14 Março 2019
Artigo de Lara Rezende contra pensamento econômico ortodoxo sugere: há cheiro de bolor na “Reforma” da Previdência e no “ajuste fiscal”. Brasil precisa, ao contrário, abrir-se a novas teorias sobre moeda e Estado.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, publicado por Outras Palavras, 12-03-2019.
Dentre tantos atributos, nossas elites há muito tempo são conhecidas por adotarem uma certa atitude de incorporar todas as tendências e modismos que despontam nos centros dos países mais desenvolvidos. E isso vale para assuntos de um amplo espectro: vão desde aspectos morais e culturais até ditames e recomendações de política econômica. Vale um pouco por aqui aquela conhecida imagem criada por Nelson Rodrigues, que falava de um complexo de vira lata que nos acompanha como povo e como nação.
No entanto, essa postura de querer ser mais realista do que o rei encontra algumas barreiras quando se trata de preservar a essência de um modelo de herança escravista e explorador de todos os recursos de maneira irresponsável e sem planejamento. Afinal, somos todos adeptos da modernidade, ma non tropo! Quando o assunto esbarra na desavergonhada estrutura de preservação de desigualdades sociais e econômicas, o povo do andar de cima esquece de Paris, Londres ou Estocolmo. Nos momentos em que o tema envolve trabalho escravo ou reforma agrária, as elites tupiniquins fingem que não têm nada a ver com o que se ouve pelas ruas de New York a esse respeito. Já quando a conversa se volta para sustentabilidade ambiental e uso de agrotóxicos, esse pessoal não faz muita questão de se alinhar com o dernier cri que agita até mesmo as elites dos países mais ricos.
Essa excepcionalidade vale também para alguns enfoques associados a modelos de política econômica. Mas nem sempre. Quando a moda internacional era seguir as orientações do Consenso de Washington, não houve vacilo em incorporar o amplo rol de recomendações para promover os ajustes propostos pelos representantes do financismo internacional. E assim o pacote do neoliberalismo foi adotado de forma praticamente integral, com desregulamentação da atividade econômica, liberalização comercial, privatização y otras cositas más.
Porém, desde que os países centrais passaram por profundas mudanças em seu receituário de política econômica a partir da crise de 2008/9, pouco ou quase nada foi reverberado internamente a esse respeito. Mas o fato concreto é que boa parte da intelligentsia econômica do chamado mundo desenvolvido foi obrigada a promover um verdadeiro cavalo de pau em suas avaliações a respeito da justeza ou não da presença do Estado na economia, por exemplo. Aquela operação de terra arrasada que havia sido encomendada contra as chamadas políticas de inspiração keynesiana teve de ser cancelada. As políticas públicas de apoio à retomada do crescimento econômica foram trazidas de volta à pauta dos governos.
O fracasso das políticas anteriores a essa crise mais recente do capitalismo global ficou evidenciado para todos que se dispusessem a ensaiar alguma auto crítica no interior da próprio establishment. Pois isso terminou por fortalecer uma corrente nas escolas de economia, que tem sido chamada genericamente pela sigla MMT – “Modern Monetary Theory”. Em seu interior cabe um conjunto amplo de escolas, avaliações e pensadores que apresentam uma abordagem crítica do processo vivido até então. A teoria monetária moderna faz algumas ponderações importantes a respeito do papel da moeda, do endividamento público, da taxa de juros e das políticas públicas afirmativas.
Em nossas terras, ainda há pouco espaço para divulgação de tal questionamento de natureza quase herética. A hegemonia exercida pelos representantes do financismo é de tal ordem, que quase nada se discute a esse respeito fora dos circuitos fechados do ambiente acadêmico. Prevalece a defesa do interesse mesquinho e imediato, sem a menor preocupação em se aproximar desse debate crítico e bastante necessário, que integrantes do sistema econômico dominante passaram a fazer nos países do centro do próprio capitalismo.
Há poucos dias foi publicado um artigo do economista André Lara Resende. Pela importância do autor, as proposições devem provocar um verdadeiro turbilhão no interior dos espaços do próprio pensamento conservador de nossas elites. Afinal, ele é um banqueiro refinado e um conhecido operador dos meios financeiros. Lara Resende há muitas décadas está no coração desse espaço sensível, onde se cruzam as relações incestuosas entre Estado e capital privado. Ele participou da equipe que foi responsável pela elaboração e implementação do Plano Cruzado em 1986. Conhecido por suas relações íntimas com o tucanato, esteve presente em vários momentos nas equipes de FHC, seja na elaboração do Plano Real ou no comando do Banco Central.
Mas tudo indica que ele tenha preservado a qualidade do intelectual que se incomoda com respostas fáceis e insuficientes para uma realidade dinâmica e complexa. Há dois anos, lançou um primeiro petardo contra a ideia reinante a respeito da infalibilidade da taxa de juros estratosféricas para organizar a casa do capital em nossas terras. Na prática, Lara Resende dizia que foram inócuos esses anos todos de política monetária arrochada. Bingo! Foi acusado de tudo e mais um pouco por aqueles com quem sempre havia perfilado até anteontem.
O artigo mais recente poderia ter sido escrito por qualquer crítico mais à esquerda da política econômica nos tempos atuais. Vejamos como ele vai já no primeiro parágrafo:
(…) “A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.” (..)
Esse processo de autocrítica ocorre bem no início da tramitação da PEC 6/19, a proposta da Reforma Previdenciária. E o centro da argumentação da equipe comandada por Paulo Guedes é o equacionamento da questão fiscal. No entender do economista formado pelo pensamento da Escola de Chicago, a solução do chamado nó previdenciário passaria pela transformação do atual regime de repartição em modelo de capitalização. Isso porque as contas públicas federais estariam incapacitadas de dar conta das atribuições previstas no capítulo da Constituição Federal sobre a seguridade social.
Ocorre que o documento de Lara Resende avança ainda mais na avaliação sobre a política fiscal. Ao recuperar os pressupostos do economista Abba Lerner na década de 1940, o brasileiro apresenta uma perspectiva bem menos preocupante quanto aos supostos efeitos negativos de um aumento do endividamento ou do déficit nas contas governamentais.
Assim, (…) “Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.
A primeira prescrição de Lerner, a sua “primeira lei das finanças funcionais”, é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.” (…)
Ora, tal assertiva é um verdadeiro balde de água fria no entusiasmo inicial apresentado pelo governo Bolsonaro e parte dos representantes do financismo para com a aprovação da reforma. Se a questão fiscal não é tão grave assim, por que tanta pressa em mexer em uma área tão sensível do ponto de vista político?
Aguardemos um pouco mais para termos a exata medida do desconforto provocado no campo do conservadorismo por mais esse torpedo de Lara Resende. No entanto, parece certo que esse artigo não vai passar incólume. O necessário apoio de amplos setores para dar um empurrãozinho na PEC da Previdência já começa um tanto cambaleante.
Cabe agora ao movimento sindical, às associações de aposentados, aos setores democráticos e progressistas, bem como aos pesquisadores sérios sobre o tema, continuar a denunciar os malefícios das mudanças sugeridas. A inesperada divisão no campo do financismo deve proporcionar obstáculos às intenções do capitão e da sua turma.
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Para desnudar a mediocridade das elites - Instituto Humanitas Unisinos - IHU