10 Novembro 2022
Contra o elitismo da direita e os dogmáticos de esquerda, ele constrói um novo sujeito político: o povo. Repele a ditadura dos mercados. Exige a democracia, mas pratica a pluralidade – pois não busca a nação homogênea e sem fissuras.
O artigo é de Nora Merlin, escritora, psicanalista e professora de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires, publicado por Outras Palavras, 09-11-2022. A tradução é de Maurício Ayer.
Apesar dos esforços de Ernesto Laclau no sentido de restituir dignidade ao populismo, uma categoria historicamente criticada, por ignorância e dogmatismo, pela esquerda e por fobias antipopulares pela direita, a hostilidade não diminuiu. Pelo contrário, nestes tempos, vemos um aumento significativo na desqualificação do termo, usando-o como uma ofensa contra correntes políticas – como o kirchnerismo, o lulismo, etc. – tomadas em seu todo: os líderes, dirigentes, jornalistas e militantes que compõem esses movimentos.
O uso do termo como ofensa em geral acompanha o argumento de que ele se opõe à República, apontando para sua similitude com o fascismo. A suposta equivalência entre os termos populismo e fascismo não é inocente, mas maliciosa, antipolítica e consistente com o aumento atual do discurso de ódio.
No Livro Populismo e Psicanálise (2014) – meu trabalho de tese sob orientação de Laclau –, eu diferencio e oponho as construções populista e fascista. Em outras palavras, o povo não é a massa que caracteriza o fascismo e, trazendo para o contexto de meu país, a Argentina, o peronismo não é equivalente ao fascismo.
Na mais recente teoria do populismo desenvolvida por Laclau, A razão populista (2008), ele é definido como uma prática política discursiva – militante, acrescentamos – que constrói um sujeito político: o povo e um/a líder. Essa afirmação tem pelo menos duas consequências: a primeira é que se produz um novo sujeito a cada vez, e a segunda é que se trata de um efeito, o sujeito povo nunca vem definido de saída.
Em relação ao debate levantado entre os teóricos interessados no populismo sobre se ele é de esquerda ou de direita, nosso ponto de vista, que coincide com o de Laclau, é o de que o povo não é um movimento nem uma ideologia, mas uma matriz. Isso significa que o populismo pode não ser de esquerda, mas é impossível que seja fascista ou antidemocrático.
O fascismo, o neofascismo ou, ainda, a direita assanhada, elimina a política plural, o conflito e os antagonismos, substituindo-os pelo ódio e pela construção do inimigo interno. Propõe uma “democracia” unívoca, liberal e sem povo. Não quer nada com a luta por novos direitos e mantém privilégios de classe como se fossem naturais.
O populismo não é uma prática política qualquer, mas uma matriz caracterizada pela articulação de diferenças: as demandas populistas. Essas demandas consistem em uma insatisfação coletiva que vai sendo organizada, que assume a forma de solicitações às instituições, articulam-se em torno de um significante vazio e a construção de uma fronteira que marca o conflito político entre o povo e o poder.
A heterogeneidade, a partir da barreira antagônica, torna-se equivalente, afirmando uma nova identidade entre as diferenças, sempre precária e provisória. Já o fascismo, pelo contrário, consiste em uma tentativa totalizadora que busca a homogeneidade e a construção da massa livre de antagonismos e fissuras. É a mesma inércia do neoliberalismo, cuja lógica consensual nega a dimensão antagônica e conflitante da política, trazendo a despolitização do social como seu efeito mais corrosivo.
Em seguidos trabalhos, sustentamos que o neoliberalismo em sua face atual de hiperconcentração é o retorno do fascismo através de um novo caminho, o que implica a produção de uma certa subjetividade caracterizada pela servilidade mais extrema, o extermínio e o autossacrifício. Lá onde prevalece o domínio do mercado, o máximo individualismo, o fascínio hipnótico do consumidor consumido, faz sua aparição a subjetividade econômica e o indivíduo odiento que se autopercebe como livre.
A hegemonia neoliberal está passando por uma crise. Tanto na América Latina quanto globalmente, dois caminhos podem ser vislumbrados: de um lado, o fascismo, revigorado pela descrença na política deixada pelo neoliberalismo, de outro, uma recuperação radical da democracia, reinventada no sentido da soberania, do nacional e do popular.
As recentes eleições no Brasil confirmam o avanço da direita, mas a vitória de Lula mostra que o campo popular soube resistir, apesar do impeachment de Dilma, do lawfare e da prisão sofrida por seu líder. O poder não é democrático, pois é permeado por práticas fascistas, mas também não é onipotente: foi demonstrado que a política desempenha um papel.
O fascismo existe e continuará a existir na política e na sociedade, e os governos populistas que emergem nessa nova onda terão que lidar com isso. O populismo oferece uma maneira de lutar contra o neoliberalismo e o fascismo, uma alternativa para o enfrentamento apostando em uma vida mais justa e igualitária.
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Populismo, alternativa à ultradireita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU