23 Novembro 2023
"É estarrecedor que a grande imprensa se recuse a falar das causas ambientais desses desastres, e criminoso que as autoridades públicas não o façam" escreve José Truda Palazzo Jr., Oficial Sênior de Conservação do Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza, escritor e ativista ambiental, em artigo publicado por ((o))Eco, 21-11-2023.
É realmente uma pena que hoje em dia as pessoas não se deem ao trabalho de ler um pouco de História, nem das áreas em que atuam. Tente achar um ativista ambiental brasileiro com menos de 50 anos que saiba quem foi José Lutzenberger, um dos maiores vultos do ambientalismo nacional (sim, bem mais importante que Chico Mendes, de quem foi mentor) nos anos 1970 a 90. Nossos opiniáticos “ativistas” de boteco se guiam por pseudogurus contemporâneos que parecem mais preocupados em transmitir aos jovens os seus cacoetes ideológicos do que defender a Natureza. Mas voltemos ao tema.
Lutz, como era conhecido de todos nós no movimento ambientalista brasileiro daqueles tempos, e seu fiel escudeiro Augusto Carneiro passaram literalmente décadas alertando para as tragédias que estavam sendo construídas principalmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no que diz respeito às chuvas. E apesar das mudanças climáticas já estarem no radar, não era apenas sobre elas que Lutz alertava, e sim sobre as consequências da destruição mais direta dos ambientes naturais nas diversas bacias hidrográficas do sul do Brasil.
A drenagem e aterramento dos banhados, promovida ativamente pelos governos e produtores rurais, acabou com a maior parte desses ambientes nas planícies inundáveis. Os banhados são verdadeiras esponjas, retendo as águas pluviais em excesso nos períodos chuvosos e as liberando lentamente no tempo seco, ajudando fortemente a regular o fluxo das águas. Sem eles, todo o volume das chuvas vai direto para os arroios e rios em grande velocidade, causando as enchentes.
O crime duplo do desmatamento das matas ciliares nas margens dos cursos d’água e a ocupação dessas áreas com plantações ou casas, muitas vezes dentro mesmo das conhecidas e mapeadas calhas de inundação dos rios, traz também duas consequências. Uma, visível, a inundação e destruição de plantações, casas e infraestrutura urbana, ilegal e idiotamente implantadas nesses locais que deveriam ser áreas de preservação permanente; outra, menos visível mas tão danosa quanto, o assoreamento das calhas dos rios com o solo carreado das margens desmatadas, tornando-os muito mais rasos do que eram e amplificando imensamente o transbordamento da água.
Como parênteses, vale lembrar que as áreas verdes urbanas também cumprem importante papel de regulação pluvial tanto pela infiltração das chuvas no solo permeável como na redução da velocidade destas através das copas das árvores, onde estas ainda são abundantes e adensadas. A irresponsabilidade das prefeituras em fazer e permitir que se impermeabilize o máximo de solo e se reduzam as áreas verdes é causa direta das enchentes no meio urbano, e os danos dessa insensatez deveriam ser cobrados na pessoa física dos prefeitos que promovem isso.
Claro, as mudanças climáticas aceleradas pela estupidez humana nas últimas cinco décadas só vieram a piorar a situação. Mas não podemos achar que é um “problema global difícil de resolver” o que está causando as catástrofes continuadas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, quando na verdade as causas principais estão ali mesmo nos municípios afetados e suas adjacências. Mas ninguém quer fazer nada a respeito.
É estarrecedor que a grande imprensa se recuse a falar das causas ambientais desses desastres, e criminoso que as autoridades públicas não o façam. Mas governadores e principalmente prefeitos não querem ter o ônus de admitir que são problemas de ocupação do território que deveriam ser gerenciados – e principalmente resolvidos – por eles, com planejamento E fiscalização.
Políticos rastaqueras e safados se beneficiam dos desastres ambientais que afetam principalmente os pobres. Primeiro, se omitem criminosamente de impedir o desmatamento e a ocupação das margens e calhas de inundação dos arroios e rios, para não melindrar os eleitores; depois, quando as tragédias se abatem sempre sobre os mais pobres, correm para dar esmolas paliativas com dinheiro público, aparecendo nas fotos para a próxima campanha como “benfeitores dos flagelados”. É de revoltar o estômago de qualquer um que entenda o que se passa de fato.
Cada vez mais as enchentes provocadas pelos extremos climáticos e a ocupação irresponsável dos ambientes inundáveis assolarão não apenas o Sul, mas todo o Brasil. Se não reconhecermos o problema e tratarmos de ter a coragem de desocupar – sim, desocupar imediatamente – as áreas de banhados e margens roubadas aos cursos d’água, realocar as populações mais vulneráveis e restaurar os ambientes naturais nessas áreas, para que prestem novamente os serviços ecossistêmicos de mitigação das enchentes. E não me venham dizer que custa caro demais. Fazer isso em todo o país sairia mais barato que os bilhões em “emendas parlamentares” e “orçamento secreto” que o Centrão tunga dos brasileiros com a cumplicidade plena do atual e dos passados governos.
Cinco décadas de avisos e ninguém presta atenção. Não tenho qualquer pretensão de que algum gestor público que leia este texto mude seu rumo fomentador de desastres. Mas reviver os alertas de Lutz e Carneiro é preciso, pelo menos para que, em pleno século XXI, não venham os sem-memória dizer que ninguém avisou.
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Catástrofe das chuvas no Sul: “só” 50 anos de alertas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU