04 Janeiro 2013
Ao recordar a perseguição sofrida durante o regime militar, o irmão marista considera que a Igreja de caráter conservador é ainda hegemônica, não só na América Latina como no mundo inteiro. “A Igreja é campeã do conservadorismo porque está incorrendo numa ignorância invencível”, lamenta.
Confira a entrevista.
Passados tantos anos do final do regime militar no Brasil, ainda restam muitas dúvidas e pendências a serem esclarecidas. Entre elas, o motivo pelo qual o irmão marista Antônio Cechin teria sido preso pelos militares, no ano de 1969, pela primeira vez. “Até hoje ninguém me deu as razões”, conta ele, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. No entanto, continua, “examinando fato por fato da conjuntura que precedeu minha prisão, minha convicção é que está ligada à militância cívico-religiosa que desenvolvia como Adjunto Regional da Juventude Estudantil Católica (JEC) do RS, junto ao Movimento Estudantil brasileiro e como coordenador do setor de Catequese da CNBB”. Segundo ele, as fichas catequéticas foram o fato divisor de águas em sua vida. “Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido”, recorda.
E sobre a Igreja, Cechin constata que, como ela não é iniciada em Marx, nem minimamente na pedagogia de Paulo Freire envolvendo os pobres e oprimidos, nunca aprendeu a fazer análise de classe. “Não consegue também fazer uma autêntica opção pelos pobres. Em seus trabalhos pastorais só sabe fazer assistencialismo. Seus religiosos e seus agentes de pastoral atuam sem entusiasmo porque não conseguem sentir-se fazendo história, transformação do mundo. Não consegue ler nos fatos e acontecimentos do cotidiano o Deus cristão que ‘Caminha conosco e à nossa frente’”.
Antônio Cechin (foto) é irmão marista, graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Trabalha como agente de Pastoral em diversas periferias da região metropolitana de Porto Alegre, sendo também assessor de Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande do Sul, de catadores e de recicladores. Desempenha ainda a função de coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do Regional Sul III da CNBB. Escreveu Empoderamento Popular: Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010). Publica periodicamente artigos nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como e por que o senhor foi preso pelos militares durante a ditadura?
Antônio Cechin – No dia 9 de novembro de 1969, às 16h, quatro soldados portando armas batem à porta do apartamento-sede de nossa Equipe de Catequese com o nome de “Centro Juventude de Cultura”, localizado na rua Cel. Vicente, 444 n. 130, 13o andar. O local também servia como residência. Na ocasião eu estava hospedado aí, à espera de uma providência de meu superior provincial junto ao governador do estado, Coronel Euclides Triches, ou junto ao Secretário de Segurança, Coronel Jayme Mariath. Essa providência a tomar junto a essas duas autoridades havia sido ordenada por Dom Vicente Scherer, que, naqueles dias, estava realizando visitas pastorais na região de Vila Vasconcelos, Tapes e Camaquã.
Os esbirros da ditadura buscavam a mim embora tenha havido, num primeiro momento, uma pequena confusão porque, em vez de irmão, falaram em padre Antônio. Estava descansando àquela hora o Padre Schen, hóspede nosso, de origem holandesa, que fazia junto ao Colégio Cristo Rei, em São Leopoldo, o Curso “Christus sacerdos” de formadores de seminaristas de todo o Brasil. Ao pronunciar de maneira bastante semelhante o meu nome, ocorreu essa confusão inicial. Matilde, pela janelinha da porta, tenta estabelecer um diálogo civilizado com eles. Sob a ameaça de arrebentarem a porta, ela abre. Eles entram e imediatamente levantam as armas em minha direção.
Em casa, naquele exato momento estávamos junto ao rádio acompanhando a bênção aos doentes na Romaria da Medianeira de Santa Maria, nossa cidade natal. Lá nossos pais, desde os anos 1930, quando começou a devoção à Medianeira, nunca deixaram de participar. De manhã cedo daquele mesmo dia, o governador do Estado, o militar Euclides Triches, rodeado de todo o secretariado, havia seguido para, em meio da multidão de fiéis peregrinos, ajudar a carregar o andor com a imagem da santa na procissão. Na capital ferroviária do estado, Santa Maria, o mesmo governo que aqui nos prendia, a mim e a Frei Betto, no mesmo dia 9 de novembro, nos encarcerava.
Junto à saída do edifício residencial, pude ver na rua e nas esquinas do entorno um grande aparato militar.
O porquê da minha prisão
Até hoje ninguém me deu as razões. Examinando, porém, fato por fato da conjuntura que precedeu minha prisão, minha convicção é que está ligada à militância cívico-religiosa que desenvolvia como Adjunto Regional da Juventude Estudantil Católica (JEC) do RS, junto ao Movimento Estudantil brasileiro e como coordenador do setor de Catequese da CNBB.
IHU On-Line – Quais as razões da sua segunda prisão?
Antônio Cechin – A segunda prisão aconteceu no dia 26 de abril de 1972, três anos depois da primeira. Causa imediata desta foi a hospedagem que demos ao advogado luterano John Wright, de ascendência norte-americana. É fundador do sindicato dos pescadores do estado de Santa Catarina. Como deputado estadual daquele mesmo estado havia sido cassado pela ditadura. Vivia em situação de clandestinidade. É irmão do pastor Jayme Wright, que, juntamente do arcebispo de São Paulo, o cardeal Arns, organizou o dossiê Brasil Nunca Mais, fichando todos os torturadores e torturados deste país.
John bateu à nossa porta, nos solicitou pousada por alguns dias. Como éramos todos muito ocupados e trabalhávamos em lugares disseminados pela cidade, fizemos com ele o que costumávamos fazer com todos nossos hóspedes: emprestamos uma chave para sair e entrar sempre que quisesse.
Costumava sair de casa ao anoitecer e retornava altas madrugadas, antes do alvorecer. Durante o dia claro, descansava. Com ele até chegamos a fazer reuniões de análise de conjuntura, com a Equipe de JEC Regional da qual eu era adjunto para todo o RS e cuja sede, nesses momentos difíceis, era nosso apartamento 130, na Cel. Vicente, centro da capital. Soubemos depois que John havia sido preso na rua e a polícia militar, de posse da chave de nosso apartamento que encontrou nos bolsos dele, veio direto à nossa casa, com uma sede danada rumo ao pote. Prenderam-me imediatamente de novo. Chegando ao DOPS, entrei para a tortura de imediato: choques elétricos e ultrassons, a fim de que eu desse nomes de subversivos. Não aguentei. Acabei perdendo o controle de minhas faculdades mentais ou, como costuma dizer o povo, “embirutei”. A última lembrança que guardei antes de enlouquecer foi a de um médico que controlava o meu pulso enquanto me davam as descargas.
IHU On-Line – Na época, o senhor trabalhava com as fichas catequéticas no processo de evangelização. Essa foi uma das razões pelas quais foi preso? Por que seu trabalho era considerado subversivo e como a Igreja interpretava as fichas catequéticas?
Antônio Cechin – As fichas catequéticas foram o fato divisor de águas de minha vida que pode ser separada em duas partes inteiramente diferentes uma da outra. Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido. A cruz fez com que nos abraçássemos para todo o sempre numa comunidade que, segundo o Nazareno, sempre começa com dois. Não é outra a significação do calvário do Mestre Jesus: cimentou para sempre uma comunhão definitiva dele conosco e nós todos com o Deus Trindade que é Amor.
Por decreto militar, na última semana do mês de março de 1969 comemorava-se pela 5a vez o golpe cívico militar acontecido no dia primeiro de abril de 1964. Os ministros militares de plantão em Brasília se revezavam, cada qual representando o seu ministério próprio, ocupando a televisão por uma hora, tecendo loas à revolução “redentora”. No dia que tocou ao coronel Jarbas Passarinho, ministro da pasta da Educação, ficamos estarrecidos em casa vendo-o brandir com as mãos o volume de fichas nossas, próprias para a idade dos pré-adolescentes, dos 12 aos 14 anos, com o título de Rumo à Terra Prometida. Folheava o livro, citando frases, deteve-se em duas palestras preparadas para o educador, para, em seguida, ler as atividades preparadas para os catequizandos de duas catequeses que tivemos o cuidado de transcrever por inteiro no livro“Empoderamento Popular” (CECHIN, Empoderamento Popular: uma pedagogia da libertação. Porto Alegre: Estef, 2010, p. 229 a 261). Considerava tudo comunismo. Volta e meia repetia que os temas eram altamente subversivos, destinados à comunização do Brasil a partir dos colégios, da educação. Pior do que isso. Em tom de ameaça referia-se aos colégios católicos como os principais disseminadores dessas ideias, exatamente os que recebiam polpudas subvenções do governo nacional, que eram usuários desse tipo de literatura de lavagem cerebral.
Cerco às fichas catequéticas
A celeuma levantada com gente a favor de uma catequese libertadora ensaiando seus primeiros passos em nossas fichas, e de gente contra, atravessou o Brasil de sul a norte e de leste a oeste. Foi a luta de classes totalmente desatada nos grandes meios de comunicação: jornais, revistas, rádios e televisão.
Fomos violentamente atacados por notáveis do país, principalmente do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, de Brasília, de Porto Alegre e de outros lugares. Educadores, antropólogos, psicólogos, etc., todo mundo se sentia bem à vontade para comentar o assunto referente à coleção “Educação Nova”, que englobava todas as nossas séries de fichas catequéticas destinadas a pré-adolescentes, adolescentes e jovens. O famoso teatrólogo Nelson Rodrigues, em diversos artigos, denunciou nossas humildes fichinhas como capazes de incendiar o Brasil. O catolicíssimo escritor Gustavo Corção, considerado fervoroso cristão leigo, também nos brindou com ataques virulentos. Dom Estêvão Bettencourt, monge beneditino do convento do Rio de Janeiro também, através de sua revista “Pergunte e Responderemos”.
A Inspetoria Seccional do Ministério da Educação baixou uma ordem proibindo o uso de nossas fichas. Logo que isso aconteceu, Dom Vicente Scherer, em nome de todo o episcopado dos estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, saiu a campo pela imprensa defendendo a autonomia da Igreja no que se refere a material para aulas de religião. Não era para menos, ainda mais que a Arquidiocese havia submetido nossas catequeses ao crivo de um dos maiores teólogos, professor do Seminário de Viamão. Dom Edmundo, bispo auxiliar, depois do “nada a opor” (nihil obstat) do teólogo Carlos Adamatti, aprovara a impressão através da assinatura do seu “imprima-se” (imprimatur).
A polícia política começou a percorrer todos os colégios em que as fichas estivessem sendo usadas, tais com os Colégios Anchieta, Sévigné, Bom Conselho. No Rio de Janeiro, o Colégio Santo Inácio, entre vários outros. Bateram também aqui em casa e recolheram contra um recibo de apreensão 15 pacotes de umas 150 fichas catequéticas em cada um.
Por uma questão de fidelidade ao conteúdo e ao método da Catequese Libertadora – leitura dos Sinais dos Tempos –, tínhamos que ajudar a juventude a ler presença de Deus e de seu projeto para a humanidade, na transparência dos fatos do cotidiano. Para tanto, nos servíamos das canções do gosto juvenil do momento e ao mesmo tempo ricas em seus textos e músicas, das notícias de jornal, das poesias da atualidade, etc. Fabricávamos uma ficha catequética por semana. Depois de impressa em máquina impressora offset que tínhamos em casa, eram remetidas semanalmente aos nossos assinantes.
Na prática, de 1o de abril a 9 de novembro daquele mesmo ano de 1969 em que fui preso, não houve nenhum dia em que algum acontecimento, manchete ou artigo relativo a nossas pobres fichas deixassem de aparecer para alegria de uns e para chacota ou escândalo de outros. Passamos por pobres e ignorantes em termos de catequese, de teologia e até mesmo em termos de Fé Cristã, quando na verdade tínhamos, os dois, um longo tirocínio nos trabalhos de evangelização e catequese, escudados até com cursos de especialização no assunto realizados na França: Matilde na cidade de Estrasburgo, e eu, em Paris, no Instituto Superior de Pastoral Catequética.
IHU On-Line – Qual foi a posição da Igreja durante a ditadura? Hoje se fala que a Igreja denunciava militantes que eram contra o regime. É verdade?
Antônio Cechin – A Igreja conscientizada, ainda que até hoje minoritária no Brasil e no continente, tomou posição firme em favor das nossas fichas catequéticas, saudando-as como o novo em catequese, para uma juventude sempre irrequieta e que quer participar com todo o seu entusiasmo nos destinos do país. Fazia com desassombro críticas fortes ao ministro Passarinho chamando a atenção sobre a liberdade religiosa do Brasil e que aulas de religião é assunto que compete aos bispos e à CNBB, não aos governos.
A Igreja não conscientizada, a da maioria de nossa população, constituía-se daqueles que já vinham participando de uma frente nacional contra o comunismo, muitos deles mantinham-se silenciosos, mas muito constrangidos com o imbróglio que nossas fichas criaram. Viam diante deles a prova das artimanhas dos comunistas começando a se infiltrar nas fileiras da fé cristã, enganando gente incauta. Havia sido pela mesma época de preparação para o Golpe de Estado, a Igreja da TFP (Tradição, Família e Propriedade), do movimento nacional do “terço em família” liderado pelo padre norte-americano de nome Peyton. Esse modelo de Igreja conservadora, imperante no mundo desde a era do imperador Constantino, sempre permaneceu ligada à classe dominante. É a chamada Igreja da cristandade, historicamente amancebada com o poder e com a classe dominante.
Em meu entender, essa Igreja de caráter conservador é ainda hegemônica, não só na América Latina como no mundo inteiro. Acho que o cardeal Martini, de saudosa memória, quando disse que a Igreja Católica está duzentos anos atrasada, tinha em mente os duzentos anos atrás em que viveu o grande cientista sociólogo Marx. A Igreja é campeã do conservadorismo porque está incorrendo numa ignorância invencível. Como ela não é iniciada em Marx, nem minimamente na pedagogia de Paulo Freire envolvendo os pobres e oprimidos, nunca aprendeu a fazer análise de classe. Não consegue também fazer uma autêntica opção pelos pobres. Em seus trabalhos pastorais só sabe fazer assistencialismo. Seus religiosos e seus agentes de pastoral atuam sem entusiasmo porque não conseguem sentir-se fazendo história, transformação do mundo. Não consegue ler nos fatos e acontecimentos do cotidiano o Deus cristão que “Caminha conosco e à nossa frente”. O próprio Jesus Cristo nos preveniu em relação aos “erros invencíveis” quando exclamou: haverá gente que vai vos matar, pensando fazer um bem. Por isso, no alto da cruz, pouco antes de morrer, Ele próprio, Jesus moribundo, exclamou: Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!
Em relação às fichas, não faltaram também algum bispo aqui, algum padre acolá, uma ou outra instituição de nossa Mãe Igreja a desancar nossas fichas, fazendo coro comum com os inimigos militares golpistas e assemelhados. Porém isso não nos assusta muito. Dom Pedro Casaldáliga, nosso bispo poeta e profeta, costuma afirmar que nós, da Igreja da libertação, somos perseguidos ao mesmo tempo no templo e no pretório. Aliás, isso aconteceu primeiro com nosso Mestre, o meigo Jesus de Nazaré.
IHU On-Line – Dom Vicente Scherer interveio na sua prisão? Qual era a posição dele?
Antônio Cechin – Na qualidade de Adjunto de JEC e Coordenador da Equipe de Catequese Regional da CNBB, tive sempre o cuidado de manter minha amizade com o cardeal Dom Vicente Scherer, um dos hierarcas mais poderosos do Brasil a ponto de até hoje, no Rio Grande do Sul, não termos tido nunca mais um segundo cardeal em alguma de nossas dioceses ou arquidioceses. Cada fim de ano eu solicitava uma audiência. Depois de uma síntese dos trabalhos mais importantes realizados durante o ano findo, colocava-o muito à vontade para me dizer tudo o que desejasse, porque eu gostava que me criticassem e avaliassem em meus trabalhos, particularmente em assunto tão importante como a evangelização. O máximo que Dom Vicente me dizia era: “Olha que você não tem um curso completo de Teologia. Como religioso eu ponho a mão no fogo em favor de ti. Agora, você tem algumas ideias aí com as quais eu não concordo”. Várias vezes Dom Vicente me convidou a ser padre. Dizia: no dia em que decidires ser sacerdote, eu te ordeno imediatamente sem necessidade de estudar teologia.
Dom Vicente, em algumas edições de “Voz do Pastor”, que distribuía à imprensa falada e escrita todas as semanas, atacou a linha de nossas fichas, porém sem nunca citar os autores.
Quando fui preso pela primeira vez, já era noite escura de 9 de novembro, depois de sair do apartamento o diretor do DOPS, carregado de livros considerados subversivos e de ter vasculhado toda a nossa biblioteca, inclusive todas as folhas avulsas que pode encontrar, até mesmo a cesta de lixo, em busca de papeizinhos rasgados que pudessem lhe dar alguma pista de pessoas e endereços que talvez lhe fossem úteis para justificar o encarceramento, Matilde, minha mana, correu à Cúria ao encontro de Dom Vicente. Dois dias depois, o Coronel Mariath, através de um guarda, me foi retirar da prisão, me colocou no banco traseiro do automóvel do próprio secretário de segurança. Rumamos para a cúria metropolitana. Lá me entregou pessoalmente ao cardeal como quem diz: está aqui alguém que não sabe nem mesmo se governar a si mesmo. Foi, pelos menos, a impressão com que fiquei diante do jeito da entrega. O amigo Dom Vicente não me falhara.
Dom Vicente e a falta de Marx
Dom Vicente, eu sentia, tinha uma extrema bondade. Deixava a gente trabalhar. Ele não podia mesmo entender nossa militância em JEC e na Catequese Libertadora. Era vítima daquilo que se costuma chamar de ignorância invencível. Não tivera iniciação a Marx. Aliás, para mim ele era em tudo semelhante ao atual papa Bento XVI, que também, segundo o Leonardo Boff, não conhece absolutamente nada de Marx, apesar de este grande cientista social ser do mesmo país do papa, a Alemanha. Em Marx três coisas me parecem fundamentais. No livro “O Capital” tomamos consciência da existência de uma filosofia ou metafísica, de um instrumento global de análise da realidade, e de um conjunto de ideias-força a nos ajudar a transformar o mundo. No presente, a ultrapassar esse injusto sistema que é o capitalismo.
Pessoalmente eu me faço, há muitos anos, a pergunta: por que as Congregações Religiosas em sua grande maioria integraram tão bem em suas vidas de todos os dias as intuições do cientista psicólogo Freud e não conseguiram ainda assimilar absolutamente nada de Marx, nem mesmo a análise de classe? Resultado: nas periferias em que trabalho há mais de 30 anos, as Congregações Religiosas como tais, tanto masculinas como femininas, salvo alguma raríssima exceção de caráter individual, são inteiramente assistencialistas.
IHU On-Line – Como se sente tendo sido vítima de sofrimento do regime militar, num período sombrio da nossa história, das lutas pela construção de um Brasil mais justo e democrático?
Antônio Cechin – Ter sido preso e torturado, ao lado de jovens de meu próprio grupo de JEC que sofreram infinitamente mais torturas do que eu, tais como pau de arara e piores ainda, durante dias e dias, demonstraram uma coragem de dar inveja. Eles, na flor da idade, sem nunca terem vivido a ascese da vida religiosa como eu, e apesar de todos os sofrimentos não terem dedado nenhum dos amigos militantes, é de todo admirável. Morrendo eles, a nossa mãe-Igreja teria que canonizá-los como autênticos mártires pela Justiça em favor de um mundo de irmãos. Todos quantos não passaram pela tortura explícita, enfrentando apenas sofrimentos do seu cotidiano, só podem aspirar, quando muito, a serem, como a maioria dos santos, apenas confessores, nunca mártires. O santo que é declarado confessor “derrama não todo seu sangue de chofre, mas apenas uma gotinha dele em cada um dos dias de vida terrestre”, nada de sofrimento e dor em grau heroico.
Deus escreve direito por linhas tortas, diz o ditado. A ditadura militar indiretamente deu oportunidade a que construíssemos um Brasil melhor, com ênfase também num “Brasil nunca mais” com torturas e torturador. Possibilitou a nós também a ditadura, uma guinada na Igreja na direção dos pobres com as Comunidades Eclesiais de Base, a Catequese Libertadora, a Teologia da Libertação com seu método Ver-Julgar-Agir. Também provocou o educador Paulo Freire a inventar um método de educação como prática da Liberdade, que é uma pedagogia especial dos oprimidos. A mim, pessoalmente, a prisão me catapultou imediatamente para trabalhar na ponta contrária em que eu trabalhava. Do meio dos ricos para o meio das categorias mais pobres do meu Brasil: carroceiros, carrinheiros, catadores e Povo da Rua em geral. A “redentora” me fez cair na real: acabei descobrindo que Deus só tem um lado que é o lado dos pobres.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do trabalho que vem sendo feito pela Comissão Nacional da Verdade?
Antônio Cechin – Avalio os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade como um amadurecimento do povo brasileiro que, depois de muitos avatares, transcorridos mais de 40 anos do início dos tempos de chumbo, conseguiu acertar o caminho da busca da verdade total sobre as trevas que escondiam os horrores que foram praticados no período mais cruel da nossa história. Conseguimos aprovar uma ferramenta apta a nos desvendar os mistérios do mal, a fim de que não mais se repita no futuro. Caminhamos todos rumo a um “Brasil nunca mais!”
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Antônio Cechin – A ditadura civil-militar face aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade nos divide em duas categorias antagônicas: torturadores, de um lado, de índole nazifascista e, de outro lado, torturados, vítimas totalmente indefesas e à mercê do que a nação produziu de pior em termos de pessoas, instituições e principalmente de cultura.
Ouvi várias vezes da boca do mestre Paulo Freire a frase: a cultura estadunidense é a mais necrófila do mundo, isto é, a civilização mais amiga da morte que o mundo inteiro produziu. O cardeal Arns, arcebispo de São Paulo, reuniu em torno de si uma equipe, em plena vigência da ditadura sob o mote “Tortura nunca mais!”. Cumpriram as Igrejas do Brasil, como dignas continuadoras do Torturado por excelência da história, que foi o Homem-Deus Jesus de Nazaré para todas as gerações presentes e futuras a sua missão em relação à indignação ética de que possa se repetir a situação da Terra virar Inferno.
Não me falta vontade de procurar os membros que constituem a Comissão da Verdade aqui em nosso estado do Rio Grande do Sul a fim de sensibilizá-los para que pesquisem sobre o conspurcamento da nossa cultura sul-rio-grandense. O farroupilhismo foi um grande aliado da ditadura. Foi um fiel afiliado-apoiador dos arreganhos dos torturadores. Nossa cultura de raiz guarani-missioneira entortou de vez nos mais de 20 anos da ditadura. Os militares deram ordem para que em cada quartel funcionasse um Centro de Tradições bem organizado.
O forte apoio ao MTG, irrigado com polpudas verbas, deu a esse farroupilhismo de araque um caráter tão avassalador desde o ano de 1964, que nossa cultura aqui dos pampas entortou de vez. Pessoalmente, hoje, quando me perguntam se sou gaúcho respondo inexoravelmente: “Não! Declaro-me guarani-missioneiro!”.
É uma pena que tenha gorado a tentativa da Câmara de Vereadores de Porto Alegre de substituir a bravata e a vilania dos grandes fazendeiros do farroupilhismo pelo Levante da Legalidade, que postergou por alguns anos o Golpe da Ditadura Militar, quando nossos edis entraram com um projeto de lei para mudar o nome da entrada da cidade de Porto Alegre. Em vez de Avenida Castelo Branco chamar-se de Avenida Levante da Legalidade, que nos honra sobremaneira perante as revoluções populares da humanidade inteira.
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Fichas catequéticas, a prisão e a tortura. Entrevista especial com Antônio Cechin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU