O aprofundamento de políticas de austeridade, em que se evoca um “afastamento do Estado na ação econômica e social”, tornou-se “um pensamento único” para os momentos de crise. O economista Guilherme Delgado, porém, aponta que a política neoliberal ainda precisa de um Estado que garanta “a plena operação dos mercados desregulados”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Delgado ainda critica os planos econômicos que trazem “os neoliberais inimigos da igualdade ou adeptos de um estilo de idolatria do mercado”, pois isso “em nada contribui para o desenvolvimento”.
O economista retoma a construção da economia como ciência, repassando seus principais autores e obras, como A Riqueza das Nações, de Adam Smith, O Capital, de Karl Marx, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, Desenvolvimento como Liberdade, de Amartya Sen, e traçando relações com algumas das encíclicas da Igreja, como Caritas in Veritate, de Bento XVI, e Laudato Si’, de Francisco. “A reflexão sobre economia humana, fundamentada em critérios ético-teológicos, constrói simbolicamente novos argumentos e inspirações para mover desde já projetos susceptíveis de apresentar respostas a graves problemas, como desemprego, migrações forçadas e mudanças climáticas”, defende Delgado.
As vastas obras citadas ao longo da entrevista apontam pistas para alternativas ao que chama de “totalitarismo de mercado”. “Para isso acontecer se requer consciência e mobilização política, por um lado, e algum projeto econômico alternativo, por outro”, e por isso Delgado analisa dois movimentos, a nível local e global, que emergem na atualidade: a Associação Brasileira de Economistas pela Democracia - ABED, e a convocação feita pelo papa Francisco a jovens economistas de todo o mundo, para um encontro, em Assis, em março de 2020.
Para Guilherme Delgado, a ABED manifesta “uma proposta de reestruturação do Estado democrático e de relançamento do desenvolvimento em novas bases de equidade, sustentabilidade e progresso técnico”. E a convocação de Francisco “transcende a discussão puramente acadêmica da economia e que permite uma comunicação muito mais ampla às pessoas de todos os credos, que no mundo contemporâneo tematizam o serviço aos pobres e à causa ecológica como perspectiva de vida digna”.
Guilherme Delgado (Foto: Reprodução | Youtube)
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea.
IHU On-Line — Quais as diferenças conceituais de Economia Política, Ciência Econômica e Política Econômica em suas principais concepções doutrinárias, tendo em vista suas adequações de linguagens e enigmas aos problemas da economia real contemporânea?
Guilherme Delgado — Essa questão inicial é necessária para fazermos uma espécie de esclarecimento preliminar sobre dois assuntos interligados: uma arqueologia conceitual da economia, por um lado, e por outro, uma certa confrontação dos problemas da economia contemporânea por dentro da chamada disciplina científica, na acepção de ‘ciência normal’, sujeita a regras e método próprios.
Atividade econômica, no sentido da ação organizada dos seres humanos para produzir e prover meios de subsistência, dentre os quais a casa-habitat é fundamental, os alimentos, os instrumentos de trabalho, meios de defesa etc. são tão antigos quanto o homem primitivo; ou mais avançada no mundo antigo grego, que por primeiro designou esse conjunto de atividades relacionadas ao atendimento de necessidades com a expressão ‘oiko/nomos’ ou economia, a significar normas para gestão da casa.
Do ponto de vista histórico, a Economia Política é nome de batismo da economia como disciplina científica, quando esta na modernidade adquire pretensão de ciência particular, entre as últimas décadas do século XVIII e princípios do século XIX. Duas obras ao estilo tratado, dessa época – A Riqueza das Nações de Adam Smith, de 1776, e Princípios de Economia Política e Tributação de David Ricardo, 1817, são uma espécie de fundação da chamada economia científica, mas que não tinha ainda a roupagem de ‘Ciência Econômica’ na versão de uma certa mecânica do equilíbrio, construção epistêmica posterior, a partir dos neoclássicos do século XX, que já estarão reagindo explícita ou implicitamente à “Crítica da Economia Política” clássica, de O Capital, de Karl Marx, de 1864.
Mas antes de entrar no século XX, é preciso explorar um pouco mais o nascimento da economia política, lendo um pouco o significado e o ambiente histórico e cultural do surgimento das disciplinas científicas da modernidade, que é também o tempo histórico de consolidação dos estados nacionais. Daí que os fundadores da economia moderna, conquanto erigissem o protagonismo dos mercados à época da primeira Revolução Industrial, conceberam o sistema econômico que estavam identificando, impelido por forças do autointeresse utilitário, do progresso técnico e da ‘propensão natural para troca', segundo Adam Smith; mas o fizerem dentro de uma perspectiva da ‘polis’ e não apenas do ‘oikos’ antigo, sendo essa nova ‘polis’ o espaço do estado nacional. Daí porque a expressão Economia Política dos fundadores clássicos (Smith e Ricardo) e do principal crítico (Karl Marx) e de todo o século XIX é a mesma Economia Política clássica.
A mudança de paradigma da Economia Política para aquilo que principalmente na tradição anglo-saxônica veio a se denominar de Economia Positiva, Ciência Econômica etc. com pretensão de se constituir numa ciência experimental, é muito mais recente, fruto da contribuição do pensamento neoclássico marginalista, adaptado a uma certa física do equilíbrio, importada da Mecânica de Isaac Newton. O autor contemporâneo que sintetizou de maneira mais acabada essa construção teórica é Paul Samuelson, ainda nos anos 40 do século XX, no seu livro Fundamentos da Análise Econômica (1947) .
Resumindo, para tentar ser didático em uma questão que é muito mais vasta. O tema da Economia Política no pensamento clássico pode ser sintetizado na produção dos bens econômicos e repartição do excedente, que Marx chama de ‘Mais Valia’. Esta funciona como centro motor, que impele uma classe social a coordenar o processo econômico, tendo em vista sua maximização. Enquanto, na chamada Economia Positiva, o sistema econômico não é lido na perspectiva das classes sociais, mas dos fatores de produção, cujos preços relativos refletem sua escassez material e cujos movimentos de produção, consumo e repartição do excedente econômico seriam todos explicáveis dentro de uma mecânica clássica de oferta-demanda e preços de equilíbrio.
Finalmente, quer se adote a concepção clássica da economia política, quer se siga o pensamento convencional da economia positiva, em quaisquer sistemas econômicos reais é necessário exercitar política econômica. O mais liberal dos pensadores em qualquer período histórico de vigência do capitalismo, que é também o tempo de consolidação e de crise relativa do Estado Nacional, não encontrou solução para funcionamento automático e independente dos mercados autorregulados.
O que muda na política econômica, na perspectiva dos neoliberais modernos em confronto com os neokeynesianos e/ou socialistas, é o sentido dessa política. Isso porque há problemas estruturais no sistema econômico, diagnosticados ainda nos anos 1930 pela A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes – a exemplo do desemprego e da má distribuição de renda, endógenos ao próprio sistema, que, se não corrigidos pela política econômica, produzem crises periódicas de desemprego, por um lado, ou desintegram a coesão social, por outro. Já o pensamento neoliberal precisa de política econômica para impor uma moldura de Estado que administre todas as relações sociais, como se relações mercantis estritas o fossem, regidas pela mecânica do sistema de preços.
Nas questões subsequentes, respondo ao tratamento dos problemas mais graves da economia contemporânea, no sentido de como os enfrenta o pensamento econômico convencional e principalmente como os enuncia o pensamento crítico. Aí então farei a associação pertinente das distintas escolas ou concepções teóricas, que ora disputam ou desafiam o bastão da economia científica ou da “ciência normal”.
IHU On-Line — Quais os principais problemas do sistema econômico contemporâneo? Que autores e perspectivas teóricas são mais apropriados à compreensão crítica e a respostas aos problemas do capitalismo contemporâneo?
Guilherme Delgado — A grande novidade da economia keynesiana é colocar dois problemas que à época (anos 30 do século passado) já eram de grande gravidade – o desemprego cíclico e a má distribuição de renda –, que Keynes identifica como inerentes ao próprio funcionamento do sistema; daí se derivando toda sorte de recomendações para enfrentá-los, seja na própria “Teoria Geral”, seja na contribuição das várias vertentes keynesianas que se seguiram no pós-II Guerra.
Os tempos atuais do século XXI são, por excelência, período de manifestação de crises econômicas, marcadamente de caráter financeiro, em que os problemas do desemprego e da desigualdade social se exacerbam, ao mesmo tempo em que os estados nacionais se veem em dificuldade crescente para promover políticas contracíclicas e, ao mesmo tempo, manter um aparato permanente de Estado de Bem-Estar, ambos arsenais imprescindíveis para fazer o sistema funcionar, sem grandes distorções macroeconômicas e sociais.
Mas a recorrência das crises financeiras, sua frequência, intensidade e duração no tempo, que se experimenta do final do século passado a este século, são fenômenos relativamente novos, que o próprio Keynes não conhecera em vida nesse formato. Também é relativamente nova a grave incidência dos problemas ambientais na economia, com destaque às mudanças climáticas relacionadas aos padrões de utilização de recursos naturais e emissão de gases do efeito estufa.
Para ser mais explícito e didático, vou identificar sete vertentes principais de problemas estruturais do desenvolvimento econômico e seus respectivos formuladores críticos e/propositores:
Mais recentemente, o tema das crises financeiras virá à atenção do Vaticano na forma de um documento crítico – Oeconomicae et Pecuniariae Quaestiones (Considerações para um Discernimento Ético sobre Alguns Aspectos do Atual Sistema Econômico-Financeiro, publicado em 2018), a que se sucederá ainda em maio de 2019 o anúncio do encontro em Assis, para março de 2020, sobre Economia de Francisco, que falaremos mais adiante.
Concluindo, o que se pode deduzir das vertentes críticas e principalmente dos problemas reais que levantam sobre o sistema econômico global é não apenas o óbvio das crises desse sistema, como também da estrutura conceitual da chamada economia positiva, no sentido da predição inadequada à classe de fenômenos contemporâneos que esses citados autores levantam. Nesse sentido, pode-se sim diagnosticar uma crise grave do paradigma positivista e muitas pistas de revolução científica, na linha de novos problemas centrais (enigmas na linguagem de Thomas Kuhn, no livro Estrutura das Revoluções Científicas), tendo em vista superar os graves problemas econômicos estruturais do mundo neste século XXI. O que se deduz também é que há pressões de toda ordem no mundo real, que a chamada economia positiva não capta, senão como externalidades que seu sistema teórico não dá conta. Daí também a necessidade de uma refundação da economia convencional neste século XXI.
IHU On-Line — Progresso técnico e igualdade social são relação invertida na lógica dos mercados ou do desenvolvimento econômico autorregulado (a partir dos mercados)?
Guilherme Delgado — A ideia do progresso técnico como motor do desenvolvimento econômico é praticamente consenso às várias correntes de pensamento econômico fundadoras da economia moderna nos mais de duzentos anos que já nos distanciam da obra seminal de Adam Smith. Isto vale para Clássicos, Neoclássicos, Schumpeterianos, Estruturalistas, Keynesianos e Marxistas, brevemente citados na questão anterior.
Por sua vez, a questão da igualdade social ou da redução das desigualdades é abordada de maneira muito distinta pelas diversas correntes do pensamento econômico crítico, a começar pelo marxismo, que não admite sociedade igualitária dentro dos marcos do capitalismo, que condensa contraditoriamente estrutura produtiva progressiva, impelida pelo progresso técnico e relações de produção intrinsecamente desiguais, impelidas pelas relações de produção desiguais da burguesia, segundo a abordagem de O Capital de Marx.
Keynes em sua Teoria Geral declara explicitamente, no capítulo 24 – Notas Finais sobre a Filosofia Social a que Poderia Levar a Teoria Geral, como problemas endógenos do sistema econômico: 1) - a garantia do pleno emprego e da superação das crises cíclicas de realização da produção (ou venda); 2) a geração de uma distribuição ‘justa’ da renda e da riqueza geradas.
Joseph Schumpeter, precursor da teoria do desenvolvimento capitalista no século XX, como também da abordagem histórica e teórica dos ciclos econômicos, alimentava dúvidas cruciais sobre a capacidade do sistema de enfrentar as muitas instabilidades e desigualdades que esse mesmo desenvolvimento provocaria às instituições sociais, daí que no livro clássico Socialismo, Capitalismo e Democracia faz leitura pessimista sobre o futuro do capitalismo.
Por sua vez, os neoclássicos resgatados no final do século XX pelo neoliberalismo na dupla Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises não estão preocupados com a questão da igualdade, muito ao contrário; e no limite, para citar o norte-americano Milton Friedman, admite algum programa pontual de renda mínima para as pessoas na extrema pobreza. Mas o centro dessa doutrina é o completo afastamento do Estado da ação econômica e social, a menos da garantia de condições à plena operação dos mercados desregulados.
A crítica teórica mais forte à unanimidade do progresso técnico na teoria do desenvolvimento econômico vem precisamente da economia ecológica original, de Nicholas Georgescu, que identifica no conceito da produtividade econômica estritamente mercantil a armadilha da alta dissipação de energia útil mais poluição planetária (alta entropia), porta de entrada que a economia ecológica irá abrir para pôr em xeque a sustentabilidade do próprio desenvolvimento, sob as bases desse progresso técnico-científico, vigente desde a primeira Revolução Industrial .
Uma economia contemporânea, como a brasileira do século XXI, com vários e graves problemas de desigualdade, desemprego, crise ambiental e crise do Estado democrático, precisa de inspiração para relançar seu desenvolvimento. E especificamente em relação à antinomia sugerida – progresso técnico e igualdade social –, alimentar-se de toda contribuição positiva dos debates – pós-keynesiano, da economia ecológica global, bem como dos novos desdobramentos das várias vertentes daquilo que a partir de Amartya Sen poderíamos chamar de uma nova Economia Humana – para a partir disso repensar o futuro próximo. Mas trazer de volta os neoliberais inimigos da igualdade ou adeptos de um estilo de idolatria do mercado em nada contribui para o desenvolvimento.
IHU On-Line — Podemos, a partir do liberalismo econômico de hoje, no Brasil e no mundo, falar em totalitarismo econômico? E quais os maiores desafios para conceber uma economia que potencialize princípios e valores da democracia?
Guilherme Delgado — O estilo de liberalismo econômico que se afirma, por exemplo, no “Programa Econômico do PMDB” de 2016, receituário do governo de Michel Temer, e agora ostensivamente declarado e em execução na gestão do governo atual, conspira deliberadamente contra o Estado democrático. A negativa tácita e explícita aos direitos sociais – trabalhistas, previdenciários e educacionais da Constituição de 1988 – tem por consequência a imposição de uma espécie de estado novo das relações sociais básicas, cuja âncora não é a ordem jurídica constitucional, mas o mito do mercado total liberado, sob a égide do sistema financeiro. E aí entramos em outro domínio – da idolatria do dinheiro, submetendo não apenas todo o sistema econômico, mas também sociedade, política, cultura, religião etc.
Essa vertente idolátrica do capitalismo global não é exclusiva do Brasil. As denúncias proféticas de várias Encíclicas, como Laudato Si’, Evangelii Gaudium, os discursos do papa Francisco aos Movimentos Populares etc., são explícitos, a que voltaremos a tratar mais adiante. Mas no Brasil, o apelo totalitário, incluindo ameaças de fechamento do Congresso e do STF caso esses Poderes cumpram seus deveres constitucionais, já não permite duvidar da relação promíscua que os arautos do livre mercado mantêm com a ditadura.
Por outro lado, o processo de promoção do totalitarismo de mercado não é apenas operação da política de governo. A implantação do ‘pensamento único’ na cobertura da grande mídia sobre as ‘reformas’ que mexem diretamente com a economia política – tributária, previdenciária e das questões de política agrária-ambiental –, é preciso que se o diga, vem crescendo com uma censura à liberdade de expressão, que dispensa o Estado para tal operação.
Há evidentemente sujeitos ocultos subjacentes a esse estilo de liberalismo totalitário, no caso brasileiro, que submetem aos ditames do mercado três bens econômicos fundamentais – terra, trabalho e dinheiro. No Brasil o poder monopolístico privado nos sistemas financeiro, agrário e trabalhista, coadjuvado pelo midiático, cumprem papéis antidemocráticos, que precisam ser colocados em pauta das verdadeiras reformas para o resgate da cidadania.
Creio que alinhavei alguns desafios que estão presentes no contexto de pensar a economia como vetor da democracia. Aparentemente, pelos poderes que ora empalmam esses setores monopolísticos, seriam imbatíveis de se os derrotar. Mas não nos esqueçamos de que este sistema de alianças neoliberais não tem projeto de país, nem tampouco de desenvolvimento nos marcos da democracia como a conhecemos no mundo contemporâneo. Suas escolhas mitológicas e idolátricas vêm aprofundando situações de barbárie social, que mais dia menos dia exigirão algum governo de salvação pública. Somente então, pode-se abrir espaço para construção de projeto alternativo, que me reservo a tratar nas questões seguintes, naquilo que é possível por ora conceber.
IHU On-Line — O Grupo Economistas pela Democracia (Associação Brasileira de Economistas pela Democracia) defende uma série de mudanças na condução da política econômica nacional. Qual é a questão de fundo por trás dessas propostas? Quais os desafios para implementá-las no Brasil de hoje?
Guilherme Delgado — O Manifesto de lançamento da Associação Brasileira dos Economistas pela Democracia - ABED , da qual também faço parte, tem clareza sobre os vários problemas da sociedade brasileira na atualidade e faz demarcação clara da responsabilidade dos economistas comprometidos com a democracia, para encontrar saídas políticas para a situação crítica que ora enfrentamos. As ‘mudanças na condução da política econômica’ referidas no ‘Manifesto’ vão muito além daquilo que se convenciona chamar de política econômica de curto prazo, porque o que se faz no imediato é desconstrução cega do Estado nacional para entrega do espólio aos mercados globais.
Uma proposta de reestruturação do Estado democrático e de relançamento do desenvolvimento em novas bases de equidade, sustentabilidade e progresso técnico, para citar três desafios agravados nos últimos quatro anos, é um empreendimento que somente pode se iniciar com a remoção do entulho totalitário-neoliberal que ora governa o país. E para isso acontecer se requer consciência e mobilização política, por um lado, e algum projeto econômico alternativo, por outro. Creio que esse segundo ponto é o que faz a ABED, de maneira oportuna e pertinente.
Mas não podemos nos esquecer que a situação de crise que ora vivemos, a ingovernabilidade e a ausência de projeto de país que se geram no vazio, e toda sorte de iniquidades que são propostas sob a etiqueta de ‘reformas’, têm nome e endereço em alianças espúrias de setores que usufruem de todos os privilégios financeiros – proprietários da riqueza financeira e fundiária, ávidos por vender o pais e liquidar de vez a democracia.
Por outro lado, mesmo sabendo que haverá longa transição, até que possamos ‘atravessar o mar e chegar a terra prometida’, não podemos nos omitir de fazer sugestões imediatas. A questão do desemprego e do desalento no mercado de trabalho, pelas proporções que já atingiu, não pode esperar por muito tempo. Temos hoje ao redor de 15% da População Economicamente Ativa - PEA ou em situação de desemprego aberto ou de desalento. Isto significa que mais de 15 milhões de pessoas estão procurando emprego ou desistiram de fazê-lo por nada encontrar (desalento), situação que se prolonga por anos e não apenas meses.
Há um rol de políticas de transição que poderiam dar respostas necessariamente transitórias – da infraestrutura, do mercado de trabalho, do meio ambiente, da geração de energia, do progresso técnico etc. –, que ora estão paralisadas, mas que poderiam ser objeto de planejamento, obviamente de governos não comprometidos com o desmantelamento de tudo isso.
Por sua vez, a sociedade civil nas condições de apatia governamental tende a cumprir papéis de autoproteção social e mesmo de implementar agendas de ação pública, tendo em vista corrigir os graves problemas de perda da coesão social em ambiente de desemprego agudo. Mas é claramente a partir do Estado que se espera a adoção de ações contracíclicas para enfrentar o desemprego e o desalento; e nunca o seu inverso, como na agenda do ministro Paulo Guedes.
Felizmente, até os economistas liberais, sem vícios antidemocráticos, a exemplo do André Lara Resende, desperta para o verdadeiro real e se soma aos neokeynesianos, apontando caminhos muito parecidos àqueles que a ABED denuncia e propõe também política de reativação do emprego.
IHU On-Line — É possível uma outra fundamentação ético-teológica da economia humana, ora enunciada na perspectiva da ‘economia de Francisco’, suscetível de enfrentar os graves problemas de instabilidade econômica, desigualdade social e insustentabilidade planetária do capitalismo contemporâneo?
Guilherme Delgado — O papa Francisco tem dito em diversas ocasiões que a economia global contemporânea é uma ‘economia que mata”. Pistas às motivações do homicídio estariam no caráter de idolatria do dinheiro (Evangelii Gaudium, parágrafos 55-58), como também no paradigma tecnológico que se impõe a partir dos marcados e que estariam na ‘Raiz Humana da Crise Ecológica’! (Laudato Si’, capítulo III). Isto posto, o que se pode deduzir é que a economia convencional não apresenta fundamentação ética universalmente reconhecível, tese por sinal sustentada com grande radicalidade pelo papa Bento XVI na Encíclica Caritas in Veritate .
Por sua vez, a ideia de “Economia de Francisco” é um tema em aberto à reflexão ética, teológica, e das ciências sociais em geral sobre economia, em busca de um paradigma do serviço aos pobres e oprimidos do mundo e do convívio amigável com a natureza, que são as grandes inspirações e opções de Francisco de Assis. Há uma mística em tudo isso, que transcende a discussão puramente acadêmica da economia e que permite uma comunicação muito mais ampla às pessoas de todos os credos, que no mundo contemporâneo tematizam o serviço aos pobres e à causa ecológica como perspectiva de vida digna à humanidade.
Trazendo o tema da ‘Economia de Francisco’ às questões gerais desta entrevista, creio que podemos abordá-lo de dois ângulos: 1) das pré-elaborações críticas à corrente principal da economia, como sejam, por exemplo, economia ecológica, economia humana (Amartya Sen), e estruturalista (Celso Furtado, por ex.); 2) de uma fundamentação ético-teológica da economia humana.
Da primeira abordagem, vale lembrar os conceitos de proteção social da economia do bem-estar e o resgate de capacidades humanas, da teoria do desenvolvimento de Amartya Sen, esta última explicitamente ligando o desenvolvimento à liberdade. Esses conceitos contêm significativos precedentes nas abordagens bíblicas, podendo ser desenvolvidos com fecundidade para fundamentação teológica de uma economia humana.
Ainda aproveitando as pistas do pensamento crítico, temos da economia ecológica o conceito de inovação econômica de baixa entropia, ou baixa ‘pegada ecológica’, relacionadas à produtividade natural, com mínima dissipação de energia útil, poluição planetária e consumo de estoques finitos de bens da natureza. Creio também útil e necessária uma fundamentação teológica dessa economia ecológica, tarefa que a Encíclica Laudato Si’ sugere com todas as letras: na economia de serviços, recuperar o conceito de atendimento de necessidades básicas, pondo destaque à promoção dos cuidados interpessoais. Na economia monetária e financeira, conceituar os critérios para tratamento das dívidas e da guarda e gestão de tesouros humanos, superando o cassino global em que se converteu a economia financeira.
Esses temas contêm rica precedência na abordagem bíblica, como também na teologia latino-americana, que o papa Francisco recupera.
Uma fundamentação teológica de uma economia humana ou a reflexão da economia humana partilhada com muitas pessoas de boa vontade, cientes da necessidade de atualização histórica dos problemas da vida humana à luz dos critérios da fé cristã, não tem a pretensão de mudar a situação do império em decadência, pondo em seu lugar soluções preestabelecidas.
A pretensão da iniciativa papal sobre o Encontro em Assis (março de 2020), creio eu, é reunir várias contribuições, que possam nos abrir caminhos à construção de nova mentalidade econômica, superando as idolatrias econômicas que ora nos constrangem, dentro e fora das Igrejas.
Em certo sentido, a reflexão sobre economia humana, fundamentada em critérios ético-teológicos, constrói simbolicamente novos argumentos e inspirações para mover desde já projetos em nível local, susceptíveis de apresentar respostas aos graves problemas do desemprego, das migrações forçadas e das mudanças climáticas, para citar três exemplos significativos. Mas a partir da mudança de orientação dos Estados nacionais e do sistema empresarial, principalmente financeiro, bases do império do capital e do dinheiro mundiais, parecem estar absolutamente imunizados para a lógica da ‘Economia de Francisco’ e navegam de crise em crise para o sem rumo da idolatria e do mito.
IHU On-Line — Como encarar, na atualidade, as questões concretas de política social que ora se põem na agenda nacional, a exemplo dos sistemas de saúde, educação e previdência, e de que maneira enfocá-las na perspectiva do desenvolvimento humano?
Guilherme Delgado — Essa questão permite fazer no debate político uma clara demarcação sobre diretrizes do neoliberalismo em choque com o projeto de Estado Social da Constituição de 1988. Os direitos sociais estabelecidos no Sistema de Seguridade Social e na Educação Básica vêm sendo sistematicamente desmantelados pela ação dos governos Temer e Bolsonaro de os eliminar dos orçamentos públicos. Essas ações continuadas, haja vista que a Emenda Constitucional do teto de gastos primários - EC 95/2016 já congelou o gasto social em três orçamentos, de 2017 a 2019, avançam agora para desmantelar totalmente o Regime Geral de Previdência Social. E em quase todos os casos o sujeito oculto é o sistema financeiro, que viria ocupar o espaço público com seus Planos de Saúde e Previdência privados. O caso da educação é mais grave, porque, contaminado por profunda irracionalidade da ‘caça às bruxas’, não revela sentido palpável de economia política.
Do ponto de vista dos conceitos de Estado Social, Economia Humana ou “Economia de Francisco”, essas ‘reformas’ estão absolutamente invertidas. Ampliam desigualdade social, submetem os mais pobres e desprotegidos da sociedade às normas estritas do mercado, transformam o espaço da natureza em um ‘monte de lixo’ e apostam todas as fichas na idolatria do dinheiro. E se a este rol acrescentarmos a política agrária e ambiental do governo atual, a inversão é muito mais radical, sepultando completamente quaisquer vestígios de atenção com a economia ecológica ou com as inspirações de São Francisco de Assis . Tudo isso se faz com muito cinismo e ainda invocando o manto sagrado do nome de Deus.
Pessoas autodeclaradas de fé cristã que subscrevem esta agenda ora em execução, não mais podem ser absolvidas pela desculpa da ingenuidade e desinformação. Cometem, a meu juízo, o mais grave dos erros de avaliação política, de consequências sobre a vida humana semelhantes ao que na teologia se classifica o chamado “pecado contra o Espírito Santo”.