03 Junho 2024
"O Pe. Rambo é claro, pois os problemas das inundações do Guaíba não serão eliminados completamente, devido às condições naturais da Depressão Central e do grande afluxo de águas que os rios da região agregam. Contudo, não podemos esquecer que as inundações sazonais depositam grande quantidade de limo e nutrientes, renovando a fertilidade natural e enriquecendo o solo".
O artigo é do padre jesuíta Felipe de Assunção Soriano, coordenador e curador do Memorial Jesuíta Unisinos e do Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos de São Leopoldo.
Eis o artigo.
O cenário limite que os municípios circunvizinhos ao Rio dos Sinos, Rio Taquari, Rio Gravataí e Rio Guaíba vem sendo assunto de muitos especialistas. A urgência climática que afeta o Rio Grande do Sul obriga-nos a revisitar alguns dados do passado que podem iluminar a nossa nova fronteira climática. O livro A fisionomia do Rio Grande do Sul: ensaio de monografia natural, do padre jesuíta Balduino Rambo (1942), publicada logo após a grande enchente de 1941, traz importantes considerações para compreender a geografia da região e o comportamento das águas de nossa bacia hidrográfica. Na Quarta Parte de seu estudo, o Pe. Balduino Rambo incluiu um apêndice sobre a Depressão Central na formação geológica do Guaíba.
Segundo os dados oficiais de abril a maio de 2024 divulgados pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul e publicados em 27-05-2024, estamos diante da maior catástrofe climática já sofrida em nível estadual. De acordo com os dados da Defesa Civil, de 27-05-2024, às 9h, 469 municípios foram afetados. Esse marco corresponde a 94% dos municípios gaúchos. Segundo o Decreto de ECP n° 57.626/2024, são 78 municípios em estado de calamidade; 340 em estado de emergência e 51 municípios atingidos pelas fortes chuvas. Em comparação com as chuvas que afetaram o estado em setembro de 2023 (S2ID-MIDR), as consequências climáticas foram ainda maiores, comprometendo cinco vezes mais os municípios de abril-maio de 2024.
Observando os dados da Defesa Civil RS divulgados em 27 de maio, os marcos da tragédia são alarmantes: 55.813 pessoas encontram-se desabrigadas; 581.638 desalojadas; 2.345.400 afetadas e 806 feridas. Segundo o mesmo órgão, foi atingida a triste marca de 169 óbitos e o número de 56 desaparecidos. Merece destaque a ação eficiente dos agentes de resgate da força de segurança do Estado, que ainda não terminaram suas operações. Segundo o DC e SSP RS, também de 27 de maio, foram resgatadas 77.712 pessoas e 12.521 animais. Foram mobilizados 28.128 agentes e recepcionadas 1.360 chamadas de resgate. Conforme informações divulgadas em 24-05-2024, foram mobilizados 688 policiais, bombeiros e agentes de outros estados.
Ainda de acordo com dados da Defesa Civil, as chuvas persistem em volumes extraordinários, alcançando a média de 420 mm acumulados entre 24 de abril e 04 de maio de 2024, com equivalência a três meses de chuvas no Rio Grande do Sul. Os níveis dos rios alcançaram marcos nunca vistos, segundo o UOL (03-05-2024). O rio Taquari passou dos 30 metros e superou a marca histórica. Em Porto Alegre, o nível do Guaíba superou o marco dos cinco metros, relevando as debilidades do sistema de proteção da cidade. Além do alto risco de pressão sobre as 17 barragens estaduais, segundo a ANEEL e SEMA-RS (26-05-2024), o sistema de contenção de cheias em Porto Alegre segue em risco de rompimento das comportas e de extravasamento dos diques da Região Metropolitana (CEIC-POA e Prefeituras, 04-05-2024).
Revisitando o arquivo documental do Memorial Jesuíta Unisinos, acervo Pe. Balduino Rambo, encontramos dois documentos que chamam a atenção. Primeiro, seu ensaio monográfico em ciências naturais intitulado A fisionomia do Rio Grande do Sul (1942). Neste material, chamou-nos atenção um apêndice que trata do tema da Depressão Central, a grave situação das enchentes e os dados geográficos da região. O material é o resultado mais imediato de sua experiência e reflexão pós-enchentes que atingiram Porto Alegre em 1941.
A atenção à temática das enchentes e banhados perpassou toda a reflexão pessoal do Pe. Balduino Rambo, alimentando a investigação de outros autores diante da urgente necessidade de oferecer um estudo adequado e amplo sobre os banhados da bacia do Guaíba. Fazendo uso de alguns apontamentos do Pe. Balduino Rambo, um grupo de pesquisadores abordou, de forma multidisciplinar, o tema dos banhados do Rio dos Sinos, respondendo por que eles devem ser preservados. Essas reflexões foram publicadas pela União Protetora do Ambiente Natural – UPAN, com foco para os banhados do município de São Leopoldo e a necessidade de sua preservação (1995).
Fisionomia do Rio Grande do Sul (1942) afirma a urgente necessidade de um estudo sobre as inundações na bacia do Guaíba. Segundo suas considerações, devido à Depressão Central, emoldurado pelas Serras ao sul e ao norte do estado, produz-se um vasto corredor baixo e plano, aberto nas extremidades oeste e leste, percorrido pelo rio Jacuí (RAMBO, 1942, p. 150). Nesta análise ele inclui, a oeste, as paisagens o Rio do Rastro (campos ao sul de Santa Maria), do Vacacaí (depressão central que mais se assemelha à Campanha), da reentrância do Jacuí (saindo da boca da Serra Geral), do Rio Pardo, do arenito de Venâncio Aires, os massivos tabuleiros de arenito que se estendem até o leito do Taquari, a paisagem hulheira ao sul de S. Jerônimo e a paisagem marginal do Jacuí (RAMBO, 1942, p. 151-154).
A fisionomia a leste da Depressão Central é determinada pelos tabuleiros de arenito, que formam o divisor de águas do Rio Gravataí, do Rio dos Sinos e do Caí, entre o Caí e o Taquari. O aspecto geral dessa região é uma cadeia de morros de pouca altura, cuja capa vegetal original já desapareceu. É uma área de transição entre o campo úmido da planície e a vegetação xerófila do arenito. Em ambos os cenários, toda a fisionomia da paisagem é determinada pela vazão das águas, alcançando sua máxima expressão nas enchentes, onde os agentes geológicos são vistos rebaixando as áreas de escoamento do Guaíba.
Na análise do fenômeno, três dimensões são consideradas: as causas, os aspectos e o problema da repressão das enchentes. Quanto ao escoamento natural das águas, há dois fatores decisivos como pontos de partida: a configuração da bacia superior e a estrutura da barra da Serra Geral. A rigor, os três elementos principais da catástrofe de 1941 são: 1) A configuração da borda do planalto. 2) O forte declínio em direção do sudoeste. 3) A natureza das rochas. Neste contexto, a incidência de chuvas tem explicação lógica, pois as correntes de ar, saturadas de vapor de água, são forçadas a subir na muralha da Serra, baixando a temperatura e provocando grande índice de precipitação. Esses fatores fazem da zona do Guaíba a área de maior incidência pluviométrica do Rio Grande do Sul (RAMBO, 1942, p. 164).
O grande potencial para enxurradas e enchentes se deve ao declínio natural que às águas do planalto tem pelo rio Jacuí. A rigor, o que se constata aqui no Sul é aquilo que vemos em miniatura em todo o planalto sul brasileiro. Outro fato é a formação dos leitos fluviais do Guaíba, que, compostos por rochas, favorecem sua grande sua vasão. Se as grandes massas pudessem seguir diretamente ao mar, não haveria enchentes. Contudo, com declínio mais fraco, as enxurradas líquidas acabam caindo no terreno nivelado da Depressão Central, perdendo sua força de vazão e criando os alagamentos do Guaíba (RAMBO, 1942, p. 166).
As grandes enchentes nos permitem analisar as mudanças ocorridas em 1941 e 2024. Isto porque o cenário das águas oferece um quadro grandioso, mas, ao mesmo tempo, desolador.
Quanto aos rios, o efeito da enchente depende do grau de nivelamento alcançado pelas margens. Neste caso, segundo o Pe. Rambo, o rio Gravataí é o rio mais baixo, produzindo uma zona de inundação que se estende por todo o seu percurso. No rio dos Sinos, as enchentes já começam em Taquara e São Leopoldo, produzindo o arroio que serve de divisão com Novo Hamburgo e entrando em algumas partes da cidade. Todavia, como um dos maiores tributários do Guaíba temos o rio Jacuí, que começa a extravasar em grande escala desde Cachoeira do Sul, afetando diretamente Porto Alegre.
Dessas considerações, Pe. Rambo apresenta duas tendências para o enfrentamento às enchentes: uma que enfoca a origem, a saber, a Serra Geral, e outra que enfoca a Barra. Há uma outra ainda, que enfoca o próprio lugar onde os fenômenos se manifestam e, por fim, uma tendência de ordem social e administrativa. No primeiro enfoque, propõe-se a construção de represas nas gargantas da Serra. Além de oferecer valiosa fonte de energia, garantiria o controle das enchentes. Outra hipótese é o reflorestamento da zona desmatada nos cursos dos rios, mesmo envolvendo dificuldades com as zonas agricultadas. O Pe. Rambo alerta que é lamentável o desaparecimento da capa florestal, pois sua falta acelera o escoamento das enxurradas e aumenta a quantidade de detritos. Todavia, ele alerta que o reflorestamento sozinho não será capaz de influir suficientemente sobre as enchentes (RAMBO, 1942, p. 171).
Para o enfrentamento das enchentes pelo eixo Barra, propõe-se o restabelecimento do curso presumível do antigo rio Jacuí pelo vale do Gravataí. Nesta proposta, visa-se uma saída ao mar, mas sem alterar o regime geral das cheias. Outro foco inclui o alargamento da porta de Itapoan, com a abertura de um canal pelo saco de Palmares, sendo a proposta mais economicamente viável. No enfrentamento das enchentes no próprio lugar das inundações, fala-se da dragagem intensa do Guaíba e do delta das ilhas fluviais. Mesmo sendo uma alternativa muito custosa, não fica garantida sua eficácia na contenção das enchentes. Por isso, a alternativa colocada em prática foi a construção de diques defensivos: Muro da Mauá, Dique do Sarandi e Dique da Freeway, construídos em 1971 e 1974.
No eixo social e administrativo, temos três focos de medidas, a saber, um de ordem urbanística, impedindo o crescimento da cidade por terrenos inundáveis; outro de ordem científica, organizando um serviço permanente de previsão das enchentes; e um outro de ordem administrativa, socorrendo eficazmente a população atingida. Nessas considerações, o Pe. Rambo é claro, pois os problemas das inundações do Guaíba não serão eliminados completamente, devido às condições naturais da Depressão Central e o grande afluxo de águas que os rios da região agregam. Contudo, não podemos esquecer que as inundações sazonais depositam grande quantidade de limo e nutrientes, renovando a fertilidade natural e enriquecendo o solo (RAMBO, 1942, p. 172).
Por fim, o autor levanta outra questão, que inclui a acessibilidade e a ocupação do território pela colonização, isto é, a expansão agrícola e industrial. Como a via comercial entre Portugal e Espanha dependia do fluxo das águas, nosso divisor se dava entre Vacací e o Ibicuí, i.e., tendo no rio Pardo nosso antigo porto de fronteira. Portanto, a conquista do noroeste e a consolidação do domínio brasileiro na Campanha se operaram através da grande porta natural no sentido oeste da Depressão. Outro aspecto é a importância histórica dadas aos rios como linha de penetração. Desde 1824, com o advento da colonização alemã e com o advento da colonização italiana (1874), as vias pluviais sempre foram usadas como principal acesso ao território.
Os rios foram os principais agentes que geraram a grande maioria de nossas cidades. Da mesma forma que Porto Alegre é inseparável do rio Guaíba, assim é São Leopoldo do Rio dos Sinos e a cidade de Gravataí do seu rio. Este enlace “de paz e de guerra” determina a fisionomia e a dinâmica que alteram a paisagem sul-rio-grandense. Portanto, o esforço do Pe. Balduino Rambo em tentar compreender a gravidade do fenômeno que ele presenciou em 1941 oportuniza-nos uma leitura generosa da complexidade das estratégias para o enfrentamento do tema das chuvas e das enchentes na região do Guaíba.
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A urgente necessidade de um estudo sobre a bacia do Guaíba: “Fisionomia do Rio Grande do Sul” – Pe. Balduino Rambo, SJ. Artigo de Felipe de Assunção Soriano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU