juvenal.
Hoje, às 17h30, o professor Luís Augusto Fischer apresenta a conferência Duas formações da história literária do Brasil. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio na programação do IHU ideias. Clique no vídeo abaixo para receber a notificação ou assista diretamente na home page do IHU.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 30-09-2021.
IHU – Antes de entrarmos propriamente no tema do livro, como a literatura – enquanto materialidade de uma certa cultura – nos ajuda a compreender o Brasil?
Luís Augusto Fischer – De inúmeras maneiras, como ela sempre faz em qualquer lugar: concentrando histórias humanas em narrativas, poemas, canções, dramas etc. No caso brasileiro em particular, é preciso lembrar que a literatura muitas vezes, desde o século XVII, dá a ver a vida brasileira antes da ciência social e de qualquer outra forma de texto, pelo simples fato de que Portugal proibiu ensino superior no tempo da colônia e depois o Império brasileiro prolongou essa estupidez ao restringir a pouquíssimos os cursos superiores. Por isso é comum observar que o romance, por exemplo chegou antes da História ou da Sociologia e por isso tem um papel de desvelamento. Em outro sentido, a literatura — compreendendo a canção como parte da literatura — deu voz a incontáveis pessoas marginalizadas no Brasil, o que resultou numa belíssima e variadíssima riqueza na cultura letrada brasileira.
IHU – Como podemos pensar, atualmente, o conceito de “literatura”? Até que ponto a produção musical e audiovisual – com séries e filmes – borram a compreensão que temos sobre o conceito?
Luís Augusto Fischer – Música em si nada tem a ver com literatura, mas a canção tem, certamente. Na canção, a parte letrada é essencial para sua existência. O caso da narrativa audiovisual é outro: ela se estrutura como um discurso, se organiza como um relato mais ou menos como o romance, o conto, a novela, etc. Acho que é preciso pensar essa dimensão como interligada com o domínio da literatura sim. Glauber Rocha pode ser compreendido como um primo distante e alucinado de Graciliano Ramos, e esse parentesco ajuda a iluminar os dois, de parte a parte.
IHU – De que forma nossa história da literatura não é algo em paralelo à história do Brasil, mas, justamente, parte da história brasileira?
Luís Augusto Fischer – Se entendi direito a pergunta, creio que a história da literatura como tal organiza o ensino de literatura na escola, e por esse caminho ela, enquanto tal, condiciona o modo como vemos o país. Daí a ideia que a história da literatura não é paralela no sentido de ser coisa apenas circunstancial, porque ela é essencial para que a história do país transcorra como transcorre.
(Reprodução da capa do novo livro de Luís Augusto Fischer)
IHU – Como o senhor chegou à tese formulada no livro Duas formações, uma história. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio e como se caracterizam as “Duas formações” da literatura brasileira?
Luís Augusto Fischer – O livro de certa forma é o ponto de chegada de toda a minha vida profissional, coisa de mais de 40 anos. Muitas das ideias foram aparecendo, sendo apreciadas e virando teses em momentos distintos desse tempo. Especificamente sobre as “duas formações”, o livro nasce da percepção de que o que se costuma pensar sobre literatura brasileira tende a prestigiar o que se produz nas grandes cidades e a desprestigiar o que se produz no “sertão”, ou o que a ele se refere. Resulta então que fica parecendo que a literatura dita “regionalista” — termo que eu repudio — é uma espécie de estorvo na história da literatura.
Ora, na medida em que esse sertão — quer dizer, todo o Brasil menos a faixa litorânea — é parte essencial do país como tal, é ou deveria ser óbvio que a literatura relativa a ele não pode ser menos do que essencial. Então a tese das “duas formações” que se interligam numa mesma “história” tem a ver com essa percepção ou com essa reivindicação de cidadania para a literatura não-litorânea.
IHU – Por que há duas formações da literatura, mas não há dois Brasis?
Luís Augusto Fischer – A premissa é separar conceitualmente o processo chamado “formação” do produto chamado “país”. Um país como o Brasil tem essas duas formações, a da plantation/litoral e outra no sertão — e talvez tenha mais outra, relativa ao mundo da floresta amazônica. Em certo sentido, se pode modular o conceito de formação para outras dimensões — como eu menciono no livro, um grande pensador uruguaio chamado Angel Rama postulou a ideia de que a literatura nas Américas ficaria mais bem descrita segundo “comarcas”, e não segundo as fronteiras nacionais que existem, as quais têm muito de artificiais.
O Rio Grande do Sul, por exemplo, claramente faz parte de uma comarca— uma formação, uma comunidade, um ambiente histórico — que envolve o Uruguai e parte grande da Argentina. Isso não é xenofobia: é um fato. O RS compartilha a língua com o Rio de Janeiro, com Goiás, com o Piauí, mas compartilha um fundo histórico poderoso — formas de organização econômica e social, estilos de vida, clima etc. — com os países do Prata. Aí temos exemplos que mostram como e quanto precisamos desnaturalizar a igualdade falaciosa entre língua, país, território, sociedade.
IHU – Em que sentido a literatura produzida contemporaneamente no Brasil, certo modo, ultrapassa os modelos formativos da plantation/ideias fora do lugar e do sertão/perspectivismo ameríndio? Como ela foi se tornando, cada vez mais, ocidental?
Luís Augusto Fischer – Isso tem a ver com as forças imensas de mundialização dos mercados, desde os anos 1990, com os computadores pessoais, a internet, as desregulamentações nacionais, a imposição da hegemonia do capital financeiro, que não tem território. As gerações mais jovens já nascem respirando essa condição, já nascem sem as ligações e as fidelidades locais que acometiam as gerações anteriores.
O valor do nacional anda em baixa muito por isso. Na verdade, desde os anos 1960 isso existe fortemente, e mesmo antes. Para ficar nos 1960, basta ver como o rock’n’roll e a calça jeans organizam uma comunidade etária nítida: nascido em 1958, eu me entendo como quem gosta dos Beatles e usa jeans em qualquer parte do planeta. Essa mudança é agora potencializada pela perda de força dos veículos de opinião pública que forjaram as nações modernas, como o jornalismo impresso, depois o rádio e a tevê.
(Imagem: Reprodução da página do Medium Ler antes de morrer)
IHU – O que significa compreender a atual literatura brasileira como mais ocidental? Quais são, neste contexto, os limites e as possibilidades dela explicar o Brasil contemporâneo?
Luís Augusto Fischer – Bem, isso pode realmente mudar a coisa. Te dou um exemplo claro: quando li Os supridores (São Paulo: Todavia, 2020), do José Falero, comentei com ele que o livro tem enorme chance de ser traduzido e logo compreendido Ocidente afora porque corredor de supermercado é igual em toda parte. Então um romance como este, que tem grande valor e boa originalidade local pela linguagem, é claramente um romance ocidental.
IHU – A Amazônia é tema que o senhor comenta no livro, embora não seja central em suas teses. Como ela se constitui como uma formação literária particular e supranacional? Qual tem sido o papel dos escritores indígenas contemporâneos nesta formação?
Luís Augusto Fischer – Esse é um caso que não aprofundei mas indiquei, porque se trata de uma novidade, especialmente ligada à emergência de uma geração de escritores identificados como ameríndios, com práticas literárias de valor, muitas delas ligadas ao imaginário da região, fortemente marcada pela presença de populações tradicionais (indígenas vivendo em formas tradicionais ou não, ribeirinhos, etc.), muitas delas ligadas à tradição oral. Este mundo é novo, do ponto de vista da literatura. Muitas coisas já se podem adivinhar aqui, o que está indicado num livro sensacional de Lúcia Sá intitulado Literaturas da floresta (Rio de Janeiro: Editora Uerj, 2012).
(Foto: Reprodução da capa do livro de Lúcia Sá)
IHU – Em que pese as transformações da nossa literatura contemporânea, com uma maior diversidade de temas e escritores de diferentes gêneros, raças e regiões, como a desigualdade brasileira impacta nessas produções e em sua circulação?
Luís Augusto Fischer – Impacta mas menos do que já impactou, por incrível que possa parecer. Os meios de produção e de divulgação de literatura (incluindo a canção, segundo eu penso) estão hoje muito mais disponíveis do que jamais antes, por força da digitalização da vida toda. O cara carrega agora um romance em formação em seu celular, assim como pode ler infinitos livros no mesmo celular. Essa novidade mal começou a se definir nos últimos dez ou 15 anos, depois dos smartphones e da internet mais rápida e acessível. O que resultará disso é coisa para ficar observando.