Para o pesquisador, lógicas capitalistas e meritocráticas explicam por que a classe média rejeita a ascensão política da classe trabalhadora
O professor Sávio Cavalcante propõe que olhemos além das análises que ‘culpam’ a classe média brasileira pela ascensão de Jair Bolsonaro e de perspectivas conservadoras que flertam com o fascismo. Ele também considera que a classe média não é uma massa homogênea e que há diferenças nesse grupo social. “Falar sobre as classes médias brasileiras é, ao mesmo tempo e necessariamente, discorrer sobre um capitalismo dependente, altamente desigual e excludente, formado originariamente num modelo de sociedade e por uma acumulação de riqueza baseados no trabalho escravo e que se moderniza no século XX sem alterações estruturais mais amplas”, contextualiza, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, isso “explica o fato de regimes democráticos serem mais a exceção do que a regra ao longo dessa história”.
Sávio ainda destaca que “a ideologia meritocrática de fundo da classe média brasileira se vale tanto dos mecanismos impessoais do mercado e do Estado capitalista quanto dos mecanismos pessoais de mando para se reproduzir enquanto classe”. Isso, em alguma medida, insufla a ideia de nós, que trabalhamos e merecemos, contra eles, que não fizeram por merecer. É uma visão que mistura o conservadorismo com um liberalismo bem parcial, preso nos interesses próprios da classe. Por isso, segundo o professor, “a classe média apresenta uma rejeição de princípio à ascensão, na política, de grupos que representam interesses da classe trabalhadora ou que tenham líderes populares”. “Ainda que num contexto distinto de outros momentos da história política brasileira, as resistências às mudanças se valeram da apologia da repressão e da violência para conter projetos de inclusão”, completa.
Assim, analisa que “o conservadorismo liberal foi a reação política da classe média ao reformismo fraco do PT. O argumento clássico dos conservadores da não uniformidade humana foi usado para desqualificar a ascensão de renda e de consumo dos trabalhadores pobres e promover barreiras simbólicas de fechamento de seus espaços. O programa neoliberal de redução da presença do Estado na economia e a defesa de uma ‘gerência técnica’ da política foram usados como panaceia para o fim da corrupção”.
Sávio Cavalcante (Foto: USP)
Sávio Cavalcante é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Possui doutorado e mestrado em Sociologia pela Unicamp. Entre suas publicações, destacamos os livros Últimos escritos econômicos: anotações de 1879-1882 de Karl Marx (São Paulo: Boitempo, 2020) e Sindicalismo e privatização das telecomunicações no Brasil (São Paulo: Expressão Popular, 2009).
IHU On-Line – Como compreender a classe média brasileira?
Sávio Cavalcante – As classes médias brasileiras, assim como as demais classes, camadas e frações de classe, precisam ser compreendidas à luz dos processos políticos, econômicos e ideológicos que caracterizam a formação e consolidação do capitalismo e do Estado nacional (burguês) no país. Isso significa, principalmente, considerar:
a) a força estrutural de pactos conservadores entre as frações da classe dominante que visam a garantir a estrutura fundiária e a preservação da tradição e da ordem nos processos de mudança e, quando preciso, lançam mão do modelo autocrático para conter as resistências que os períodos democráticos permitem emergir com mais força;
b) a articulação não contraditória de formas de exploração patriarcais (“arcaicas”) e impessoais (“modernas”) do trabalho produtivo e reprodutivo, seja no campo ou nos centros urbanos;
c) as fases de retração e ampliação de desenvolvimento industrial, sem Estado de Bem-estar social, associadas a interesses imperialistas com apoio interno em frações burguesas e na classe média, com repercussões significativas nas práticas culturais; e
d) a formação de uma classe média urbana que não se inicia num ponto de partida racialmente neutro, ou seja, uma pequena propriedade e postos de trabalho assalariado nas burocracias de empresas e Estado que recrutam majoritariamente a população branca.
Em perspectiva sociológica mais ampla, falar sobre as classes médias brasileiras é, ao mesmo tempo e necessariamente, discorrer sobre um capitalismo dependente, altamente desigual e excludente, formado originariamente num modelo de sociedade e por uma acumulação de riqueza baseados no trabalho escravo e que se moderniza no século XX sem alterações estruturais mais amplas, o que explica o fato de regimes democráticos serem mais a exceção do que a regra ao longo dessa história.
O fato é que análises de classes pressupõem necessariamente uma teoria social mais ampla, que irá fornecer, explícita ou implicitamente, problemas, conceitos e teses fundamentais que servem como ferramentas analíticas para se analisar a reprodução e as transformações sociais. Minha análise está informada pela teoria marxista, que oferece uma explicação materialista aos processos sociais. Ao partir desta teoria para compreender não apenas a classe média, mas qualquer classe ou fração/camada de classe, é preciso se perguntar antes quais são os diferentes modos pelos quais as pessoas encontram alternativas materiais de sobrevivência e os horizontes normativos coletivamente construídos (ideologias) mais correspondentes a essas formas. Um pressuposto desta teoria social é o de que sociedades capitalistas, embora se apresentem como justas e legítimas, são baseadas na exploração do trabalho produtivo e reprodutivo. Como consequência, não é possível pressupor um equilíbrio constante entre interesses que tendem a se contrapor, ainda que essa luta assuma formas muito complexas nas disputas políticas e não se reduzam a “capital x trabalho”.
No século XX, o crescimento absoluto ou relativo de assalariados não-manuais (com postos de trabalho, práticas culturais e identidades políticas distintas do operariado industrial) foi tomado por muitas correntes liberais como prova do anacronismo da teoria marxista. Considero esse diagnóstico equivocado, ainda mais porque ignora várias abordagens marxistas que lidaram de maneira criativa e com repercussões analíticas variadas a respeito desse tema. Partindo da teoria marxista, a classe média pode ser compreendida a partir do tipo de relação que seus agentes apresentam com o modo de produção capitalista. Como essa relação pode conter determinações qualitativamente distintas, é possível pensá-las no plural, como classes médias, ou diferenciar a pequena burguesia da classe média assalariada (alta ou baixa) pelas seguintes razões.
A pequena burguesia é formada por proprietários de terra e empresas (especialmente no comércio e serviços) de pequena escala, que não possuem capital suficiente para se distanciarem do trabalho de execução. Utilizam-se, assim, membros da sua própria família ou contratam poucos trabalhadores assalariados de modo sazonal ou irregular. Há um nexo de exterioridade desses agentes com a grande empresa capitalista, da qual sofrem uma pressão apenas indireta, com a ameaça de fechamento de oportunidades de mercado em razão da concentração e centralização de capitais.
Isso repercute do ponto de vista político e ideológico num maior apego à propriedade e a medidas de segurança – como estão na linha de frente dos pequenos negócios, o sentimento de ameaça à vida é mais direto. A defesa moral da instituição família, de certa forma transversal às classes sociais brasileiras, é também, para a pequena burguesia, a defesa da unidade doméstica como unidade produtiva.
A classe média assalariada, por sua vez, é produto direto do desenvolvimento do modo de produção capitalista e apresenta um nexo de interioridade com a empresa capitalista e Estado burguês moderno. Tanto a grande empresa capitalista na produção (agrícola e fabril) e na circulação de mercadorias (comércio, bancos e serviços em geral) quanto o Estado exigem formas de organização burocrática do trabalho.
É possível dividi-la em duas camadas principais: a classe média alta, constituída por trabalhadores intelectuais (mais propensos a atividades de concepção) com maior qualificação técnica e autonomia em suas atividades, os quais ocupam os quadros médios e superiores da estrutura burocrática nas empresas e no Estado. E uma classe média baixa constituída por assalariados não-manuais em funções técnicas, administrativas de serviços sociais, que exigem menor qualificação técnica e apresentam níveis reduzidos de autonomia em suas atividades.
O apego à ideologia meritocrática é o efeito mais característico de sua posição de classe. Esta é uma ideologia derivada da ideologia de valorização (merecimento em geral) do esforço e da disciplina de trabalho, presente em todas as classes, mas não idêntica a ela. Com a existência de aparelhos educacionais abertos a todas as classes, a ideologia meritocrática prioriza o desempenho e as habilidades diferenciados na trajetória educacional como forma de legitimar uma desigualdade justa entre posições de poder e ganhos financeiros desiguais entre atividades socialmente vistas como intelectuais e manuais.
Por isso, há uma propensão à defesa genérica e formal da “igualdade de oportunidades” e da manutenção das “regras do jogo”, pois são as formas de recrutamento formalmente universais e impessoais (por concursos, no Estado, e por sucesso, no mercado) que garantem a legitimidade de suas posições superiores. Como observou Nicos Poulantzas – que preferiu o termo “nova pequena burguesia” para conceituar o que chamo aqui de classe média assalariada – “não se quebram as escadas pelas quais ela imagina poder elevar-se”. Esse reforço de uma distinção entre trabalho manual e não-manual cria uma “consciência média”, segundo observou Décio Saes, distinta da consciência operária (proletariado).
É importante também considerar grupos específicos que apresentam marcas tanto da pequena burguesia quanto da classe média assalariada, como é o caso dos chamados “profissionais liberais”. São atividades tradicionais (como advogados, médicos e profissionais da saúde, jornalistas etc.) ou mais recentes (como profissionais técnicos de setores das tecnologias de informação e comunicação) que podem exercer suas atividades tanto de modo autônomo quanto vinculados às empresas ou ao Estado.
Destaco esses grupos, pois eles possuem um poder simbólico elevado e mesclam de forma complexa posições políticas e ideológicas de pequenos proprietários e da classe média assalariada. São profissionais que têm maior possibilidade de singularizar (deixar sua marca pessoal) no produto de seus trabalhos, o que os torna menos propensos a mobilizações coletivas.
IHU On-Line – Quais as questões de fundo que orientam a visão política da classe média brasileira? E qual o compromisso da classe média brasileira com a democracia, em seu conceito pleno?
Sávio Cavalcante – Tomo aqui como base a obra de Décio Saes, especialmente Classe média e sistema político no Brasil, publicada em 1984. A premissa teórico-metodológica do autor, com a qual também trabalho, é de que a classe média apresenta um caráter fracionário e heterogêneo em termos de suas visões e comportamentos políticos, ainda que, a partir disso, seja possível considerar tendências estruturais de apoio a pactos conservadores, no passado, a um “neoliberalismo de oposição” a governos que atendem interesses dos trabalhadores.
Como já indiquei, a formação da classe média assalariada não é um processo que se inicia num ponto de partida racialmente neutro. As possibilidades de constituição de uma pequena burguesia negra são praticamente inviabilizadas pelo corte conservador da abolição que não apenas impediu aos libertos formas materiais de sobrevivência alternativas às relações pessoais de mando preexistentes, como passou a criminalizar toda sorte de arranjo ou estratégia de sobrevivência autônoma.
Paralelamente, as ocupações “modernas” no Estado e nas empresas vão sendo preenchidas de acordo com uma dinâmica social longamente estabelecida e normalizada pela sociedade escravocrata. Segundo Saes, a exploração do trabalho escravo impõe uma degradação adicional ao conjunto das atividades manuais. A impessoalidade, em tese, do mercado capitalista não apaga essa marca profunda e durável que se impõe sobre os/as trabalhadores/as negros/as. Essa “linha de cor” de origem colonial explica a preservação de trabalhadores negros, especialmente mulheres, no serviço doméstico e as interdições de integração desses grupos no mercado formal que, mesmo sendo parcialmente absorvidos pelos setores industriais a partir de 1930, eram criadas inúmeras barreiras de entrada, explícitas ou não, aos postos de classe média baixa, como serviços de escritório.
É importante observar, como resultado desse processo, um aspecto que tem, necessariamente, duas dimensões complementares:
a) o gradual recrutamento da população considerada branca aos empregos de classe média ou ao acesso à pequena propriedade;
b) com uma ampla população pobre e majoritariamente negra fora do mercado de trabalho, a classe média e a pequena burguesia têm como se reproduzir familiarmente enquanto classe se valendo, além do trabalho reprodutivo das mulheres, do serviço doméstico contratado em termos não amparados pelo tipo de vínculo legal do emprego capitalista, mas sim pela reprodução de relações pessoalizadas que só se garantem pela coerção da necessidade e da pobreza de uma parcela da população.
Em suma, a ideologia meritocrática de fundo da classe média brasileira se vale tanto dos mecanismos impessoais do mercado e do Estado capitalista quanto dos mecanismos pessoais de mando para se reproduzir enquanto classe, embora seja essa esfera da impessoalidade que ela valorize para justificar a desigualdade social e racial existente no país.
Ainda sobre as questões de fundo que orientam as posições políticas das classes médias, é importante sinalizar, ainda que brevemente, as permanências de tempos muito distintos entre si. A parcela majoritária das classes médias em 1964 apoiou o golpe militar e abriu mão do compromisso com a democracia vigente. Uma das alegações principais, impulsionada por grupos militares e por diversas entidades civis, era de que seria uma reação legítima a uma suposta implantação do comunismo no país, tendo como alvo as propostas de reforma de base de João Goulart. O anticomunismo, que aglutina e organiza diversos vetores de pânico moral mais amplo (como a opressão às dissidências de gênero e sexualidade) encontrava, e ainda encontra, solo fértil nas classes médias ao provocar o temor de perda da propriedade e do que seriam medidas contra os valores tradicionais da religião, da família e da conduta moral apropriada. A reação era potencializada pelo discurso anticorrupção dirigido ao que chamavam de uma “república sindicalista” criada por Goulart.
É importante chamar a atenção a esse aspecto, por ser uma das formas de expressão da ideologia meritocrática de ontem e hoje: independentemente da legalidade ou veracidade dos casos de corrupção, a classe média apresenta uma rejeição de princípio à ascensão, na política, de grupos que representam interesses da classe trabalhadora ou que tenham líderes populares.
Primeiro, porque os cargos do Estado são vistos como reservados àqueles que, como a classe média, possuem qualificações adequadas e estariam aptos a liderar um país. O traço mais emblemático da discriminação da classe média nos processos atuais foram as constantes menções pejorativas ao fato de Lula ter perdido um dos dedos em um acidente de trabalho. A marca de origem do trabalho manual nunca é esquecida, seja pelos manifestantes antipetistas que faziam adesivos e memes com uma mão de 4 dedos dentro de um círculo com um traço na diagonal sinalizando proibição, como em uma placa de trânsito, seja por agentes pretensamente neutros da justiça como Deltan Dallagnol que, compartilhando do “humor” ideologicamente funcional à classe média, usava o termo “9 dedos” em suas conversas com outros procuradores para se referir a Lula, como demonstrou a Vaza Jato. Esse aspecto pode ser conjunturalmente atenuado – Lula, por exemplo, se esforçou, com algum êxito, para encontrar formas de se apresentar como alguém legítimo à classe média exatamente por essa marca de classe de origem, mas nunca será esquecido, como ele também descobriu da pior maneira, quem é ou não é um “dos seus”.
Segundo, porque, além desse obstáculo de ponto de partida, as campanhas de denúncia seletiva de casos de corrupção potencializam a revolta meritocrática de que alguns estão contornando as “regras do jogo”, as escadas legítimas de ascensão social. Outro traço de 1964 para ser considerado à luz dos processos contemporâneos é o fato de que muitos grupos de classe média, ainda que favoráveis à deposição forçada de Goulart, imaginavam estar comprometidos com a preservação da legalidade ao imaginarem que, tão logo fosse eliminado o suposto perigo comunista, eleições seriam realizadas.
Esse aspecto é importante por várias razões. Em primeiro lugar, indica que entre as intenções da base social de determinado movimento e os resultados dos processos há uma distância significativa. Segundo, as frações da classe dominante (burguesia) tendem a confiscar e/ou instrumentalizar a insatisfação dessa base social redirecionando-a para programas e regimes políticos que priorizam outros interesses.
Em suma, é possível e recorrente que os agentes se digam compromissados com a democracia e, ao mesmo tempo, participem dos processos que tendem a eliminá-la. Um fenômeno semelhante ocorre no Brasil desde, pelo menos, 2013. Grupos de classe média novamente mobilizados em torno da pauta anticorrupção e anticomunista minimizaram os métodos de exceção da operação Lava Jato e, no intuito de provocar uma deposição formalmente justificada pelo instrumento do impeachment, legitimaram uma forma de golpe de Estado em 2016 que contou com a participação de setores abertamente autoritários e saudosos da ditadura militar. Não viram maiores problemas em dividir as ruas com a extrema direita, alegando, com sinceridade ou não, que poderiam ser democraticamente controlados.
IHU On-Line – Qual a sua análise acerca dos movimentos da classe média brasileira na ascensão e queda de governos petistas? Como compreender a resistência de setores da classe média a temas como a redução das desigualdades?
Sávio Cavalcante – Retomo a menção à Ditadura Militar. Os aspectos que indiquei acima explicam, pelo menos em parte, o apoio ao golpe de 1964, mas seriam suficientes também para explicar o apoio ao recrudescimento da ditadura e as medidas de repressão violentas contra seus opositores, como o AI-5? A importância da obra citada de Décio Saes, entre outras razões, está no fato de promover uma explicação alternativa à tese, de fundo economicista, de que a classe média havia sido “comprada” pelo milagre econômico da ditadura e pelas as possibilidades maiores de acesso ao consumo.
Saes argumenta que essa tese não contempla a participação específica da classe média nas relações de produção capitalista que, naquele momento no Brasil, conhecia um crescimento amplo da grande indústria, especialmente a metalúrgica do setor automotivo: a necessidade de contenção das demandas trabalhistas e disciplinamento da força de trabalho que era diretamente gerenciada pela classe média. Os governos populistas que abriam espaço para demandas trabalhistas pré-64 eram vistos como incapazes de manter a rígida disciplina fabril exigida pelo fordismo periférico. Dessa maneira, os militares aparecem como a “imagem engrandecida” das práticas cotidianas da classe média, especialmente nos quadros técnicos e gerenciais dessas empresas. O autoritarismo do Estado não pode ser descurado do autoritarismo inerente às relações de produção e reprodução sociais do capitalismo brasileiro.
É este fator que explica o caráter central e implosivo da legislação social de viés universalista estabelecida na Constituição de 1988 e por políticas sociais, ainda que focalizadas, dos governos petistas, que incidem de maneira negativa tanto em termos materiais quanto culturais na classe média brasileira, com especial destaque às cotas étnico-raciais em vestibulares e concursos públicos, a ampliação da proteção laboral do trabalho doméstico e à política de assistência social (como Bolsa Família).
A primeira diminui a oferta de vagas públicas “naturalmente” preenchidas pelos filhos da classe média e afronta a ideologia meritocrática que pressupõe a neutralidade dos mecanismos de recrutamento formalmente universais. A segunda coloca o Estado e a noção de esfera pública no interior da unidade doméstica, afrontando, assim, o poder patriarcal de organização da vida. E, junto com a terceira (Bolsa Família, mas também valorização do salário mínimo), reduz a coerção da pobreza que permite encontrar oferta abundante de força trabalho para as atividades domésticas e para o trabalho reprodutivo.
No caso da baixa classe média ou da pequena burguesia cujos rendimentos não são tão distantes da média da classe trabalhadora, o efeito torna-se ainda mais forte, pois, diferentemente dos setores com renda mais elevada e posições profissionais mais estabelecidas, o medo da queda e da desclassificação são vividos como ameaças ainda mais concretas e “injustas” às políticas acima indicadas que alteraram as chances de sucesso daqueles que vencem pela inércia. A reação conservadora organizada pelo bolsonarismo tem como pano de fundo essa insatisfação típica da pequena burguesia e de parte da classe média assalariada.
A tentativa de reforma do neoliberalismo por meio do programa neodesenvolvimentista dos governos do PT também contemplou oportunidades para postos de classe média, especialmente nos setores de educação, cultura. Mas não logrou uma alteração da estrutura produtiva capaz de fornecer esses postos de trabalho em quantidade suficiente e compatível com a qualificação e expectativas da classe média.
É também impossível desconsiderar a participação dos governos petistas na própria construção social das identidades de classe. A elevação de renda de camadas da classe trabalhadora (proletariado) foi narrada e pensada como a emergência, dentro de uma problemática conceitual liberal, de uma nova classe média. Fazer do Brasil um país de classe média foi slogan do primeiro governo Dilma. Em vez de criar laços organizativos fortalecendo a noção de classe trabalhadora, ofereceu-se como projeto de vida de classe média.
Não deixa de ser uma tentativa democrática de alargamento dos espaços sociais em sociedades capitalistas, oferecendo a trabalhadores pobres algo que lhes foi negado historicamente. Mas, qual o limite da inclusão? Quanto a sociedade, a cultura e a economia brasileiras suportam em termos de ascensão social?
A entrada desses grupos em novos espaços (o caso dos aeroportos é emblemático) e em novos mercados levou a classe média já consolidada a realizar novas estratégias de distinção. Ainda que parte importante da classe média nunca tenha aderido ao “reformismo fraco” do PT, como conceitua André Singer, as tensões foram minimizadas enquanto o crescimento econômico permitiu contemplar, ainda que desigualmente, as expectativas de todos. Porém, com a estagnação, mescla-se a frustração de expectativas de trabalhadores em geral com o medo da queda da classe média tradicional.
Isso não significa que toda a classe média tenha apoiado a deposição de Dilma. Houve uma parcela minoritária que permaneceu em apoio, mas incapaz de estabelecer laços mais amplos com as expectativas do conjunto da classe trabalhadora. O fato é que a classe média “de esquerda”, ainda que aderente a projetos de reforma social, não deixa de repercutir, ainda que com sentido inverso, os efeitos da ideologia meritocrática em sua participação política e, mesmo que não intencionalmente, pela resistência à organização política coletiva, pela prioridade de certas pautas descoladas das exigências materiais imediatas, por certo voluntarismo idealista e estratégias de comunicação apenas para “os seus”, apresenta dificuldades em construir laços mais efetivos com os demais trabalhadores.
IHU On-Line – No que consiste a relação entre o bolsonarismo e a classe média brasileira?
Sávio Cavalcante – Em 2015, ao pesquisar as manifestações nas redes e nas ruas da classe média contra os governos petistas, comecei a identificar a formação e consolidação de um conservadorismo liberal. Trata-se de um programa que começou a encontrar base social a partir de 2013: crítica neoliberal ao Estado (raiz da corrupção e de toda a crise) com reação conservadora moral às políticas que buscavam contemplar as pautas de redistribuição e reconhecimento em torno das questões raciais, de gênero, sexualidade etc. Em 2014, não havia viabilidade eleitoral deste programa, reduzido à candidatura de Pastor Everaldo, mas ele estava se formando nas ruas e ganhando apoio nas classes populares.
O grito inaugural que criou um campo de sentido imprescindível para o posterior êxito bolsonarista, registrado em vídeo pelos smartphones então em expansão e compartilhados de forma orgulhosa nas redes sociais, foi o de “sem partido”, o que significava que o único partido a ser considerado seria o Brasil. O traje também foi ali definido: a camisa da seleção brasileira de futebol. Afinal, quem torceria contra “o Brasil”?
O conservadorismo liberal foi a reação política da classe média ao reformismo fraco do PT. O argumento clássico dos conservadores da não uniformidade humana foi usado para desqualificar a ascensão de renda e de consumo dos trabalhadores pobres e promover barreiras simbólicas de fechamento de seus espaços. O programa neoliberal de redução da presença do Estado na economia e a defesa de uma “gerência técnica” da política foram usados como panaceia para o fim da corrupção.
Potencializada pelos efeitos da operação Lava Jato, deflagrada em 2014, a pauta anticorrupção transformou-se, desde então, na força principal que atingiu o governo federal ocupado pelo PT e, ainda que de maneira seletiva, o sistema político-partidário tradicional como um todo. O resultado foram não apenas novas manifestações com expressiva participação da classe média a partir de 2015, que deram legitimidade ao golpe jurídico-parlamentar de 2016 e levaram ao enfraquecimento eleitoral petista em 2018, mas também à derrota da direita tradicional, especialmente o PSDB, que imaginava ser beneficiada em algum momento e que passou a não ser mais vista como alternativa segura à derrota definitiva – ou “eliminação” – do PT.
Ainda que num contexto distinto de outros momentos da história política brasileira, as resistências às mudanças se valeram da apologia da repressão e da violência para conter projetos de inclusão. Mas persiste um problema: se a classe média tem um apego fundamental à ideologia meritocrática, como explicar a defesa de um candidato desprovido de credenciais de qualificação ou, ao menos, habilidade de comunicação? Embora pareça tentador dizer que a classe média mente, quando é oportuno, ao professar a ideologia meritocrática, o mecanismo de justificação social é mais complexo. Na prática, a oposição declarada a políticas de ação afirmativa ou à noção de direitos em geral já o habilita ao campo de defesa da meritocracia, mesmo que não seja o perfil de um “vencedor”.
Porém, isso ainda é insuficiente. Foi preciso encontrar uma ressignificação do mérito por meio da valorização genérica de um merecimento atrelado a uma ética familiar de esforço em geral. Ao se apresentar como um “homem comum” ou “médio”, um tipo que não é estranho à grande parte das famílias, as posturas e falas inadequadas ao espaço público foram, como nos laços afetivos familiares, normalizadas. A atenção para a diversidade de gênero, sexualidade, racial etc., promovida, em maior ou menor extensão, por políticas sociais, educacionais e culturais no ciclo petista, foi ridicularizada: a denúncia de opressões se tornou “vitimismo” ou “mimimi”. Mérito seria visto naquele que, mesmo numa posição difícil, não exige direitos e/ou políticas afirmativas, se resigna à sua posição e, assim, pode transformar até mesmo o fracasso em virtude moral.
Esse aspecto foi importante também para dotar de transversalidade o fenômeno bolsonarista entre as classes sociais. O mérito, portanto, estava em se apresentar como uma “pessoa de bem”, um “homem de família” que pode, segundo a moral patriarcal, desqualificar diferenças sociais de modo a ganhar a competição se valendo da inércia das tradições.
IHU On-Line – Jair Bolsonaro foi eleito pela classe média brasileira?
Sávio Cavalcante – Esta pergunta poderia ter uma resposta simples, negativa, se ficarmos restritos à dimensão mais imediata de eleições: “uma cabeça, um voto”. Como a classe média representa não mais do que um quarto (no máximo, um terço) dos eleitores, ela não tem peso quantitativo suficiente para definir resultados. Porém, se pensarmos numa dimensão política mais ampla, tenderia a dizer que sim, pois, em razão de seu poder simbólico e cultural, o fato de 2/3 da classe média aproximadamente terem votado em Bolsonaro significa uma normalização de uma candidatura de extrema direita responsável por alargar o conceito de democracia a ponto de incluir uma proposta antidemocrática. Algo promovido com amplo apoio da imprensa tradicional no país, que apostou na falsa equivalência de projetos entre Bolsonaro e o PT.
Se considerarmos como classe média a parte maior da faixa de renda acima de cinco salários mínimos (SM), percebe-se essa importância. Segundo dados do Datafolha, na véspera do segundo turno (27/10/18), as intenções de voto (Bolsonaro x Haddad) por faixas eram: 55% a 37% (homens), 41% a 42% (mulheres), 35% x 49% (até 2 SM,), 54% a 34% (2 a 5M,), 63% x 28% (5 a 10 SM,), 62% x 31% (acima de 10 SM) e 55% x 34% (com ensino superior).
IHU On-Line – A classe média brasileira desembarcou do bolsonarismo?
Sávio Cavalcante – Novamente, se associarmos a classe média a esses estratos de renda e qualificação que as pesquisas eleitorais oferecem, vemos que a rejeição ao governo aumentou significativamente a partir de março, o que parece ser uma rejeição ao irracionalismo e descaso criminoso do governo em relação às medidas tomadas no período da pandemia da covid-19. A avaliação do governo como ruim/péssimo entre dezembro de 2019 e maio de 2020 saltou de 36% para 56% entre pessoas com ensino superior, de 32% para 46% entre 5 e 10 SM e de 32% para 49% acima de 10 SM.
Porém, a avaliação positiva (ótimo e bom) ainda é expressiva, um pouco mais de um terço em todas essas faixas, sendo que, na faixa acima de 10 SM, depois de uma queda em abril para 32%, volta a crescer em maio e chega a 42%.
Outro aspecto fundamental é o apoio significativo desses estratos à presença maciça de militares no governo. Em junho deste ano, na população em geral, 52% eram contrários à presença de militares nos cargos no governo, mas fica acima da média entre 5 e 10 SM (51%) e na faixa acima de 10 SM (59%).
Se aumenta a crítica a Bolsonaro em razão das medidas criminosas tomadas no contexto da pandemia, isso não necessariamente tem significado rejeição em geral ao governo. É importante observar que a classe média também sofre o impacto da reorganização capitalista do trabalho e os chamados modelos de acumulação flexíveis (que alteram a empresa fordista tradicional) e o avanço do empreendedorismo e da maior entrada desses agentes no mercado financeiro. Se, por um lado, isso pode reduzir as exigências de a classe média ter que representar a “disciplina fabril” do sistema fordista, por outro, de modo algum significa a diminuição de suas tendências autoritárias, pois se cria uma noção de meritocracia ainda mais radical nesse capitalismo flexível em que as disputas políticas são encaradas como obstáculos artificiais que quebram a dinâmica natural do mercado, especialmente do mercado financeiro. Isso ainda explica o apoio da classe média até o momento a Bolsonaro que, para muitos, é apenas, na prática, o “homem forte” que garante, com a violência necessária, a política econômica liberal de “time” de Paulo Guedes.
IHU On-Line – O que é possível construir como alternativa dada a ameaça autoritária de nosso tempo? Qual o papel da classe média nessa construção?
Sávio Cavalcante – As perspectivas são muito ruins, pelo êxito que a extrema direita, que contém dentro de si um movimento neofascista, teve em criar uma falsa polarização. Ela tem conseguido restringir o debate na cena política imputando ao centro a condição de esquerda ou extrema esquerda e, com isso, ajuda a disseminar a ideia, hoje quase um senso comum, de que a direita neoliberal que diz, com sinceridade ou não, respeitar direitos civis e políticos, mas se opõe brutalmente aos direitos sociais, é o “centro”. Assim, para as frações burguesas, temos um cenário de “ganha-ganha”, já que, na remota pior hipótese, vai ter sempre um governo de centro que pode não atender a 100% das suas demandas, mas não representa nenhuma ameaça.
Penso que temos elementos suficientes para considerar que parte considerável da classe média e pequena burguesia tenderá novamente a apoiar modelos que flertam com o autoritarismo, como defesa de reformismos sociais que venham de partidos de centro e esquerda, principalmente o PT.
Uma classe média, principalmente jovem, com tendência progressista em termos morais (“descolada”), embora tenha ojeriza à figura de Bolsonaro, dorme tranquila com a destruição dos padrões mínimos de civilização em termos de direitos do trabalho e quer realizar seu propósito de vida, encontrar “sua verdadeira essência”, num empreendedorismo que pretende salvar o mundo. Querem criar outro capitalismo, mas não gostam do pacote desumano que necessariamente o acompanha.
Mesmo assim, no curto prazo, a alternativa seria apostar nas alianças com setores que tenham algum compromisso com valores constitucionais e democráticos, com os direitos civis e políticos e com a ciência, especialmente nesse momento de pandemia. A parcela progressista da classe média, de esquerda ou não, cumpriria um papel importante ao se colocar como ativa nessa luta, nos seus círculos pessoais de trabalho e familiares. É difícil, mas necessário para a sobrevivência.
No médio e curto prazo, apenas o abandono do programa neoliberal e a constituição de um reformismo forte, com desenvolvimento econômico menos desigual e atento aos limites ecológicos e aos direitos sociais, pode abrir caminho para um processo em que sejam oferecidas também à classe média alternativas materiais de reprodução que não mais dependam do rebaixamento da condição de vida dos mais pobres e que possa, assim, novamente isolar seus pendores autoritários a uma parcela menor, e eleitoralmente isolada, de seus agentes. O mais provável é que esse programa esbarre, novamente, nos limites do capitalismo dependente brasileiro, o que exige também construir alternativas nacionais soberanas, populares e que não excluam os ideais socialistas adequados ao século XXI. Um programa que possa cumprir as promessas de liberdade e igualdade sem oprimir a diversidade humana e dar viabilidade material à justiça social.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Sávio Cavalcante – O livro recém-publicado do professor Adalberto Cardoso, Classes médias e política no Brasil - 1922-2016 (RJ: FGV, FAPERJ, 2020) recoloca de maneira muito interessante a discussão do tema das classes médias nas ciências sociais e oferece um quadro extenso e rico sobre processos que mencionei e, diferentemente da abordagem que aqui privilegiei, apresenta também uma análise quantitativa sólida sobre dimensões e transformação das classes médias brasileiras.