28 Agosto 2020
"O que há são lutas massivas por renda, dignidade, melhores condições, e políticas que conseguem se acoplar para fermentá-las e mediá-las em novas instituições", escreve Bruno Cava, pesquisador associado à rede Universidade Nômade (uninomade.net) e professor de Filosofia, em artigo publicado em sua página do Facebook, 27-08-2020.
Existe uma parte da esquerda brasileira que considera a Renda Básica/Universal uma estratégia neoliberal para aumentar o grau de exploração dos trabalhadores e fortalecer a hegemonia financeira do ciclo de capital. Bom, esses estão, como se diz em francês, à côté de la plaque. São os velhos, ainda que tenham rosto de menino.
Nisso, a velha esquerda é aliada da direita desenvolvimentista, pois uma e outra entendem que a distribuição direta de renda favorece o financeiro e não o produtivo, o especulador e não o bom capitalista nacional. À direita ou esquerda, é o mesmo argumento da armadilha do desemprego com um verniz diferente.
Melhor seria para eles, como queria Dilma desde o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), promover o emprego formal por meio de uma agenda industrial e de grandes obras, como se nas últimas quatro décadas não tivéssemos vivido uma reestruturação produtiva que pôs fim ao ciclo do fordismo-keynesianismo.
Esses estão à côté de la plaque porque não admitem a transferência direta de renda em sua comprovada ação macroeconômica, como mecanismo estabilizador de demanda e efeito multiplicador social.
Uma outra parte, mais atualizada e preparada, atrela a renda básica a programas de combate à pobreza e à redução da desigualdade, no que encontra repercussão entre liberais esclarecidos e a social-democracia cristã.
Considero-os aliados táticos e não estão equivocados, como demonstram os estudos empíricos de aplicações concretas, desde que sejam adotados desenhos redistributivos e valores substantivos.
Porém, têm um campo cego ou subestimado. Reduzir pobreza e desigualdade são antes consequências importantes, do que a qualidade principal de um programa que eleve a renda básica a direito -- tão universal quanto o sufrágio universal ou o direito à saúde.
O problema é que os mais pobres não são simples objetos de políticas públicas que estivessem esperando por programas que os contemplem. Não estão na margem da história esperando a inclusão produtiva para poderem fazer, criar, empreender.
Foi o que Giuseppe Cocco e eu chamamos de "lulismo selvagem", para contrapor às leituras objetivadoras de uma nova classe trabalhadora, que apareciam sempre como objeto passivo e alienado das novas politicas: subproletariado (Singer), nova classe média (Neri, Chauí), batalhadores (Jessé).
Todas tinham em comum uma crítica que reduz a classe a uma farofa amorfa à deriva nas dinâmicas do consumo, do crédito e das mídias. Disso para a tese das massas fascistas rendidas às fake news foram alguns poucos passos "dialéticos".
Quando falamos em lulismo selvagem - o que não agradou a ninguém da área - falávamos que a principal qualidade das políticas de massificação da renda no governo Lula não tinham sido simplesmente os (ótimos) resultados nos indicadores, em combater a pobreza e a desigualdade.
Mas sim a abertura dessas dinâmicas a uma transformação imanente da nova classe, que ocorria às costas das formulações dos ideólogos lulistas/petistas. O lulismo selvagem era um nome aberrante para uma geração nada natural de uma nova composição. Um conceito-monstro.
Mais do que objetividade financeiro-consumista, enxergávamos lutas de novo tipo, uma cauda longa, que eclodiram espetacularmente em Junho de 2013, o que terminou por fazer da década passada a da maior intensidade de mobilização social e política da história brasileira.
Eram de novo tipo por uma tríplice dimensão:
1) trabalho vivo, novas franjas de produção e reprodução, um 'empreendedorismo de multidão' (para usar termo de Negri e Hardt, em Assembly);
2) composição desejante, novos padrões de consumo e a formação de um consumitariado de massa;
3) a politização das condições de mobilidade, flexibilidade e criatividade que as políticas de renda ajudavam a fermentar.
Libertos da compulsão ao presente, da lei férrea da sobrevivência, passavam a desejar, sonhar, construir um futuro. O lulismo selvagem foi ação combinada de multidão, mais do que massa de manobra para as derivas e pulsões midiáticas ou capitalistas.
Portanto, a multiplicação pelo mundo dos auxílios pandêmicos é mais transformador no fato de se engrenar com a produção de subjetividade e, dessa maneira, reabre a possibilidade de democracia em seu aspecto material e vivido.
Estamos em meio a um terremoto de proporções inéditas, as rachaduras se ramificam por todos os lados, enquanto parte dos ditos progressistas ou mesmo os "revolucionários" promovem programas na contramão. Como se fôssemos debater exaustivamente uma reforma tributária ou política e aí, como uma tábua levada à cabeça dos candidatos homologados, apresentá-la sorridentemente à sociedade.
Uma dinâmica totalmente invertida. O que há são lutas massivas por renda, dignidade, melhores condições, e políticas que conseguem se acoplar para fermentá-las e mediá-las em novas instituições.
--
PS. Descobri que o Rogerio Skylab reuniu artigos numa recém publicação intitulada "Lulismo Selvagem". Um artista de quilate monstruoso, no bom sentido, tinha mesmo que formular conceitos-monstro. Quero ler.
Bruno Cava participou ontem, 27-08-2020, do evento IHU ideias. Na oportunidade, ministrou a conferência Renda universal. Uma referência viável e necessária à reconfiguração econômica, social e salarial. Assista à integra:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Lulismo selvagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU