Pesquisador analisa como a ação pastoral do irmão Cecchin alia espiritualidade cristã e lutas pela justiça social desde o bairro Mathias Velho
A instituição do Motu proprio, que eleva a catequese de ação pastoral à categoria de Ministério, pelo Papa Francisco, agora em maio, trouxe à tona também debates sobre os desafios dessa perspectiva formativa de cristão católico em nosso tempo. Nesse sentido, muitas experiências do passado podem ser lembradas como fonte de inspiração. Uma delas é a ação desenvolvida pelo irmão marista Antônio Cecchin, falecido em novembro de 2016, aos 89 anos. O historiador Odilon Kieling Machado se dedicou a estudar essa trajetória, que coincide com a formação de um dos maiores bairros da periferia de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS), o Mathias Velho.
A ação de Cecchin se apoia na chamada catequese para libertação, ligada aos princípios das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. “A participação do irmão Antônio Cecchin foi fundamental neste processo, pois ele, com todo o aporte humanístico e cristão oriundo da Teologia da Libertação, encontra na periferia do bairro Mathias Velho um espaço para desenvolver uma espiritualidade libertadora integral”, destaca Machado, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. “A relação entre fé e vida se dava na articulação de uma formação cristã de base por justiça social. As CEBs forneciam a teoria formativa, em que a busca pela moradia era o objetivo maior, dentro de uma visão comunitária, tanto na organização quanto na partilha de vida”, completa.
Assim, de um grupo de operários sem casa que ocupam uma área, a região vai se conformando como um bairro baseado no associativismo entre as pessoas. “Gradativamente esta religiosidade popular mais tradicional vai se transformando em uma religiosidade popular de libertação, em que a leitura da Bíblia, as orações e os cantos são meios de ligar a fé com a vida comunitária”, explica o pesquisador.
Para essas pessoas, lideradas por Cecchin, a luta por justiça social é apoiada na trajetória do próprio Cristo, por isso resumem sua luta na frase: ‘Jesus ocupou uma gruta, nós ocupamos esta terra’. “A relação religiosa está no contexto em que Jesus, ao nascer, não tinha uma morada adequada, além de ser exilado no Egito, nascendo entre animais; da mesma forma, contextualiza-se pelo direito dos novos moradores de ter um terreno no bairro para ter as suas moradias”, detalha Machado.
Odilon Machado (à esquerda) e Irmão Antonio Cecchin (Foto: Arquivo pessoal)
Odilon Kieling Machado possui licenciatura em História pelo Centro Universitário Franciscano - Unifra, mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM e doutorado em História pela mesma instituição. Atua como professor na rede pública estadual de ensino e também como professor formador pelo Projeto Universidade Aberta - UAB, no curso de Licenciatura em Educação do Campo/UFSM na área de Ciências Humanas. Em sua dissertação de mestrado e tese de doutorado, estudou a ação catequética e social no bairro Mathias Velho, em Canoas, que teve à frente o irmão Antônio Cecchin.
IHU On-Line – O senhor pesquisou a organização social do bairro Mathias Velho em Canoas, tomando como um dos vértices dessa organização a ação de uma Comunidade Eclesial de Base - CEB. Como compreender a importância dessa articulação religiosa naquele contexto?
Odilon Kieling Machado – Com as minhas pesquisas acadêmicas de pós-graduação, tanto de mestrado como de doutorado em História, na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, em relação à organização social do bairro Mathias Velho em Canoas, durante as décadas de 1970 e 1980, pude identificar a relação intrínseca das CEBs com a organização social dos trabalhadores e famílias que construíram um movimento comunitário significativo na história do Rio Grande do Sul.
Esse movimento comunitário teve como objetivo as suas lutas por moradia, água, luz, transporte e acima de tudo uma luta por justiça social de uma população que buscava emprego e renda. As CEBs, enquanto comunidades de base ligadas à Igreja Católica, foram uma organização criada pelos próprios moradores no bairro, com apoio de religiosos que tinham neste período histórico uma ligação religiosa com a Teologia da Libertação. A relação entre fé e vida se dava na articulação de uma formação cristã de base por justiça social. As CEBs forneciam a teoria formativa, em que a busca pela moradia era o objetivo maior, dentro de uma visão comunitária, tanto na organização quanto na partilha de vida.
IHU On-Line – Uma das grandes referências nesse trabalho de articulações sociais foi o irmão Antônio Cecchin. Em que consistia o trabalho dele nesse contexto do bairro Mathias Velho e como ele articulou a formação cristã católica com a perspectiva da emancipação dos sujeitos?
Odilon Kieling Machado – A participação do irmão Antônio Cecchin foi fundamental neste processo, pois ele, com todo o aporte humanístico e cristão oriundo da Teologia da Libertação, encontra na periferia do bairro Mathias Velho um espaço para desenvolver uma espiritualidade libertadora integral. Seu trabalho começa com a devoção religiosa, com seus rituais, rezas e força espiritual de uma população que tem na religiosidade popular uma força de proteção e sentido de vida.
Gradativamente esta religiosidade popular mais tradicional vai se transformando em uma religiosidade popular de libertação, em que a leitura da Bíblia, as orações e os cantos são meios de ligar a fé com a vida comunitária, sintetizada em uma frase que se torna um símbolo através de uma faixa junto à luta pela moradia: “Jesus ocupou uma gruta, nós ocupamos esta terra”. A relação religiosa está no contexto em que Jesus, ao nascer, não tinha uma morada adequada, além de ser exilado no Egito, nascendo entre animais; da mesma forma, contextualiza-se pelo direito dos novos moradores de ter um terreno no bairro para ter as suas moradias, dentro de um êxodo rural.
Irmão Antônio Cecchin foi um verdadeiro profeta no meio do povo. Seu carisma, dedicação e participação foram determinantes, na medida em que sua liderança na formação, orientação e assessoria estava ligada a uma concepção que tinha como eixo a libertação integral, com a dimensão pessoal, familiar, social e comunitária do povo. O seu trabalho animava e estimulava a participação popular, tanto no aspecto de uma espiritualidade libertadora, como também em um processo educacional popular baseado na metodologia de Paulo Freire. Um elemento fundamental neste trabalho de base é que o povo era o sujeito e protagonista da sua própria libertação e ele estava na retaguarda desse processo histórico.
IHU On-Line – Suas pesquisas acerca do Mathias Velho têm um marco temporal significativo, de 1975 a 1988. Como compreender e qual a importância dos contextos político, social e eclesial do Brasil nesse período?
Odilon Kieling Machado – Para compreendermos este período histórico relacionado às minhas pesquisas, identifiquei contextos políticos, sociais e eclesiais no sentido macro e micro da sociedade, no país, na América Latina e particularmente no bairro Mathias Velho em Canoas. Naquele período, o mundo vivia a Guerra Fria polarizada entre o capitalismo americano e o socialismo soviético. Visões de mundo e de sociedade estavam de uma maneira ou de outra relacionadas aos avanços, recuos, em relação à democracia, igualdade social e paradigmas que norteavam a política, a economia e a organização social.
Na Igreja Católica acontecia a grande renovação do Concílio Vaticano II, ligado à abertura da Igreja ao mundo, principalmente através da Gaudium et Spes (Alegria e Esperança) no sentido pastoral, onde a Igreja se aproximava dos mais pobres e vulneráveis. A leitura do Concílio e especialmente sua carta pastoral a nível mundial é aplicada na América Latina, que vivia ditaduras civis-militares sob a ótica do capitalismo excludente que gerava desigualdade social.
Nas Conferências de Medellín, na Colômbia, em 1968, e Puebla, no México, em 1979, ocorreu a aplicação do Concílio na América Latina, em uma parte do continente americano marcado pela religiosidade popular católica, oriundo do processo colonizador.
Como resultado destas conferências surge a “opção preferencial pelos pobres” e as “Comunidades Eclesiais de Base”. Um povo pobre, oprimido e profundamente religioso. O Brasil é um país em que estes ideais e visão nova da Igreja apoiada de modo significativo pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB têm uma aplicabilidade significativa ligada aos movimentos sociais emergentes neste período histórico. Entre estes movimentos sociais, destacam-se os movimentos comunitários urbanos pela moradia, no qual o bairro Mathias Velho em Canoas estava inserido.
O marco temporal no bairro está ligado inicialmente ao ano de 1975 com a chegada dos primeiros migrantes a Canoas, oriundos do interior do Rio Grande do Sul, na sua maioria em direção a Triunfo, na grande Porto Alegre, com a promessa de emprego e renda no Polo Petroquímico. A periferia de Canoas é um espaço para moradia, ocorrendo duas ocupações urbanas organizadas pelos novos moradores, formando a Vila Santo Operário (antiga lavoura de arroz) e a Vila União dos Operários (antigo Prado de corridas de cavalos), na periferia do bairro Mathias Velho. Terras usadas na época para especulação imobiliária. A organização comunitária se desenvolve, no ano de 1988, quando fecha um ciclo de conquistas em termos de moradia e organização social.
IHU On-Line – Que transformações essa ação do irmão Cecchin e das CEBs promove nesse período de cerca de dez anos no Mathias Velho?
Odilon Kieling Machado – Durante este período ocorrem as várias fases do movimento comunitário, com suas conquistas e realizações, baseadas nas lutas, disputas e organização. A ação do irmão Antônio Cecchin, juntamente com a sua irmã Matilde e vários freis capuchinhos, consolidou na época a formação religiosa, comunitária e social. As iniciativas do irmão Antônio, enquanto liderança religiosa e social, torna-se a principal referência na comunidade. Sua atuação direta, tanto na organização das CEBs quanto nas lutas sociais, é decisiva.
As ocupações que vão dar origem à Vila Santo Operário e à Vila União dos Operários são os marcos históricos deste processo. Ao longo do tempo vão ser fundadas duas associações de moradores, creche comunitária, fornos comunitários, comunidades internas nas vilas como polo de base e catalisador desta organização comunitária. Como veículo de Comunicação entre os novos moradores estava a organização de jornais comunitários, além de uma horta comunitária na Vila União dos Operários.
Ações do movimento comunitário no bairro Mathias Velho. Fornos comunitários, partilha do pão. Fé e Vida. | Acervo: Matilde Cecchin
Reciclagem do lixo e organização de ruas com nomes populares também fizeram parte da ação dos moradores liderados pelo irmão Antônio Cecchin. Entre as ações dos moradores, podemos também destacar, de acordo com as fontes históricas, panfletos, documentos oficiais e fotografias, a luta popular em busca da moradia, transporte, escolas, luz elétrica e água junto aos poderes públicos, tanto municipal como estadual.
Pela pesquisa, pude identificar que neste processo de organização do movimento comunitário as CEBs tornam-se uma referência fundamental, como base de lutas unindo a fé religiosa e as lutas sociais de um povo simples, humildemente apoiado pelo chamado setor progressista da Igreja Católica, que tinha na Teologia da Libertação sua base teológica e nas Comunidades Eclesiais de Base sua organização eclesial. As CEBs visavam à formação do movimento comunitário e sua materialização dentro da opção pelos pobres contra a pobreza e a exclusão social em prol de uma vida digna como cristãos comprometidos com a construção do Reino de Deus, dentro dos parâmetros do cristianismo.
IHU On-Line – Como o senhor vê o bairro Mathias Velho atualmente?
Odilon Kieling Machado – Atualmente, vejo o bairro Mathias Velho como fruto da organização comunitária entre 1975 e 1988, marco histórico de base da minha pesquisa. Verifico que ocorreu ao longo do tempo a regularização dos lotes de moradia, asfaltamento das ruas e a participação ainda significativa dos moradores junto à associação de moradores. Ainda moram no bairro pessoas que viveram e se orgulham de ter participado da organização comunitária no seu início.
IHU On-Line – Irmão Cecchin sempre foi atuante pelas ações pastorais, entre elas a catequese. Como se dava essa catequese no contexto do Mathias Velho nesse período? Em que medida essa catequese empregada ali rompe com a ideia de lugar comum acerca da catequização?
Odilon Kieling Machado – As fontes históricas, onde incluo também algumas entrevistas dadas por lideranças religiosas, especialmente do irmão Antônio Cecchin, demonstram que no início da organização comunitária havia um trabalho de base a partir da reza do terço, cantos e um trabalho catequético libertador. A experiência, a formação e a vivência do irmão Antônio proporcionaram este trabalho e, ao longo tempo, ocorreu uma transformação religiosa baseada inicialmente em um certo ritualismo e espiritualismo em uma prática libertadora com a organização das CEBs.
IHU On-Line – Um dos métodos empregados por Cecchin é o das fichas catequéticas, visando à catequização para libertação e o chamado catecismo popular. Em que consistem esse método e esses conceitos?
Odilon Kieling Machado – O método estava ligado à conscientização popular para uma nova visão cristã oriunda das fichas catequéticas e sua visão libertadora. As mudanças tiveram que romper com a visão anterior da maioria dos novos moradores baseada em um espiritualismo ritualista individual para uma visão coletiva da prática cristã. Esta mudança não deixou de valorizar as devoções populares e a participação em romarias, típicas de um cristianismo popular, mas agora dentro de novas ações e práticas.
A autonomia dos sujeitos históricos e seu protagonismo fizeram parte desta nova visão cristã e suas ações sociais. Neste sentido, a nova metodologia estava ligada a uma formação dentro do método ver, julgar e agir oriundo da antiga Ação Católica, enquanto movimento de leigos cristãos com assessoria dos agentes religiosos.
Participação do irmão Antônio Cecchin [de boné, ao centro] na construção da CEB e no movimento comunitário no bairro Mathias Velho, ao lado do bispo auxiliar de Porto Alegre Dom Antônio Cheuiche. | Fonte: Acervo Matilde Cecchin
IHU On-Line – Recentemente, o Papa Francisco instituiu a catequese como um Ministério. Como analisa essa mudança?
Odilon Kieling Machado – Esta mudança tende a valorizar a catequese e a formação de leigos católicos como protagonistas no conhecimento e ação dos valores evangélicos tão necessários em nossa sociedade. Esta ação do Papa Francisco faz parte de um pontificado baseado em uma igreja que deve estar inserida na sociedade.
IHU On-Line – Em que o documento Motu proprio, que transforma a catequese em Ministério, se aproxima das perspectivas e formas de atuação catequéticas do irmão Cecchin?
Odilon Kieling Machado – Esta ação do Papa Francisco faz parte de um pontificado baseado em uma igreja em saída que deve estar intrinsecamente ligada à sociedade, onde os valores do Evangelho devem ser como sal na terra e fermento na massa. Neste sentido o projeto franciscano e samaritano do Papa tem uma consonância com a atuação do irmão Antônio Cecchin.
IHU On-Line – A catequese ainda é e deve ser a primeira entrada na Igreja Católica em contextos de periferias, como o do bairro Mathias Velho?
Odilon Kieling Machado – Dentro de um processo histórico, cultural e religioso, creio que possa ser não só uma entrada, mas a base na formação comunitária nas periferias, como ocorreu no bairro Mathias Velho. É importante destacar que o caráter ecumênico enquanto religiosidade e o humanismo na ação comunitária fizeram parte da organização do bairro Mathias Velho e podem ser também importantes para uma ação semelhante junto às periferias das cidades.
Antônio Cecchin com sua irmã Matilde Cecchin em um batizado no bairro Mathias Velho. Cultivo da fé junto ao povo, como base nos valores cristãos |Fonte: Acervo Matilde Cecchin
IHU On-Line – Quais os desafios dos catequistas de nosso tempo? Como qualificar aquelas pessoas que já vêm há anos prestando esse serviço?
Odilon Kieling Machado – Devemos sempre valorizar este serviço essencial para uma vida de fé, mas, ao mesmo tempo, creio que é necessária uma renovação em termos de conteúdos e ação pedagógica, além de uma visão libertadora da fé. Cursos bíblicos e pastorais são fundamentais neste processo ligando fé e vida para uma autoformação dos catequistas do nosso tempo, que possa fazer um trabalho de conhecimento do cristianismo católico e ao mesmo tempo construir o Reino de Deus.
IHU On-Line – Qual a atualidade e pertinência de movimentos organizativos como as CEBs no atual contexto brasileiro?
Odilon Kieling Machado – Dentro do atual contexto brasileiro, movimentos organizativos como as CEBs em termos eclesiais ligados aos movimentos sociais devem estar presentes na nossa sociedade. Deve-se ter uma visão de base em que os pobres não são objetos da caridade como visão assistencialista, mas como sujeitos da história e protagonistas de uma nova sociedade baseada na solidariedade e justiça social.
IHU On-Line – Nas últimas décadas, podemos considerar que houve um enfraquecimento das CEBs. Por quê? E como está aquela CEB do Mathias Velho hoje?
Odilon Kieling Machado – As CEBs continuam presentes no bairro Mathias Velho, onde a Associação de Moradores tem um espaço mais significativo nas lutas populares. As CEBs e a Igreja enquanto ação na base perderam parte de sua força, a partir de novas diretrizes de uma visão mais conservadora durante o papado de João Paulo II e Bento XVI. A capilaridade hierárquica da Igreja atingiu o trabalho de base na periferia, onde este espaço foi preenchido por uma visão tradicional e fundamentalista da fé.
IHU On-Line – Hoje, o neopentecostalismo tem ocupado espaços nas periferias, mesmo espaço de atuação das CEBs. Atualmente, podemos conceber que o pentecostalismo compreende melhor a realidade das periferias do Brasil?
Odilon Kieling Machado – Este é um fenômeno atual bastante significativo, em grande desenvolvimento, em que o neopentecostalismo acabou substituindo de uma maneira significativa o trabalho das CEBs. Com certeza o neopentecostalismo hoje está não só presente como tem uma ação assistencialista significativa nas periferias do Brasil.
A possível retomada de espaços da Igreja Católica na realidade da periferia do Brasil como foram as CEBs vai depender de uma nova ação dos católicos em um trabalho formativo de base que possa ter uma ação prática junto à população.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Odilon Kieling Machado – Gostaria de destacar a importância do trabalho profético desenvolvido pelo irmão Antônio Cecchin na organização do movimento comunitário no bairro Mathias Velho, em Canoas, a partir de uma catequese libertadora, que serviu de base para a formação das Comunidades Eclesiais de Base. Até hoje, irmão Antônio é conhecido no bairro como o Abraão das CEBs, um verdadeiro irmão entre os irmãos.