Para o sociólogo, a volta, ou reinvenção, do populismo, tanto à direita quanto à esquerda, é sintomática da falta de criatividade para radicais mudanças no Brasil e no mundo
Enquanto alguns celebravam a vitória de Lula nas urnas e a viam como o fim de um tempo de trevas, de retomada dos tempos de luzes, outros seguiam em negação. Se na noite da vitória a Avenida Paulista foi inundada por um mar de gente, em diversas rodovias Brasil eram erguidas barreiras, como diques que impediam os fluxos de novas águas. As duas cenas são icônicas e sintetizam o populismo em suas vertentes à direita e à esquerda. E mais: mostra que ambas as vertentes vivem em dialética. “É impossível ao populismo lulista evitar em definitivo o bolsonarismo, a extrema-direita, no Brasil, apenas retê-lo por um tempo, pois as contradições de qualquer política ou hegemonia progressista deste tipo tendem a levar água para o moinho da retomada do populismo de extrema-direita”, observa o sociólogo Marco Antonio Perruso.
Perruso, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, mergulha nas origens do conceito e dá forma a ele com seu olhar aos processos históricos. Sem perder a ancoragem na conjuntura nacional, acende uma luz ao apontar que a derrota da extrema-direita populista não é fadada com a simples vitória de uma reedição do lulismo. “Não quero dizer com isso que o bolsonarismo necessariamente sobreviva muito tempo fora do aparelho de Estado a partir de 2023, tenho sérias dúvidas a respeito, por ser ele na verdade estatólatra e nacionalista, ainda que se apresente com algum verniz liberal”, ressalva. Porém, avalia que “já o populismo de extrema-direita, como conjunto de repertórios de marketing eleitoral e agitação ideológica, continuará disponível no mercado político profissionalizado”.
No fim das contas, o professor indica que vivemos uma espécie de entressafra de processos revolucionários, ou, como elabora, uma falta de horizonte. “O retorno ou a reinvenção do populismo revela mais profundamente a falta de horizontes mudancistas radicais no Brasil e no mundo. Tais horizontes não serão alterados por meros projetos intelectuais de supostos intérpretes dos mais pobres, ao menos enquanto novos e velhos sujeitos subalternizados não desenvolverem movimentações societárias na direção de transformações estruturais”, detalha.
O que não significa que a velha ideia de revolução, ou transformação, morreu. Talvez, um caminho seja observar mais as movimentações das massas sem determinismo e atentar para algo novo que possa surgir, sem o apressado enquadramento teórico e limitador. “A partir das lutas dos que vivem do trabalho contra as inúmeras modalidades de exploração e opressão, sempre é possível aos intelectuais formularem diagnósticos e projetos condizentes com a superação efetiva da ordem do capital e com a construção de uma sociedade socialista a partir de baixo e que dispensa tutores a partir de acima. Algo ainda a ser experimentado antes de ser mais exatamente definido”, finaliza Perruso.
Marco Antonio Perruso
Foto: Arquivo pessoal
Marco Antonio Perruso é professor de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Possui graduação e licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e mestrado e doutorado em Sociologia pela UFRJ. Também realizou pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. É um dos autores de O pânico como política: o Brasil no imaginário do lulismo em crise (Mauad X, 2020).
IHU – Como conceitua o populismo? E como podemos compreender o populismo enquanto fenômeno?
Marco Antonio Perruso – Pesquiso o populismo como conceito do pensamento social e político brasileiro desde meu mestrado na UFRJ. Após o doutorado no mesmo programa – onde pesquisei a superação temporária do fenômeno populista com o novo sindicalismo, os novos movimentos sociais e a criação da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, e do PT –, acabei voltando ao tema no início da década passada, já sendo professor de sociologia da UFRRJ. Como membro do Observatório Fluminense e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Pensamento e Intelectuais, e instado pelas circunstâncias nacionais da crise inicial do lulismo e da posterior ascensão do bolsonarismo no final da mesma década, retomei o populismo em sua trajetória conceitual, repleta de disputas políticas e intelectuais.
Para uma sumária definição do populismo, é necessário enumerar as diversas interpretações do fenômeno conforme as principais tradições teóricas que trataram da questão.
O liberalismo político lança mão de uma perspectiva elitista para repudiar o populismo (pelo menos no plano discursivo), por este incorporar à cena política as classes populares ou setores pequeno-burgueses, de menor capital econômico e/ou cultural. Tal perspectiva é centrada no carisma, mormente na acepção weberiana – a qual, todavia, envolve um viés crítico: a intensificação da racionalidade ocidental tenderia a nos levar a um beco sem-saída que só a “irracionalidade” ou o emocionalismo de lideranças individuais poderia contrabalançar.
Na tradição marxista, o debate sobre o populismo pode partir do conceito de bonapartismo. No Brasil, Ruy Mauro Marini apontou nesta direção, [1] como registrou Francisco Weffort, que, no entanto, dadas as dessemelhanças nas formações capitalistas europeia e brasileira, [2] optou por usar – e consagrar – a terminologia em torno do populismo. Ele, Octavio Ianni e outros autores produziram uma sociologia política – e uma ciência política de forte base sociológica – consubstanciando o marxismo uspiano, impactado pela emergência de movimentações sindicais e populares nos anos 1950/60, os quais, no dizer do próprio Weffort, ameaçavam extrapolar o pacto populista pré-64. [3]
Como ressaltei em outro momento, [4] é neste ponto que reside o diferencial crítico da abordagem marxista do populismo: este consiste numa política burguesa nacionalista que, ao incorporar politicamente, de maneira subalternizante, as classes trabalhadoras urbanas nascidas com o processo de industrialização, supera o liberalismo oligárquico pré-1930 e inaugura o Brasil contemporâneo.
Mas assim o faz para evitar uma presença autônoma do movimento operário na cena pública, o verdadeiro motor desta nossa história. É desse ponto de partida, da ênfase marxista na agência sociológica das classes populares, que compreendo o populismo como fenômeno, em chave necessariamente crítica. Para uma definição mais precisa, é preciso avançar no tempo e abordar o lulismo como sua atualização histórica no caso brasileiro.
IHU – O que compreendes como lulismo?
Marco Antonio Perruso – Utilizo este conceito criado pelo colega André Singer, que prossegue na teorização uspiana do populismo debruçando-se sobre os anos do PT no governo federal, do qual participou como porta-voz presidencial de Lula – ainda assim mantendo uma perspectiva intelectual crítica, o que é notável.
Assumidamente inspirado em Weffort e sua “visada de classe”, Singer conceitua o lulismo nos mesmos moldes do populismo. [5] Mas para ele, enquanto [Getúlio] Vargas, primeiro ditador e depois presidente, se apoiou nos trabalhadores industriais em ascensão, Lula teria como suporte, só a partir de sua reeleição em 2006, o subproletariado (supostamente incapaz de se auto-organizar) fruto da reestruturação produtiva e da precarização do trabalho, cujos fundamentos neoliberais o lulismo nunca enfrentou de fato – pelo contrário, seu neodesenvolvimentismo os incorporou, registre-se.
Singer mostra que a liderança carismática de Lula pode continuar a ser compreendida em chave marxista e weffortiana, enquanto expressão de uma hegemonia política em época de equilíbrio instável de forças entre as classes, de modo a permitir ao chefe populista, identificado com o Estado, ser capaz de, como que pairando acima delas, conciliá-las e orientar as forças de mercado na perspectiva de um desenvolvimento nacional. [6]
Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras, 2012)
A meu ver, o lulismo inova em relação ao populismo pré-64 por conta de três características:
1) ter se originado do petismo, o qual nasce antipopulista (o Lula líder metalúrgico era crítico da chancela estatal dos sindicatos desde a CLT varguista);
2) pelo fato de se opor na teoria antes que na prática ao latifúndio (hoje, o agronegócio) e ao imperialismo, inimigos políticos eleitos pelo nacional-desenvolvimentismo nos anos 1950/60, em outra conjuntura histórica;
3) e, especialmente, pelo fato de a liderança carismática no lulismo ser proveniente da própria classe trabalhadora – possibilidade que escapou a Weffort quando de sua teorização original. De maneira que se exige uma atualização conceitual do termo.
No atual momento de estudos a respeito, eu definiria o populismo como toda política nacionalista, progressista ou conservadora, que mobilize de modo heterônomo setores sociais de extração popular (exemplificado pelo lulismo) e/ou menor prestígio cultural (no que o bolsonarismo seria ilustrativo). Tal padrão mobilizatório seria necessariamente acionado e galvanizado hierarquicamente por uma liderança estatal – não importa se por meio de um discurso “esquerdista” ou direitista.
De maneira que a participação popular fica necessariamente subordinada à órbita do Estado-nação: seja via democracia representativa (guardadas as nuances, corresponderia ao segundo varguismo, ao lulismo, à Bolívia sob Evo Morales, entre outros), seja via ditaduras (o primeiro varguismo, o desejo irrealizável do bolsonarismo, as situações venezuelana e nicaraguense hoje). No caso da Argentina, o peronismo teria oscilado entre ambos os polos. Além disso, o século XXI tem mostrado que o populismo não é restrito à periferia do capitalismo (situações de “subdesenvolvimento”), mas a momentos de crise econômica, fragilidade de hegemonias políticas e mal-estar nas sociabilidades burguesas, inclusive nos países centrais.
IHU – Segundo André Singer, nos últimos atos dos governos petistas, o ‘lulismo estava nas cordas’. E agora? Reergueu-se? Como analisa os movimentos do lulismo desde os governos de Dilma Rousseff?
Marco Antonio Perruso – O lulismo é exemplar na trajetória de ascensão, queda e eventual recuperação das políticas ou regimes populistas, que exploram a intervenção estatal na economia para impulsionar um suposto desenvolvimento nacional incapaz de ser entregue pelo mercado defendido pelos liberais, mormente em nações pobres. Mas os pactos populistas sempre se dão combinando moderno e atraso, como Trotsky já delineara com sua noção de desenvolvimento desigual e combinado – o que foi traduzido e ampliado, na história do nosso pensamento social e político, principalmente por Francisco de Oliveira e sua interpretação antidualista do Brasil moderno, que este ano faz meio século de publicação [7].
Vargas se apoiava no proletariado urbano (PTB) e nos coronéis do PSD (que tinham sob jugo camponeses e trabalhadores rurais), de forma que o atraso agrário dialeticamente garantia a modernização industrial. Com Lula, sob o boom mundial das commodities, o agronegócio e o extrativismo mineral, extremamente predatórios dos povos tradicionais e do meio ambiente, subsidiaram as políticas públicas dos governos do PT – a inclusão social obtida por estas últimas era anulada pela produção da desigualdade econômica que a financiava. Assim, o Estado-nação impulsionado pelo populismo vai empoderando as forças de mercado, resultando no golpe de 1964 e no impeachment de Dilma em cada uma de nossas duas grandes experiências históricas de conciliação populista de classes, nas quais os trabalhadores inevitavelmente saem derrotados.
O progressismo sempre retroalimenta o conservadorismo – o que é estranho para a maioria das análises presentes no debate público brasileiro, que são dualistas: para os nacionalistas (como Jessé Souza e outros representantes intelectuais do lulismo), o Estado-nação burguês é capaz de promover harmonicamente desenvolvimento nacional – algo impensável para nós marxistas, pois o capitalismo vive de crises e de exploração do trabalho (mesmo em período de crescimento econômico). Nesta chave analítica que adoto, a ascensão do bolsonarismo não advém apenas dos limites e fracassos do lulismo, mas também de seus sucessos. [8]
Já a volta ao lulismo com a derrota de Bolsonaro se deve principalmente à fraqueza programática e socioeconômica da extrema-direita mundial, cuja cartilha é seguida pelo bolsonarismo. Seu populismo autoritário e obscurantista possui vínculos frágeis com as diversas burguesias mundiais e seus representantes neoliberais ilustrados (nos EUA, França, Alemanha, etc.), razão pela qual foi combatido pelo circuito internacional do capital, do qual fazEM parte muitos dos bancos, grandes empresas e mídias do Brasil.
IHU – Podemos compreender que o lulismo é um caminho para a construção de um populismo de esquerda, segundo formula Chantal Mouffe?
Marco Antonio Perruso – Mouffe e Laclau aparentam ter se apropriado intelectualmente das experiências históricas vividas mais destacadamente pelas sociedades latino-americanas, traduzindo-as em chave positiva para a Europa, como uma possibilidade de reativação progressista da política num dos polos do capitalismo mundial. Pelo jeito não foi um projeto político-intelectual bem-sucedido, ao menos até agora, se temos em vista as dificuldades e contradições enfrentadas por Podemos na Espanha, Corbyn na Inglaterra, também [Bernie] Sanders no EUA.
Por um populismo de esquerda (Autonomia Literária, 2020) de Chantal Mouffe
Foto: divulgação
Em sociedades de longa trajetória de auto-organização proletária, como são várias na Europa, entendo que há dificuldades estruturais para o desenvolvimento de políticas populistas, altamente dependentes de um Estado que dispensa o mundo do trabalho como lugar da sociedade civil de extração popular onde se autoconstrói a consciência operária. A respeito, lembro inclusive do recente depoimento de meu colega e ex-professor José Maurício Domingues, na Conversa com Autor, do Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS deste ano na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, em que, com a devida vênia de alguma má leitura minha, ele afirmou na direção de que “não poderia dar certo exportar para a Europa o caudilhismo latino-americano”. Parafraseando Roberto Schwarz, eu diria que as ideias podem estar “fora do lugar” acima da linha do Equador também.
IHU – O Brasil já viveu movimentos como o trabalhismo. Em que medida podemos compreender esse como também um movimento populista?
Marco Antonio Perruso – A historiadora Ângela de Castro Gomes, no compasso do nacionalismo metodológico brasileiro do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP-UERJ (antigo IUPERJ), inovou ao propor o conceito de trabalhismo para criticar e substituir o de populismo na explicação do fenômeno varguista. Foi uma formulação que se deu em momento e local distintos dos da ascensão de um campo de movimentos populares que criou uma esquerda, o PT.
Lula e a nova geração operária, que democratizaram o Brasil a partir de baixo e derrubaram a ditadura militar, como que confirmaram societariamente as predições teóricas uspianas. Mas, Gomes compreende que o trabalhismo propiciou a experiência democrática ao incluir os trabalhadores no jogo político, deixando de lado a questão da autonomia dos “de baixo”, justamente a preocupação fundamental de marxistas (como o Weffort de então) em apontar as limitações da participação democrática monitorada verticalmente pelo Estado.
Ela, assim, procede num contexto diferente: o Rio de Janeiro dos anos 1980, onde ainda resistia o populismo varguista convertido em brizolismo. Os influxos societais que atingiam os intelectuais adeptos do conceitual em torno do trabalhismo eram já outros, diferentes dos recebidos por seus colegas paulistas mais velhos, que passaram a pensar o país por volta dos anos 1960 por meio da terminologia populista.
IHU – O que aproxima e o que distancia varguismo, brizolismo e lulismo?
Marco Antonio Perruso – Afora as diferenças entre varguismo (populismo clássico) e lulismo indicadas anteriormente (na minha resposta à segunda pergunta), creio que a diferença do primeiro para o brizolismo resida mais no fato de este consistir num populismo tardio e já decadente, enquanto o varguismo foi o inaugurador da ascensão e consolidação de políticas modernas deste tipo. O brizolismo não tinha como disputar a longo prazo a mentalidade popular identificada como esquerdista ou progressista no Brasil pós-ditadura, dada a grandeza adquirida pelo campo movimentista petista-cutista dos anos 1980 em diante, alimentado por inúmeras organizações populares de base, que se mostravam mais democratizantes e participativas que as sociabilidades geradas na esteira da relação carismática entre líder populista e massas por ele representadas.
IHU – O que diferencia um populismo de esquerda e de direta ou extrema-direita?
Marco Antonio Perruso – No meu entendimento, que segue o prisma marxista, populismo de esquerda pode ser assim chamado exclusivamente se considerarmos esquerda no sentido mais vago e próximo do seu nexo reformista, como a social-democracia, por exemplo, a qual tem afinidades com o populismo, inclusive. A propriedade fundamental que une todo populismo, independente do sinal ideológico assumido à esquerda ou à direita, é o nacionalismo, isto é, a crença que o Estado é o ente por excelência da gestão da ordem do capital, ao invés do mercado como pioneiramente propuseram os liberais desde o nascimento da modernidade.
Esta aposta no Estado-nação costuma emergir em situações de crise econômica ou de instabilidade política, em épocas modernizantes (segunda metade do século passado) ou desindustrializantes como talvez agora vivamos. É quando lideranças populistas aparecem para envolver novos ou reassentar velhos segmentos sociais nos pactos políticos que a democracia representativa (idealizada) fracassou em efetivar.
As diferenças entre os populismos à “esquerda” e à direita são muitas, mas várias delas podem ser conjugadas na dualidade entre uma ênfase mais ou menos includente e/ou mais ou menos autoritária, por parte do Estado, na ação de cima para baixo em relação ao povo (esteio da nação), visto como necessariamente tutelado ao ser conduzido ao caminho do progresso ou a evitar o caos social.
O primeiro varguismo foi autoritário politicamente e inclusivo socialmente, o segundo foi democrático, assim como o brizolismo e o próprio lulismo. Os primeiros populismos de direita no Brasil (ademarismo, janismo, lacerdismo) podem ter sido inclusivos – cultural e politicamente – para certos setores pequeno-burgueses ou populares ameaçados pelo avanço da proletarização urbana, ainda mais por esta visibilizar-se via trabalhismo varguista. Embora tenham sido autoritários também, como é sabido.
No caso dos posteriores malufismo e bolsonarismo, a ênfase includente volta-se para a segurança pública, a suposta família tradicional, a perda de status social diante do crescente peso de setores operários e populares emergentes com a Nova República e, depois, sob as políticas públicas lulistas. A dimensão autoritária aqui é evidente, notadamente no exemplo bolsonarista, que remete sempre a um discurso em torno da ordem (estatal ou paraestatal), ainda que recorra também a um imaginário neoliberal e empreendedorista não facilmente conjugável com seu falso patriotismo (o nacionalismo, como chamado no vocabulário conservador).
IHU – Que relações podemos estabelecer entre populismo e capitalismo? Seria essa a dobradinha que concebe o populismo liberal?
Marco Antonio Perruso – As relações são profundas, pois o populismo nunca pode ser anticapitalista, no máximo antiliberal, como muitos nacionalistas brasileiros o foram em nossa trajetória, ao menos do ponto de vista doutrinário. O populismo é necessariamente capitalista por ser, ao menos da boca para fora, uma opção de governança estatal do mundo do mercado quando este mostra-se incapaz de autoguiar-se atomizadamente segundo os interesses utilitários dos agentes que o compõem. Contudo o populismo nunca cumpre essa promessa, pois Estado e mercado não vivem um sem o outro na dominação burguesa de classe sobre os trabalhadores.
A confusão intelectual instalada atualmente se deve em grande parte ao paradigma populista, que induz a pensarmos capitalismo como sinônimo de mercado – por metonímia, do liberalismo – quando muitas vezes não o foi na história mundial (vide o bonapartismo, o fascismo, o reformismo social-democrata, o Estado de bem-estar social, o capitalismo de Estado, o autoritarismo estatal em geral, também o stalinismo e a China contemporânea, entre outros). E, dualisticamente, faz muita gente imaginar erroneamente que socialismo é algo tributário do Estado, quando na verdade é referido inegavelmente à agência sociológica da classe trabalhadora em luta.
O socialismo, no seu sentido marxista revolucionário original, identifica o capitalismo, de forma decisiva, pela extração de mais-valia (exploração) e pela alienação do trabalhador, as quais não podem ser suprimidas por um Estado, burguês ou burocrático, mas exclusivamente pela auto-organização proletária e popular nas várias esferas da vida social e econômica.
Populismo liberal como termo faria sentido se levarmos a sério a hipótese de Trump, Bolsonaro e outros extremistas de direita serem de fato liberais, o que não é verdade. Eles lançam mão instrumentalmente da verborragia mais ou menos decadente do neoliberalismo e das últimas modas em torno de um suposto ultraliberalismo, num amálgama ilógico, mas potente para servir às suas propagandas políticas. Porém, de maneira alguma esta barafunda programática ou ideológica tem a ver com gerir os negócios burgueses e as hegemonias políticas correlatas.
Em relação a essas coisas, os populistas de extrema-direita no mundo contemporâneo não têm ideia de como proceder, razão pela qual costumam ser bons de agitação política, mas ruins de voto, vide a falta de longevidade de Bolsonaro e Trump como presidentes.
IHU – Em um ‘populismo progressista’, o capital é neutralizado? O ideal seríamos tipificar como um ‘populismo liberal de esquerda’?
Marco Antonio Perruso – Creio que populismo progressista seja uma categoria mais adequada do que populismo de esquerda, uma vez que a ambição populista não é neutralizar o capital, mas sim orientá-lo para o desenvolvimento nacional e o bem-estar social do povo (o progresso, enfim), velhas quimeras nacionalistas a que recorrem liberais incapazes de hegemonia burguesa e “esquerdistas” acomodados nas sociabilidades capitalistas.
Isso é radicalmente contrário à esquerda em sua acepção clássica, socialista e revolucionária, que intenciona a destruição do capital e das relações de dominação a ele subjacentes. O populismo progressista reatualiza as velhas esperanças pré-marxistas e pré-anarquistas de uma comunhão entre as diversas classes e grupos sociais sob o jugo do Estado.
IHU – O PT conformou sindicatos e entidades de representação de trabalhadores ao lulismo. Correto? Que riscos se pode correr na conversão dessas entidades de representação trabalhadora, ou mesmo camponesa, a lógicas do populismo?
Marco Antonio Perruso – Esta é a inovação involuntária do lulismo: partiu das origens classistas e basistas do campo de movimentos sindicais e sociais que originou o PT, de modo a permitir ao partido, uma vez convertido ao populismo por ele mesmo reatualizado a partir de 2006, apassivar via Estado as entidades populares sob sua influência. É certo que o campo petista-cutista já vinha se burocratizando desde antes. Os riscos sempre foram apontados por intelectuais críticos desde a fase lulista triunfante, como Francisco de Oliveira e outros, e pela antiga oposição de esquerda às políticas lulistas de conciliação de classe, hoje quase toda colonizada pelo lulismo contra o qual nasceu (caso do PSOL).
Tais riscos são os mesmos que motivaram a crítica inerente à teoria uspiana-weffortiana do populismo: uma vez que os movimentos dos trabalhadores deixam de ser autônomos, eles passam a orbitar o Estado-nação. Assim, substitui-se a luta de classes contra a desigualdade social pela ideologia pequeno-burguesa do culto ao Estado como instrumento de desenvolvimento capitalista, proposição de nossa tradição político-intelectual nacionalista, de Visconde de Uruguai a Wanderley Guilherme dos Santos. A mesma crítica foi dirigida ao PCB pré-64 por seu militante dissidente, Caio Prado Jr. (no seu clássico A revolução brasileira), por conta do reboquismo pecebista ao populismo trabalhista.
IHU – Sob ventos golpistas, antidemocráticos e de ameaças constitucionais, podemos considerar que o populismo pode ainda insuflar tais perspectivas? Como, ainda dentro do populismo, é possível reagir a esses ventos? Ou seria preciso abandonar o populismo para barrar a ventania?
Marco Antonio Perruso – É impossível ao populismo lulista evitar em definitivo o bolsonarismo, a extrema-direita, no Brasil, apenas retê-lo por um tempo (necessariamente com o apoio do neoliberalismo mais ou menos ilustrado e do fisiologismo do Centrão), pois as contradições de qualquer política ou hegemonia progressista deste tipo tendem a levar água para o moinho da retomada do populismo de extrema-direita, ou mesmo do retorno a liberalismos desmobilizadores e tecnocráticos.
Não quero dizer com isso que o bolsonarismo necessariamente sobreviva muito tempo fora do aparelho de Estado a partir de 2023, tenho sérias dúvidas a respeito, por ser ele na verdade estatólatra e nacionalista, ainda que se apresente com algum verniz liberal. É algo a se ver.
Já o populismo de extrema-direita, como conjunto de repertórios de marketing eleitoral e agitação ideológica, continuará disponível no mercado político profissionalizado: seus símbolos e dispositivos, agressivos e provocativos (fake news, obscurantismo, boçalidade apresentada como autenticidade, etc.) infelizmente ainda permanecerão sendo utilizados. Acredito que assim perdurará enquanto restar irresolvida a crise de motivação – definida por Habermas, há tempos, em outra conjuntura – sentida por tantos de nós hoje e expressa na miséria dos pobres e na falta de nexo existencial em viver sob o espírito do capitalismo ou debaixo da proteção de alguma pátria.
IHU – Vivemos tempos de renovação do populismo no Brasil? Em que medida a renovação do populismo expressa uma resignação ao capitalismo contemporâneo e uma renúncia ao horizonte socialista?
Marco Antonio Perruso – Exatamente, o retorno ou a reinvenção do populismo revelam mais profundamente a falta de horizontes mudancistas radicais no Brasil e no mundo. Tais horizontes não serão alterados por meros projetos intelectuais de supostos intérpretes dos mais pobres, ao menos enquanto novos e velhos sujeitos subalternizados não desenvolverem movimentações societárias na direção de transformações estruturais (as quais mesmo o populismo progressista de forma alguma almeja, pois está completamente enquadrado na sociabilidade capitalista).
Perruso aponta que “Charles Bettelheim, em sua magistral A Luta de Classes na União Soviética (Paz e Terra, 2007), mostrava que a construção do socialismo implica criar novas relações sociais de produção, necessariamente não-capitalistas, o que nunca foi cogitado de fato por qualquer tipo de populismo moderno. É nesta direção que podemos nos debruçar sobre experiências societais como o buen vivir indígena, o quilombismo negro, as fábricas retomadas por seus operários, etc.”. | Foto: divulgação
É o que diversos grupos no mundo, de diferentes matrizes militantes e ideológicas, já fazem. A partir das lutas dos que vivem do trabalho contra as inúmeras modalidades de exploração e opressão, sempre é possível aos intelectuais formularem diagnósticos e projetos condizentes com a superação efetiva da ordem do capital e com a construção de uma sociedade socialista a partir de baixo e que dispensa tutores a partir de acima. Algo ainda a ser experimentado antes de ser mais exatamente definido.
[1] “Contradicciones e y conflictos en El Brasil Contemporáneo”, Arauco, em 1966.
[2] O populismo na política brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 70.
[3] O populismo na política brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 77.
[4] Cf. meu capítulo “Golpe, onda conservadora, fascismo: a narrativa lulista como pensamento político-social” no livro que coorganizei com Fabio Luis Barbosa dos Santos e Marinalva Silva Oliveira: O pânico como política: o Brasil no imaginário do lulismo em crise, Rio de Janeiro, Mauad X, 2020.
[5] Os sentidos do lulismo, São Paulo, Cia. das Letras, 2012, p. 33.
[6] Cf. meu artigo tema desta entrevista, “O lulismo e a reabilitação do populismo”, Lugar Comum, n. 64, 2022, p. 60-62 (divulgado posteriormente pelo Boletim Lua Nova, do CEDEC).
[7] “A economia brasileira: crítica à razão dualista”, Estudos Cebrap, n. 2, 1972.
[8] A respeito, cf. livro de minha autoria a ser lançado no primeiro semestre de 2023, intitulado: 10 anos de junho de 2013: da crise do lulismo à derrota de Bolsonaro, a ser publicado pela Mauad X.