19 Fevereiro 2022
"Os desafios para a sobrevivência e aceitação dos gambás em nosso meio se estendem a outros animais silvestres que “ousam” tentar sobreviver em nossas cidades", José Truda Palazzo, Jr., Oficial Sênior de Conservação do Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza, escritor e ativista ambiental, em artigo publicado por EcoDebate, 11-02-2022.
Gambá – Por trás do preconceito e perseguição humanos há um animal inofensivo e útil nas cidades das Américas.
É madrugada em alguma cidade do Brasil, e enquanto a maioria das pessoas dormem, um pequeno animal desce de um abrigo sob as telhas de uma casa e se esgueira entre os espaços verdes, beiras de calçadas e sacos de lixo, buscando seu sustento entre frutas nas raras árvores das ruas, invertebrados como baratas e outros alimentos nos os restos que a humanidade diurna deixa por aí.
Foto: Marcos Vieira | Arquivo pessoal
Mas não é apenas para si própria que a mamãe gambá – erroneamente confundida com um rato, mas na verdade um marsupial como os cangurus e coalas australianos – busca sustento. Em sua bolsa mamam avidamente doze filhotes, que como ela buscam a oportunidade de sobreviver junto às moradas humanas, talvez o lugar mais arriscado para espécies de fauna no continente americano, por conta da ignorância brutal da maioria das pessoas sobre a Natureza, e do preconceito que atinge esse grupo de animais em particular.
Infelizmente, as mãezinhas com filhotes são o alvo principal dessa ignorância transformada em brutalidade, e, vulneráveis com o peso dos filhotinhos, frequentemente são agredidas em suas buscas por comida, mortas a pauladas ou mesmo queimadas vivas por gente que parece se deliciar com essa crueldade.
Foto: Moacyr Rogerio Sens | Instituto Rã-bugio
Pertencendo ao gênero Didelphis, que abrange seis espécies bastante parecidas, e ocorrendo da Argentina ao sul do Canadá, os gambás ou sariguês (zarigüeyas, comadrejas ou tlacuaches em Espanhol, ou opossums em Inglês) são um dos mamíferos mais adaptáveis do Novo Mundo. Frente à destruição e ocupação continuada de seus habitats pelo invasor humano, esses versáteis animais, que se alimentam de frutas, pequenos vertebrados e invertebrados, se reproduzem abundantemente e vivem pouco (entre um e dois anos na Natureza, pouco mais em cativeiro) aprenderam a dividir as regiões ocupadas e degradadas com seus posseiros bípedes. Seus hábitos noturnos e comportamento discreto facilitaram isso, e em algumas regiões urbanizadas das Américas hoje há grande densidade deles, vivendo ocultos em frestas de telhados, cantos de porões ou ocos de árvores das praças e parques.
Mas essa convivência próxima trouxe, infelizmente, uma maldição para os gambás: as consequências terríveis que o medo do desconhecido e a rapidez com que o preconceito e a ignorância se espalham entre os Homo sapiens. Sendo notívagos (um hábito que a superstição associa há séculos a seres ruins e furtivos) e parecidos – apenas parecidos! – com ratos, foi o que chegou para serem condenados como animais sujos, perigosos, transmissores de doenças, e perseguidos incansavelmente com os mais escabrosos requintes de crueldade. Tudo isso por puro desconhecimento, já que os gambás não transmitem doenças aos seres humanos facilmente, certamente não mais que o gato ou cachorro doméstico.
Além disso, eles são extremamente úteis à saúde pública, já que consomem enormes quantidades de carrapatos, transmissores da fatal febre maculosa; de baratas; e de escorpiões e cobras venenosas, causadores de numerosos acidentes graves ou fatais nos trópicos. A presença dos gambás não é apenas inofensiva: ela torna as habitações humanas e as cidades mais seguras para as pessoas, principalmente para as crianças.
Esses maltratos e massacres ocorrem na América Latina apesar da maioria dos países da região terem leis que protegem os gambás juntamente com o resto da fauna silvestre. Contraste lamentável deve ser apontado com várias normas estaduais dos Estados Unidos, onde os gambás são injusta e absurdamente tratados como vermin (peste, animal nocivo), o que impede até que animais órfãos ou machucados sejam resgatados por voluntários. Um anacronismo jurídico obscurantista e terrível em um país tão desenvolvido.
A questão dos resgates de gambás por voluntários é um tema premente, ainda que pouco mencionado na grande imprensa ou mesmo nos círculos ambientalistas, para a gestão da fauna urbana em boa parte das Américas. Não é incomum que após a morte de mamães gambás, seja por agressão humana intencional, atropelamento ou ataque de cães (outro problema sério e comum), se descubram numerosos filhotes em sua bolsa, que a abandonam desnorteados quando seu corpinho esfria. Os órfãos mais sortudos são recolhidos e encaminhados ou a um dos (ainda escassos) centros de resgate de fauna, ou então, o que é bem mais frequente, entregues a voluntários e voluntárias espalhados por todo o continente, que cuidam das exigências muito intensivas e particulares dos bebês gambás para fazê-los sobreviver e, sempre que possível, reintroduzi-los na Natureza.
Os desafios para a sobrevivência e aceitação dos gambás em nosso meio se estendem a outros animais silvestres que “ousam” tentar sobreviver em nossas cidades. Os morcegos, outros mamíferos extremamente úteis como polinizadores, dispersores de sementes florestais e consumidores de insetos, são tão ou mais perseguidos que os gambás, novamente por desconhecimento. É chegada a hora de enfrentar esse problema.
O discurso dos ambientalistas, que mantém invisíveis os animais de nossas cidades, precisa passar a se ocupar também da proteção destes, e não só dos que vivem em florestas intactas e ecossistemas longínquos. As agências ambientais precisam incluir a conservação dessas espécies nos seus programas e normas de atuação.
E, principalmente, as escolas e os educadores precisam ensinar aos mais jovens que a fauna urbana é um patrimônio a celebrar e proteger, e não exterminar a pauladas. Só assim estaremos estendendo a todos a oportunidade de construir uma verdadeira cidadania ambiental: promovendo harmonia, respeito e valorização da Natureza que está em nossas próprias cidades.
Proteger os gambás, nossos “ursinhos de jardim” das Américas, é um degrau civilizatório a se galgar.
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Gambás, nossos vizinhos essenciais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU