21 Julho 2012
“No caso da Bolívia, criou-se uma cultura do enfrentamento. Algumas vezes porque há pessoas que sentem que seus interesses são afetados e, em outros casos, porque pensam que é a oportunidade para conseguir o que nunca antes se havia conseguido”, aponta o diretor da Fundação Fé e Alegria, da Bolívia.
Confira a entrevista.
Apesar de conquistas sociais localizadas e da “dignificação dos setores anteriormente marginalizados”, o governo Evo Morales “não conseguiu propor um projeto de país, que convença e entusiasme toda a população”, avalia Rafael García Mora, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo o diretor da Fundação Fé e Alegria, apesar de o presidente boliviano ter conseguido estabilizar a economia e controlar a inflação, a Bolívia continua “dependendo economicamente da exportação de matérias-primas”.
Para ele, a novidade do governo boliviano é a tentativa de “recuperar o controle de algumas empresas estratégicas, que lhe permitem a liquidez suficiente para aumentar o investimento público e a subvenção aos setores mais empobrecidos, com o fim de superar problemas endêmicos relacionadas com o acesso à educação e à saúde”.
Ao avaliar as relações do governo boliviano com as comunidades indígenas, especialmente em relação aos conflitos por causa da construção de uma estrada que atravessaria o Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure – Tipnis, Mora é enfático: “A construção da rodovia não é unicamente um problema ambiental, que poderia ser superado ou ao menos atenuado com a tecnologia atual. É um problema de interesses econômicos dos vários setores, dos quais duvidamos que possam ser controlados por um governo como o de Evo Morales”. E dispara: “Uma grande maioria dos índios não se opõe à rodovia; opõem-se à possibilidade de que a estrada passe pelo centro do território. Porque isso não beneficia as comunidades situadas em sua maioria às margens dos rios e porque afeta a melhor zona para a agricultura e a caça”.
A Fundação Fé e Alegria foi fundada em 1966 para responder às necessidades das populações pobres urbanas e rurais, oferecendo serviços educacionais para aqueles que estão impedidos de alcançar um desenvolvimento pessoal e social por causa de discriminação, seja ela econômica, sociopolítica, étnico-cultural, ou por razões de sexo, idade ou deficiência. Atualmente, a Fundação Fé e Alegria é coordenada por Rafael García Mora (foto abaixo), jesuíta nascido em Barcelona e nacionalizado boliviano.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O governo de Evo Morales enfrentou recentemente uma greve de policiais e acusou o movimento de estar sendo utilizado por interesses golpistas. O que foi que realmente aconteceu?
Rafael García Mora – Era uma reivindicação por melhorias salariais, que vem sendo encubada há anos. Ainda no tempo do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada ocorreu algo semelhante, mas naquela ocasião com resultados lamentáveis. Desta vez não houve mortes nem feridos. Se a polícia quisesse encabeçar um golpe, não contaria com o apoio de outros setores da população, porque eles são mal vistos, e nem do Exército, que são seus concorrentes. No entanto, na fase em que se encontra o país, qualquer dessas situações pode ser aproveitada pela oposição para aumentar a sensação de crise, utilizando para isso os meios de comunicação, os quais, em sua maioria, são controlados por esse setor.
IHU On-Line – Nos últimos dias chegou a La Paz a nona Marcha Indígena. Quais foram as principais reivindicações e por que houve enfrentamentos?
Rafael García Mora – A principal reivindicação era a revogação da Lei n. 222, que aprovava a consulta pelo cruzamento da rodovia pelo centro do Parque Isiboro Seguro. Havia duas razões para se opor: (1) a consulta era extemporânea; (2) o Tribunal Constitucional havia declarado constitucional a consulta desde que houvesse consenso prévio entre as partes, o que era óbvio que não podia ocorrer nesse caso.
O descontentamento se produziu quando o presidente se negou a recebê-los, e, como aconteceu outras vezes, setores da oposição se aproveitaram da ocasião para buscar o enfrentamento e criar o caos. Nesse caso, os principais atores foram membros do grupo ativista autodenominado “Mujeres Creando”.
IHU On-Line – Qual o efeito político da nona marcha indígena?
Rafael García Mora – Passou sem pena nem glória. O momento não era oportuno (a época do ano, muito próxima da marcha anterior), e não teve o apoio da população que se esperava. Nessas circunstâncias, o governo venceu a batalha por esgotamento dos manifestantes, embora com o preço da perda de credibilidade, especialmente em questões indígenas e meio ambiente, que, no princípio, foram a base do seu discurso político.
IHU On-Line – Quais são as origens dos conflitos entre os indígenas e o governo Morales?
Rafael García Mora – É frequente que, quando há mudanças sociais e econômicas, surjam conflitos. No caso da Bolívia, criou-se uma cultura de enfrentamento. Algumas vezes porque há pessoas que sentem que seus interesses são afetados e, em outros casos, porque pensam que é a oportunidade para conseguir o que nunca antes se havia conseguido. A característica é que sempre são interesses particulares ou de pequenos grupos, que se impõem sobre os interesses coletivos. Falta um projeto de país, que entusiasme e una toda a população.
IHU On-Line – Por que o governo insiste com a Carretera de Tipnis?
Rafael García Mora – A necessidade de integrar o Norte com o resto do país é um anseio dos bolivianos que existen há muitos anos. Até agora, nenhum governo conseguiu realizar esse sonho. O governo que o realizar irá conseguir muitos créditos em nível nacional e também internacional, por ser uma via de conexão muito importante para os países vizinhos. Isso não impede que se montem, sobre essa nobre intenção, os interesses de alguns setores particulares como os produtores de coca do Chapare, as empresas madeireiras ou as mineradores e petroleiras. Alguns dispostos a entrar imediatamente na exploração, e outros que pensam que talvez seja preciso mantê-los como reserva estratégica. É difícil saber qual de todos esses interesses é o que mais pesa na decisão, e, possivelmente, a situação está mudando. Se algo caracteriza o presidente Evo Morales, é que, quando ele toma uma decisão, ele faz o impossível para levá-la até o fim, sem se importar com os obstáculos que se interpõem. A construção da rodovia não é unicamente um problema ambiental que poderia ser superado ou, ao menos, atenuado com a tecnologia atual. É um problema de interesses econômicos dos vários setores, dos quais duvidamos que possam ser controlados por um governo como o de Evo Morales.
IHU On-Line – Além do projeto Carretera, que corta o Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure – Tipnis, quais as demais reivindicações das comunidades?
Rafael García Mora – Há interesses diferentes segundo grupos e etnias. Mas, em geral, todos querem melhorar a educação e saúde, o que implica vias de comunicação. Uma grande maioria dos índios não se opõe à rodovia; opõem-se à possibilidade de que a estrada passe pelo centro do território. Porque isso não beneficia as comunidades situadas em sua maioria às margens dos rios e porque afeta a que é considerada a melhor zona para agricultura e caça.
IHU On-Line – Em sua opinião, quais são as razões para os permanentes conflitos que enfrenta o governo de Evo Morales?
Rafael García Mora – Não deixa de ser um modelo capitalista excessivamente dependente da extração de matérias-primas. A novidade é a tentativa feita pelo Estado para recuperar o controle de algumas empresas estratégicas, empresas que lhe permitem a liquidez suficiente para aumentar o investimento público e a subvenção aos setores mais empobrecidos, com o fim de superar problemas endêmicos relacionados com o acesso à educação e à saúde. Junto com isso houve uma política muito firme de melhoria da arrecadação de impostos, com resultados importantes.
IHU On-Line – Qual é o modelo, o projeto econômico em curso na Bolívia?
Rafael García Mora – Conseguir um equilíbrio entre o respeito pelos seus direitos e a necessidade de modernizar o país.
IHU On-Line – Evo Morales será candidato a mais um mandato?
Rafael García Mora – Possivelmente será. A Constituição permite isso, e até agora não apareceu ninguém que possa liderar a oposição.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios do governo Morales em relação às comunidades indígenas? Os conflitos demonstram a incapacidade de a esquerda latino-americana lidar com os povos indígenas presentes nos diversos países?
Rafael García Mora – Essa me parece ser uma interpretação muito reducionista. Não nos esqueçamos de que os governos liberais e as ditaduras também não sabem como lidar com os índios. Em alguns casos, eles decidiram exterminá-los, porque os consideravam como um entrave ao desenvolvimento.
IHU On-Line – Quais são os principais avanços e limites do governo de Evo Morales?
Rafael García Mora – A dignificação dos setores anteriormente marginalizados, melhorando sua autoestima. A estabilização da economia. Inflação controlada e crescimento sustentado. Ele não conseguiu extirpar a corrupção de pequena escala dos funcionários. Continuamos dependendo economicamente da exportação de matérias-primas. Não conseguiu propor um projeto de país, que convença e entusiasme toda a população.
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Bolívia: ''Falta um projeto de país''. Entrevista especial com Rafael García Mora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU