"O dramático consiste em praticar um cristianismo de ódio e medo. Isto que é dramático: aquelas pessoas que pensam que são cristãs e alimentam o ódio; não gostam disso ou daquilo", afirma o teólogo.
Ao refletir sobre o futuro do cristianismo, o teólogo Eduardo Hoornaert vai direto ao ponto: "O futuro vai ser como o passado: minoritário. Um grupo vai seguir e outros, não". Aqueles que aderirem ao cristianismo de corpo e alma viverão - ou terão como objetivo de vida viver - segundo o Evangelho, para além da mera reprodução de práticas religiosas. Ele explica: "O futuro do cristianismo e o futuro da humanidade será o de minorias abraâmicas: o universalismo contra a tribalização de qualquer tipo, a condenação absoluta da guerra e da violência armada e uma não-violência ativa, que é um tipo de pressão moral libertadora, como dizia dom Hélder Câmara, a não-violência ativa, o perdão. Nesse caso, não existe inimigo, mas adversário; não há ódio nem medo".
Segundo ele, o futuro do cristianismo, para qualquer pessoa que queira viver segundo o Evangelho, "está nesta perspectiva de ter diante de si a coragem de abrir a porta para Deus, que respeita a nossa liberdade. Pode ser que Ele bata, a porta não se abra e isso será um fracasso para Deus, porque a criatura livre que Ele criou não abriu a porta. Mas acontece que, quando se abre, é uma tarefa difícil; não é fácil, não".
É difícil, esclarece, porque, como exemplifica o capítulo 3, 20, do Apocalipse, o próprio Deus causa uma mudança radical na vida daqueles que permitem a sua entrada. "Se abrirmos, se tivermos a coragem de abrir, ele entra e toma conta da casa. Não é mais ele que é convidado. O texto não diz que ele é convidado a tomar a refeição. O texto diz: 'tomaremos a refeição'. Ele toma conta do recado, toma conta da casa, toma conta da vida. E isso se chama Evangelho. Outra palavra seria revelação".
Na avaliação de Hoornaert, quatro figuras históricas - Mandela, dom Hélder Câmara, Irmã Dulce dos Pobres e Gandhi - são exemplos de pessoas que permitiram a entrada de Deus em suas vidas, visivelmente percebida em "pontos de virada" em suas existências.
Abaixo, reproduzimos a conferência "O futuro do cristianismo: o encontro entre evangelho e religião", ministrada virtualmente por Hoornaert em 20-04-2022. O evento integra a 19º Páscoa IHU - Incertezas e esperanças do tempo presente.
Eduardo Hoornaert (Foto: Lagarto Notícias)
Eduardo Hoornaert nasceu em Bruges, na Bélgica. Cursou dois anos de Línguas Clássicas e História Antiga e, posteriormente, Teologia, na Universidade de Lovaina. Chegou a João Pessoa, no Brasil, em 1958. Foi professor catedrático em História da Igreja, sucessivamente nos Institutos de Teologia de João Pessoa, Recife e Fortaleza. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), entidade autônoma fundada em 1973, em Quito, Equador. Desde 1962 escreve artigos de cunho histórico para a Revista Eclesiástica Brasileira (REB), da Editora Vozes, na área do catolicismo no Brasil e do cristianismo em geral. Atualmente, estuda a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
IHU – Hoje, reflete-se sobre a crise e a relevância do cristianismo. Como vislumbra que será o seu futuro?
Eduardo Hoornaert - O enfoque da minha abordagem será histórico, com uma certa dimensão de reflexão teológica. Vou dividir minha reflexão em quatro partes. Em um primeiro momento, gostaria de dizer que o futuro do cristianismo já está prenunciado em algumas figuras históricas. Gostaria de realçar quatro delas: o sul-africano Nelson Mandela, o brasileiro Hélder Câmara, a irmã Dulce dos Pobres, de Salvador, canonizada dois anos atrás e, finalmente, Mahatma Gandhi. Vou estabelecer pontos de coincidência entre eles.
Em segundo lugar, gostaria de aplicar a essas quatro figuras a tese de que o Evangelho não é religião. Na sequência, no terceiro ponto, vou discorrer sobre o absoluto e o relativo, ou seja, o frágil absoluto, o absoluto que é frágil, ou, nas palavras do jesuíta francês Michel de Certeau, a fraqueza de crer. Na quarta parte, vou concluir dizendo como tudo isso tem a ver com o futuro.
A palavra que me vem à mente é “minoria”. Vou começar pela primeira parte. Nelson Mandela nasceu na África do Sul no ano de 1918, descendente de população autóctone. Foi advogado, líder estudantil e, em 1949, quando o presidente Frederik Willem de Klerk decretou o apartheid, ou seja, a separação radical entre negros e brancos, ele entrou em uma fase de oposição radical ao governo. Foi preso em 1962 e ficou 28 anos na prisão. Só saiu da prisão com 72 anos, já idoso. Em 1993, ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz e, em 1994, se tornou o presidente do seu país até 1999. Para mim, a figura de Mandela é caracterizada pela ideia de não-vingança; ele tinha tudo para ter sentimentos de ódio e vingança diante das pessoas e instituições – inclusive do Serviço Secreto Americano – que o colocaram na prisão durante 28 anos. Mas ele não optou pela vingança e, com isso, teve muitos inimigos. Morreu com 96 anos, em 2003.
A segunda figura eu conheço mais porque acabei de escrever a biografia dele. É um cearense, sacerdote católico, nascido em Fortaleza em 1909: Hélder Câmara. Ele foi um seminarista muito dotado, ágil, indicado pelo Episcopado para ser articulador de movimentos católicos em defesa das grandes ideias católicas do momento: contra o comunismo, contra a histórica laica, que começava a ser articulada, ou seja, contra tudo que não era católico. Ele se engajou nisso, mas não se deu muito bem e migrou para o Rio de Janeiro após quatro anos de sacerdócio. Lá, se engajou no Ministério da Educação. Bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952, Hélder Câmara se destacou com seus talentos, com sua força de organização, sua retórica excepcional e com sua inteligência brilhante. Ele se tornou uma figura conhecida no Rio de Janeiro. O renome dele se tornou universal na Igreja pelo Congresso Eucarístico Internacional de 1955, que ele organizou com sucesso imenso.
Na frente do Aterro do Flamengo, onde se realizou esse congresso, que reuniu até o secretário do Vaticano, o monsenhor Montini [Giovanni Battista Montini, depois eleito Papa Paulo VI], havia uma favela. O pessoal disse a Hélder Câmara que isso poderia ser um incômodo [para a realização do congresso], ao que ele respondeu: “Não tem problema. Vamos distribuir umas latinhas de tinta e as pessoas vão pintar suas casinhas. Vai ficar bonito uma casinha amarela, uma verde, uma azul, uma vermelha”. Quando terminou o Congresso, o cardeal [Pierre-Marie] Gerlier, da França, se despediu de Dom Hélder com uma ponta de ironia, que entrou na alma de Hélder Câmara. Ele disse: “O senhor acha que vai resolver o problema da pobreza pintando casinhas?”. Este, acredito, foi o momento mais importante da vida de Hélder Câmara porque ali veio a irrupção do Evangelho. Hélder Câmara mudou. Ele não foi mais o mesmo. Começou a trabalhar a favor, com diversas iniciativas, dos operários pobres e das empregadas das casas de burgueses. Em 1964, ele foi nomeado arcebispo de Recife, exatamente na semana do golpe militar. O que é admirável é que ele teria tudo para ser opositor ao sistema, mas não é bem assim que ele age: ele mantém relações com os generais e, ao mesmo tempo, se tornou o terror deles pela sua habilidade diplomática de se relacionar e pela sua simpatia irresistível. Ele desestabilizou os generais do 4º Exército que estavam operando em Recife, a tal ponto de o governo central ter que nomear sucessivos generais para lidar com esse “bispinho perigoso”.
Assim, ele começou a ser conhecido internacionalmente, fez inúmeras conferências, uma delas em 1970, em Paris, onde denunciou a tortura praticada pelo próprio Estado. Isso foi muito forte. No ano anterior, um dos seus colaboradores, padre Henrique, foi assassinado, e dom Hélder sabia que isso fora feito para atingi-lo e, mesmo assim, ele pronunciou aquela famosa conferência que desestabilizou de vez o governo militar brasileiro. Gostaria de realçar que com 69 anos, em 1978, ele abandonou uma política de reuniões de bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB para começar a militar no que ele chamou de “minorias abraâmicas”. Essa foi uma ideia genial, em que o princípio do consenso da democracia vigente foi abandonado a favor do princípio de minorias, de pequenos grupos minoritários, que seguem o caminho de Abraão, de errância pelo mundo, sem poder, sem triunfo e sem vitória.
A terceira pessoa que gostaria de apresentar é a irmã Dulce, chamada de a santa dos pobres. Ela nasceu em 1917 e com a idade de 13 anos entrou em uma congregação religiosa em Salvador. Se dedicou à educação e, mais tarde, indicada pelos superiores, passou a trabalhar em projetos sociais, onde encontrou a pobreza. Em 1949, quando ela tinha 35 anos, trouxe para a própria casa da sua congregação nada menos do que 70 pessoas. A madre superiora disse que não havia lugar para hospedar esse povo todo, então ela hospeda as pessoas no galinheiro do convento. Isso criou uma situação dentro da congregação, porque algumas irmãs gostaram da atitude dela, enquanto outras acharam que ela não estava seguindo as regras da ordem religiosa. Ela continuou com suas ações e se tornou uma das figuras mais conhecidas de Salvador, sendo expulsa da congregação. Fundou o hospital Santo Antônio, que hoje é o principal hospital da cidade de Salvador. Ela morreu em 1992.
A quarta pessoa é a mais antiga historicamente: nasceu em 1869, na Índia, um jovem muito talentoso e que estudou advocacia. Ele estudou em Londres e voltou para o seu país com a promessa de uma carreira fantástica. Em 1893, com 25 anos, começou a trabalhar na África do Sul junto a um comerciante famoso, de renome internacional, e, nesse trabalho de advogado, costumava viajar entre Durban e Pretória, a capital da África do Sul. Numa dessas ocasiões, ele comprou um bilhete para viajar na primeira classe e, antes da viagem, um viajante branco chamou o guarda do trem a fim de passar Gandhi para a terceira classe. Gandhi recusa a mudança, mas, na próxima parada do trem, o guarda o expulsa. Em vez de reclamar, ele não faz nada. Esse é o momento de virada da vida dele: ele vai começar a professar a Satyagraha, que significa a força da verdade que está na não-violência. Ele não fica reclamando contra o guarda do trem; ele simplesmente começa a praticar uma resistência fortíssima de não-violência.
Com isso, o nome dele cresceu na política indiana a tal ponto que, em 1945, ele viajou para Londres, para uma grande conferência sobre a independência da Índia. Chegando lá, na mesa da negociação, ele só pronunciou estas palavras: “Vocês devem sair da Índia”. Com isso, provocou a independência do país sem derramar uma gota de sangue, sem provocar nenhuma guerra. Essa é uma figura de uma grandeza humana ímpar. Mas há um problema na Índia porque ela professa duas religiões: a hindu, da qual ele é adepto, e a religião muçulmana. Aos 79 anos, indo para a sua meditação diária, um jovem hindu atirou contra ele e o matou. O jovem estava revoltado porque Gandhi disse que tinham que pagar impostos para o Paquistão, suportar o outro mesmo que ele tenha outra religião e outra política.
IHU – Que relações estabelece entre essas figuras históricas e o Evangelho?
Eduardo Hoornaert - Vou entrar na segunda parte: analisar essas figuras com base no texto do Apocalipse. Os primeiros do livro de Apocalipse são xingamentos sobre a fidelidade ou a não-fidelidade à palavra evangélica. Vocês devem conhecer as circunstâncias em que foi escrito o livro de Apocalipse, mas gostaria de realçar somente uma frase do livro, no capítulo 3, 20: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei em sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele, e ele comigo”. Essa frase indica dois movimentos. O primeiro é o nosso movimento clamando a Deus para ele entrar – nós clamamos e isso se chama religião: “Senhor, ajude-me! Cure minha mãe!”, “Me dê sua graça!”. Nós chamamos Deus. O segundo movimento é Deus que está na porta e nos chama, mas não ouvimos. Ele respeita a nossa liberdade e não força a porta. Ele espera. Se não abrirmos, tudo bem, não abrimos. Mas, se abrirmos, se tivermos a coragem de abrir, ele entra e toma conta da casa. Não é mais ele que é convidado. O texto não diz que ele é convidado a tomar a refeição. O texto diz: “tomaremos a refeição”. Ele toma conta do recado, toma conta da casa, toma conta da vida. E isso se chama Evangelho. Outra palavra seria revelação.
Ora, Evangelho não é religião. São dois movimentos distintos. Um movimento é ligado às circunstâncias da vida porque a religião é uma criação humana de tentativa de acesso a Deus, enquanto a revelação é um movimento de Deus em procura da humanidade. Acontece que é muito arriscado abrir a vida para Deus porque ele mexe com a vida, ele muda o rumo da vida. Vemos isso de maneira tão clara nos exemplos que acabei de registrar. Ele mudou a vida de Mandela, de Hélder Câmara, da irmã Dulce e de Gandhi.
IHU – Como?
Eduardo Hoornaert - Em Mandela, em 1949, no momento em que ele descobre que as leis do seu estado não são éticas, não são baseadas no Evangelho. No caso de Hélder, em 1955, quando ele descobre que não adianta pintar as casinhas e se enganar com as aparências da caridade e descobre que sua maior tarefa seria lidar com a pobreza. No caso da irmã Dulce, é no momento em que 70 pobres não têm lugar para dormir nem para comer, e, na sua casa, as irmãs tinham o que comer e onde dormir. Ela entra com esse povo no convento e os hospeda no galinheiro. No caso de Gandhi, talvez o mais sensacional é que ele, ao ser expulso do trem, disse que aconteceu lá, naquela circunstância, um segundo nascimento: nasceu um novo Gandhi. Não era mais aquele advogado de sucesso, formado em Londres, mas um homem que descobriu o que é a verdade.
Nesses diversos casos podemos analisar que Deus não vem diretamente em uma aparição que quebra as nuvens. Não, ele vem em emissários dos mais diversificados, inclusive com emissários meio problemáticos. No caso de Mandela, foi o presidente da África do Sul [com suas ações] que provocou a conversão de Mandela. No caso de dom Hélder, é o cardeal, enviado por Deus para dizer aquelas palavras irônicas e penetrantes, de uma ironia desagradável. No caso da irmã Dulce, são os 70 pobres que não têm onde ficar e que mudam a vida da religiosa. No caso de Gandhi, é o próprio guarda do trem que é emissário de Deus porque, ao jogá-lo para fora do trem, faz com que se revele Deus na vida dele. Aqui há dois movimentos. Um é inevitável na maioria das culturas, ou seja, a religião, o caminho que temos para poder tentar nos aproximar de Deus. Outro é o caminho de Deus para nós, que é, muitas vezes, inesperado, exigente, mas que respeita nossa liberdade.
IHU – De que outros modos o senhor compreende o chamado de Deus para cada um de nós?
Eduardo Hoornaert - Eu gostaria de fazer uma segunda aproximação do mesmo tema com uma frase do filósofo esloveno Slavoj] Žižek, que tem um livro interessantíssimo que nunca foi traduzido para o português, chamado “Frágil absoluto”. Žižek é um filósofo não religioso, mas acha que a mensagem [religiosa] tem que ser preservada exatamente porque contém fragilidade e um valor absoluto. Exatamente voltamos aqui ao tema do Evangelho e da religião. Frágil é a religião, ou seja, o invólucro em que estamos necessariamente metidos, pelo menos nas nossas tradições, para nos encontrarmos com Deus através das celebrações religiosas, da fé, da instituição.
Coloquei Gandhi no último lugar, embora ele seja historicamente o primeiro porque quando comentaram a luta dele pela independência da Índia, disseram que ele deveria se tornar cristão. Mas ele respondeu: “O hinduísmo é o meu caminho” para o Evangelho – embora ele não tenha falado a palavra [Evangelho]. Ele permaneceu hindu e não se converteu ao cristianismo. Com isso, relativizou o cristianismo e praticou o Evangelho – como assim o chamamos na nossa cultura judaico-cristã – em outro continente, na Índia. Ou seja, ocorreu a mesma entrada de Deus na vida dele através da sabedoria hindu antiga, tradicional, transmitida pelos séculos. Em outras palavras, qualquer religião pode ser trampolim para o Evangelho; mas religião não é o Evangelho. A religião é, talvez, um caminho, mas pode ser também um descaminho. Há uma necessidade de distinguir, da maneira mais tomista possível – porque Santo Tomás adora distinções –, religião e Evangelho.
Gandhi é um advogado hindu. Mandela é um advogado anglicano. Hélder é um bispo católico e Dulce é uma religiosa católica. Tudo isso é relativo e é frágil. Tudo isso pertence ao que Michel de Certeau chamou de “a fraqueza de crer”. Estamos metidos em sistemas provisórios, incompletos, por vezes contraditórios, cheios de defeitos, mas que são a nossa vida e não podemos sair disso. Então, temos que, na nossa mente, saber que isso é um trampolim para Deus, mas é provisório, incompleto, inacabado e frágil. O absoluto de Deus quebra todas as fronteiras.
IHU – O que há de particular nessas figuras que o senhor cita?
Eduardo Hoornaert - Não é por Mandela ser negro que se tornou grande, mas por ser um universalista. Quando ele se tornou presidente, não combateu seus adversários, os separatistas. Ele teve muitos problemas com sua primeira mulher, que não aceitou isso. Ela dizia que ele deveria se vingar de seus algozes. Ele ficou 28 anos na prisão e não quebrou os laços com os brancos. Não humilhou os brancos; foi humilhado por eles. Quer dizer, ele mostra claramente a distinção entre o absoluto, que é o universalismo humano, a irmandade universal entre as pessoas, a fraternidade absoluta, e a relatividade de uma história concreta na África do Sul, onde houve invasão de brancos que estabeleceram o poder lá.
A mesma coisa [universalismo] percebemos em dom Hélder Câmara. Ele fundou a CNBB, mas não vendeu sua alma para ela, a tal ponto de que quando deixou de ser presidente dela, não hostilizou a outra linha [que entrou em seu lugar]. Quando o Vaticano mandou para Recife um bispo para desmanchar todo o trabalho que ele tinha realizado durante 20 anos, ele não pronunciou nenhuma palavra contra dom Cardoso. Ficou recolhido ao silêncio. Não condenou os militares; se opôs a eles. Essas pessoas não têm inimigos; tem adversários políticos e ideológicos, sim, mas não têm inimigos. O ódio não existe mais nesses corações e daí brota a saúde, a alegria e a coragem que é transbordante na vida de Hélder Câmara. Ou seja, a alegria no meio do sofrimento. Ele não tinha amargura. Ele, de vez em quando, falava sobre isso e dizia que não conservava nenhum ranço no seu coração.
O caso da irmã Dulce é muito parecido. Ela se relacionava bem com o famoso Antônio Carlos Magalhães – ACM, que era um político totalmente contrário ao que o povo pobre quer e queria. Mas ela passava por cima disso e aceitava doações de todo mundo. Alguns criticavam isso, mas ela aceitava doações de todos os cantos para os seus pobres. Quer dizer, há uma mentalidade aí que ultrapassa o relativo e vai direto para o absoluto. Essas vidas são grandes porque deixaram o absoluto entrar em suas vidas.
Com 69 anos, Hélder Câmara escrevia cartas circulares todas as noites. Elas tinham cabeçalhos e, por volta de 1970, ele passa a escrever neles “minorias abraâmicas”. Uma expressão enigmática. Finalmente, em 1978, ele claramente escreve um texto ao longo de diversas cartas, explicando o que seriam as minorias abraâmicas. São minorias que não seguem o princípio do consenso. Ou seja, a chegada a um resultado a partir de um consenso entre as pessoas. No consenso, é a maioria quem ganha – a lei da democracia – e muitas vezes o consenso é feito a partir de compromissos, como, por exemplo, Lula-Alckmin. O consenso não é o Evangelho. O Evangelho é realmente radical; não faz compromisso.
O Evangelho é opção radical pelo pobre e, nesse sentido, para mim, sempre foi muito difícil ler o capítulo 2 do Evangelho de Marcos, no qual Jesus convida também exploradores do povo para tomarem a refeição com Ele, os famosos publicanos, cobradores de impostos terríveis. E chama um deles, Levi, para se tornar seu apóstolo. Eu tive muitos problemas com esse texto durante muito tempo. É o perdão total. Não somente por bondade, mas porque ele vê outro horizonte; o horizonte do universalismo e da união de toda a humanidade e da fraternidade no reino de Deus, como diz o Evangelho. Então, a ideia de minorias abraâmicas é genial porque até hoje constitui uma grande novidade: significa abandonar o sonho de ser a maioria, que foi, durante tantos séculos, o sonho da Igreja católica de ser a maioria da sociedade, de ter o poder, de formar a sociedade. Não podemos ficar tristes com a diminuição de participantes nos ritos católicos, não podemos ficar tristes por causa do poder do pentecostalismo. Todos esses medos não existem. Não se tem medo nem ódio quando se visualiza outro horizonte, o do Evangelho e o da chegada de Deus.
IHU – A partir disso, como imagina que será o futuro do cristianismo?
Eduardo Hoornaert - O futuro vai ser, penso eu, como o passado: minoritário. Um grupo vai seguir e outros, não. Os grandes santos da Igreja católica ao longo da história são todos vinculados às minorias: São Francisco de Assis, Santo Inácio de Loyola, São Vicente de Paula, São Domingos de Gusmão. Mandela, Hélder, Dulce e Gandhi, nenhum foi consenso. Até hoje muitos criticam Mandela, como o criticou a sua primeira esposa. Hélder nunca foi consenso, nem em Recife, de jeito nenhum. Dulce nunca foi consenso e foi expulsa da congregação. Gandhi nunca foi consenso e continua não sendo consenso na Índia.
O futuro do cristianismo e o futuro da humanidade será o de minorias abraâmicas: o universalismo contra a tribalização de qualquer tipo, a condenação absoluta da guerra e da violência armada e uma não-violência ativa, que é um tipo de pressão moral libertadora, como dizia dom Hélder, a não-violência ativa, o perdão. Nesse caso, não existe inimigo, mas adversário; não há ódio nem medo. O futuro do cristianismo, como de qualquer religião, está nesta perspectiva de ter diante de si a coragem de abrir a porta para Deus que, como eu já disse, respeita a nossa liberdade. Pode ser que Ele bata, a porta não se abra e isso será um fracasso para Deus porque a criatura livre que Ele criou não abriu a porta. Mas acontece que, quando se abre, é uma tarefa difícil; não é fácil, não.
IHU – No Evangelho de Lucas, um dos três condenados à crucificação reconhece que a punição a ele seria “justa”, ao passo que a de Jesus seria injusta. Contudo, não pede perdão, senão que Jesus recorde dele quando chegasse ao reino de Deus. Como essa passagem nos ajuda a pensar sobre o papel do cristianismo hoje?
Eduardo Hoornaert - É uma pergunta difícil porque a minha primeira reação diante da pergunta é que os Evangelhos não são livros biográficos no sentido moderno da palavra. O Evangelho de Lucas é como os demais, um trabalho fundamentalmente teológico que consiste em provar que Jesus foi injustamente crucificado. Ora, segundo a lei romana e a lei do sinédrio, aqueles homens que julgaram Jesus achavam que estavam fazendo justiça. Então, é muito relativo: para eles, a ação era justa, porque operavam dentro de um legalismo, mas achavam que a condenação era justa.
Jesus foi julgado por um tribunal. O sistema jurídico sempre inventa a justiça, mas muitas vezes ela é baseada em uma injustiça muito grande. Então, o homem crucificado não pede perdão, mas Jesus mostra mais uma vez a lei do Evangelho, que é o perdão e a reconciliação, quando Jesus diz a ele “você estará comigo no Reino de Deus”.
Eu gostaria ainda de relativizar o caráter biográfico desses evangelhos. Esse é um problema de estudo, naturalmente, mas é importante, para conhecer as origens do cristianismo, relativizar também a própria redação dos evangelhos, que são textos para animar as comunidades daquele tempo. Então, claramente se apresenta a punição de Jesus como injusta. Mas se você se colocar no ponto de vista do defensor do sistema romano, que tem uma legislação contra quem não obedece às leis, eles fizeram uma condenação justa.
IHU – Qual é o papel do cristianismo e do Evangelho em um mundo ferido, entre outras razões, pelo absolutismo do humano em relação a todos os demais seres?
Eduardo Hoornaert – Sobre essa questão, gostaria de contar uma grande surpresa que tive. Estudei grego antes de entrar no seminário. Então, tenho um velho dicionário em casa e fui em busca da palavra “éthos” - ética, em grego - e, para a minha grande admiração, encontrei a seguinte definição: “abrigo para porcos”. Significa isto, que naqueles tempos antigos e memoráveis, o bom desbravador não deveria só cuidar bem dos animais mais nobres, como cavalo e camelo, mas também dos animais considerados sujos, que ficam com o focinho mexendo em coisas sujas, como o porco.
Mas a inteligência ética – como Aristóteles trabalha depois – consiste em abrigar também os porcos. Em outras palavras, a ética é uma lei que ultrapassa o humano. A ética diante da natureza, do mundo ferido pelo absolutismo do humano, lida com as florestas, com os porcos. O porco pode ser muito útil para nós, mas independente disso, ele faz parte da vida. Então, esse tema tem uma origem muito realista e foi trabalhado pelos filósofos gregos e daí surgiu a palavra ethicus: aquele ou aquela que consegue enxergar “aquilo que é”, “aquilo que existe”. Ora, o pobre existe, a floresta existe, a natureza existe, e o ser humano não pode, no absolutismo do humano, dizer que ele é o dono absoluto da natureza e acabar com tudo em nome do progresso.
IHU – O futuro do cristianismo estaria em revisitar o Cristo histórico? Como as lições da Paixão e ressureição de Jesus podem nos inspirar?
Eduardo Hoornaert – Uma coisa que considero absolutamente útil e necessária nos estudos dos dias de hoje é ler o texto no seu contexto. Ver tudo no seu contexto. A palavra Cristo é uma interpretação feita por Paulo, que escreve 20 anos depois da morte de Jesus, que vê em Jesus o ungido. Ele interpreta Jesus. Quando você quer ir mais “dentro da coisa”, você tem que entrar na cultura oral do povo. O que era Jesus de Nazaré para o povo das aldeias? Era um novo Elias, um novo Davi. É tudo historicamente condicionado por leituras. A mesma coisa ocorre em relação à Paixão e à ressurreição. Você tem que lê-las em um contexto de extrema perseguição. O movimento de Jesus correu, durante muitos anos, o perigo de desaparecer.
Em 62, matam Tiago, que tinha liderado o movimento, acabam com a vida de Pedro, ou seja, de todos. Paulo só não foi morto porque era cidadão romano. Quer dizer que a ideia da ressurreição surge em um contexto de extrema perseguição, de não aceitar que a última palavra seja a palavra da morte. A vitória está na ressurreição. Então, a ressurreição é uma teimosia de uma fé, de uma coragem impressionante. Esse é trabalho das primeiras comunidades. Aqui não vamos atrás do evento. Vamos atrás da tenacidade daquele povo que não admitia que a última palavra fosse a morte e a derrota.
A mesma coisa acontece na Paixão. Ela era extremamente cruel. Naquele tempo, o cristianismo era transmitido na cultura oral e as pessoas exageravam para mostrar a sua adesão a Jesus. Mas, de qualquer modo, ele foi cruelmente assassinado e isso prova mais uma vez que a vitória não pertence a eles. O crucifixo se tornou o maior símbolo do cristianismo. Ele fica em todo o canto na casa dos cristãos como lembrança de que aquele horrível sofrimento não foi em vão. Não no sentido de uma redenção – isso é de uma teologia que vem do século XI -, mas no sentido de um homem que vai até o fim no seu compromisso, que vai pregar a boa nova de Deus e a esperança do Reino de Deus apesar de tudo. Me parece ser esse o sentido da Paixão e da Ressurreição.
IHU – O mergulho na espiritualidade de Teilhard de Chardin não seria também um caminho para o encontro com o Evangelho de Cristo?
Eduardo Hoornaert – Sem nenhuma dúvida. Teilhard de Chardin foi, quando apareceu, em 1950, uma irrupção da teologia que conheci – da Europa –, com uma luz de esperança diante de uma mentalidade que estava começando a perceber que o catolicismo estava em declínio. A missa em cima do universo [A-Missa-Sobre-o-Mundo], de Teilhard de Chardin, aquela visão larga de Jesus como sendo prenúncio de uma nova humanidade foi realmente uma descoberta. O próprio Hélder Câmara era entusiasmado por Chardin, e muitos daquela geração são inspirados por ele, que une ciência com religião. Ele tem um espiritualismo baseado na ciência arqueológica e paleontológica como um caminho com o Evangelho de Cristo.
IHU – Em seu livro “A formação do catolicismo brasileiro”, o senhor nos lembra que os quilombos foram espaços de preservação da fé popular. Nos lembra também sobre o papel dos leigos no processo de evangelização. Como valorizar o leigo hoje em um contexto de igreja clerical?
Eduardo Hoornaert – A Igreja brasileira, antes da romanização, na segunda parte do século XIX, com o processo de maior influência da Igreja romana no catolicismo brasileiro, é uma igreja fundamentalmente leiga, trazida pelos portugueses. Uma Igreja, como diz o Pedro Ribeiro de Oliveira, de pouca missa e muito santo, de pouco padre e muita promessa. Essa Igreja das promessas, da devoção popular, foi a Igreja do catolicismo até o que chamamos de romanização. Ou seja, a remodernização da Igreja segundo os moldes ditados por Roma, que é uma burocratização em torno da diocese e da paróquia.
Antigamente, era cultivado o catolicismo nos santuários domésticos e, justamente nesses santuários, é interessante observar, normalmente mantido pela dona da casa ou da fazenda, se reuniam para rezar o terço a dona da casa, os brancos, descendentes dos colonizadores, e os escravos. E aí chegamos nos quilombos. Quando os bandeirantes desmancharam o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, descobriram santos católicos. Isso significa que os quilombolas negros, fugidos dos engenhos, não observaram os santos africanos como Iemanjá, Orixá, Oxum, mas Santa Bárbara, Santa Efigênia, santos que representavam, de qualquer modo, o mundo africano. Se você for na Igreja do Rosário dos Pretos, em Salvador, vai ver esses santos pretos. Mas são santos católicos.
Então, o quilombo pode ser considerado uma preservação do catolicismo brasileiro ao longo de séculos. São fatores positivos a serem resguardados não somente por direitos humanos, mas por preservação do próprio catolicismo, de voltar a essas formas. Mas é claro que isso precisa de toda uma disposição de ir para o povo, de ir para a devoção popular, de não considerar a devoção popular como um problema, mas como o início de um processo em que a devoção popular leva ao Evangelho. Não precisa passar pelos sacerdotes, não precisa passar pela estrutura da Igreja, mas poder ir direto para o Evangelho. A própria estrutura das dioceses não vem do Evangelho, mas do século IV, uma estrutura criada segundo o modelo do Império Romano. Então, não se deve santificar a diocese. Como forma de organização cristã, é uma estrutura a ser referenciada. Pode ser referência, mas a referência também pode ser o quilombo, a reza em casa, a novena, os próprios ritos que o povo conserva como uma riqueza e resistência impressionante.
IHU – Pelo que entendi da sua fala, o futuro do cristianismo passa pela vivência radical do Evangelho. Isso aponta para a formação de pequenas comunidades de base? Qual é o papel das instituições e igrejas nesse processo?
Eduardo Hoornaert – Essa passagem pelas comunidades de base é exatamente o caminho a seguir. A ideia das comunidades de base é a ideia das comunidades abraâmicas. Quando dom Hélder Câmara organizou os encontros dos irmãos em Recife, seguiu exatamente o modelo das comunidades de base, que são comunidades minoritárias. Temos, claro, que evitar o perigo do “minipadre”. Ou seja, que o líder da comunidade de tal maneira imite a imagem do padre e se torne um “minipadre” no sentido de que imita o sistema clerical. O sistema clerical não é originário no cristianismo. É uma formação através da história; uma formatação do cristianismo, histórica, relativa, que pode ser vivida ao lado de outras formas, como, por exemplo, as pequenas comunidades de base.
Sobre a segunda parte da pergunta, as instituições são trampolins, são necessárias no sentido de que vivemos inevitavelmente em instituições. O ser humano não vive isolado; ele vive nas instituições. O próprio encontro sexual do casal gera uma família, que já é uma instituição. A instituição não pode ser demonizada. Temos que ter em mente que qualquer instituição é provisória, incompleta, passageira, e pode ser substituída por outra e isso não é nenhum drama. As críticas ao clericalismo não têm nada de dramático. É passagem da história. O dramático consiste em praticar um cristianismo de ódio e medo, ou seja, equivocar-se sobre esse ponto e esquecer que cristianismo é amor e esperança. Isto que é dramático: aquelas pessoas que pensam que são cristãs e alimentam o ódio; não gostam disso ou daquilo.
Outro elemento é o medo. Isso não é cristianismo. Jesus muitas vezes disse que não precisava ter medo porque estamos com Deus, que está nos sustentando para além da morte. E há esperança. Quando as instituições mudam, não tem nada de dramático. Só não se pode confundir, e pensar em uma nova Igreja como comunidade de base. Isso é um novo triunfalismo. Está errado. A comunidade de base vai conviver com as instituições da paróquia, do clero, da diocese. E a história vai nos mostrar para onde vamos. Mas isso não é fundamental. O fundamental é viver, na sua curta vida, na sua vida frágil, o absolutismo da entrada de Deus na nossa vida. Isso é o importante.