29 Mai 2012
“O Chile ainda é uma sociedade pós-pinochetista e, enquanto não mudar a Constituição de 1980, continuará sendo”, adverte o cientista político.
Confira a entrevista.
“O Chile está vivenciando uma crise de representatividade focada principalmente nos políticos, partidos e coalizões políticas. Por causa disso, a cidadania tem optado por processos de autorrepresentação, o que evidencia notórios sintomas de esgotamento e fatiga do regime”. A descrição do cenário político chileno é feita por Gastón Passi Livacic, que atualmente estuda a conjuntura política, econômica e social do país.
Para ele, os dilemas sociais enfrentados no Chile são decorrentes do processo de transição da ditadura para a democracia, justamente porque o país “pactuou por uma democracia protegida em que a última garantia da soberania seria as Forças Armadas. (...) O processo de negociação foi a saída tangível dentro do marco de possibilidades daquela época, porém essa saída pacífica está implicando na atual conjuntura social”.
Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele enfatiza que a “participação do Estado chileno é mínima”, e que o país “transformou-se em mais do que uma instituição que governa as relações sociais dentro do sistema político: converteu-se numa maquinaria que se preocupa em administrar e racionalizar em torno do econômico”. E dispara: “na maioria das vezes, prevalecem as decisões a favor do impacto econômico, em vez de uma análise do impacto político, ou seja, tal estrutura tem sido edificada para gerar desigualdades”.
Gastón Passi Livacic é graduado em Ciências Políticas e Administração Pública pela Universidade Central do Chile. Atualmente é integrante do curso de Biopolítica, a testemunha e a linguagem. (Des) encontros filosóficos, do Programa Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que choque de legitimidade você percebe no sistema político chileno?
Gastón Passi Livacic – Considero apropriado para o desenvolvimento dessa pergunta fazer uma breve explicação do significado de legitimidade. Trata-se de um dos quatro elementos constitutivos da política, ou seja, das relações de poder num sistema político, já que é um dos pilares fundamentais na construção de sociedades democráticas representativas. Portanto, decisões coletivas com uma alta legitimidade social são determinantes nos níveis de coesão social como também na sua estabilidade. No estrito sentido do conceito, a legitimidade torna-se elemento controlador e moldador do poder político na transferência assim como na sua permanência e execução, na interação da participação política. Em última instância, transforma-se no vetor da confiança e da credibilidade das regras do jogo por parte do corpo social para com as instituições e para com os representantes.
Crise de representatividade
A sociedade vem perdendo progressivamente a confiança nos representantes políticos e nas instituições públicas. No entanto, as demandas sociais não têm sido canalizadas nem pelos representantes nem pelas instituições políticas. De fato, nas enquetes todas as instituições públicas tendenciosamente têm ido à queda. Consequentemente, o Chile está vivenciando uma crise de representatividade focada principalmente nos políticos, partidos e coalizões políticas. Por causa disso, a cidadania tem optado por processos de autorrepresentação, o que evidencia notórios sintomas de esgotamento e fatiga do regime. Ou seja, estamos perante a culminação do modelo planejado e instaurado pela ditadura militar e consequentemente administrado pela Concertación.
A sociedade organizada reclama pela falta de rendição de conta por parte dos seus representantes: “elemento central numa democracia representativa”, criticando o despotismo da classe política nacional. Estamos inseridos num processo fundacional, no qual o lema principal é a volta de educação pública com a consequente subordinação do privado (dentro dos espaços que se delimitem) em torno ao domínio estatal. Em síntese, é uma busca do público e a volta do político.
IHU On-Line – A política e os princípios de Salvador Allende ainda têm alguma repercussão no Chile?
Gastón Passi Livacic – Existem duas formas de compreender o que significa Salvador Allende no Chile. A primeira é o papel histórico de Allende e da Unidad Popular (coalizão de governo, entre 1970 e 1973, conformada pelo Partido Comunista, Partido Radical, Partido Socialista e diferente movimentos e facções da esquerda política chilena), que tem estado sempre presente no imaginário do campo social. É só pegar elementos da mass media que são representativos desse imaginário. Por exemplo, há alguns anos, num programa de televisão, escolhia-se o chileno mais representativo da construção histórica do Chile tendo como ganhador, indiscutivelmente, Salvador Allende.
Nos protestos do ano passado e do presente ano, a figura de Allende estava representada em todos os lados, e o imaginário social ainda lembra a derrota. Isso remete e converge na recorrente recordação da tragédia vivida, na emergência da memória dos últimos anos dos chilenos. É um processo particular, pois a emergência e a relevância da sua figura remontam, em última instância, na experiência a fogo que marcou a UP, no imaginário do social e na consequente experiência de luta contra a ditadura.
O segundo elemento a ressaltar é que as manifestações no Chile são tão particularmente violentas quão organizadas. Desse modo, poderíamos dizer que é uma resposta à violência estatal por parte dos mecanismos coercitivos, manifestamente a forma de ação do social que responde à experiência da ditadura, como diria Benjamin: “o presente tem uma força messiânica de resgatar o passado”. E o que se tateia nestas mobilizações é isto: um passado que emerge, uma vontade de igualdade. Da mesma forma, como diria Thompson: “é uma longa luta democrática” e, nesse sentido, a figura de Allende tem sido esse símbolo em função da atual cadeia de significações: igualdade, em contraposição com um país classista, educação cara e de péssima qualidade, entre outros.
IHU On-Line – Como ocorreu o processo de transição da ditadura para a democracia no país? Ainda há alguma herança de Pinochet na política atual?
Gastón Passi Livacic – O processo de transição do autoritarismo para a democracia conteve elementos de proteção e continuação do antigo regime no processo de conformação da incipiente democracia. O sociólogo chileno Juan Manuel Garretón denominou esse processo de Entraves Autoritários (Enclaves Autoritários). Sem dúvida, o conteúdo de tais entraves tem interferido no processo de consolidação democrática. Para outros pensadores, esse processo tem sido apelidado de democracia protegida. Quais foram os entraves autoritários? Senadores Vitalícios y Designados (a homologação ao caso brasileiro dos Senadores Designados seriam os Senadores Biônicos), Sistema Binominal, Conselho de Seguridade Nacional – Cosena, membros do Tribunal Constitucional e imobilidade dos Comandantes de chefia das Forças Armadas.
O paradoxo da transição chilena é que se pactuou por uma democracia protegida em que a última garantia da soberania seria as Forças Armadas. As bases institucionais, tanto dos Entraves Autoritários como da delimitação da democracia, encontram-se consolidadas na Carta Magna de 1980, cujo demiurgo foi Jaime Guzmán. O processo de transição foi levado a cabo institucionalmente, ou seja, desde a elite política, semelhante ao processo ocorrido no Brasil. Não obstante, aqui não tão articulado e formatado como o caso chileno. Mas coloco o acento e a ênfase no processo de negociação, que foi a saída tangível dentro do marco de possibilidades daquela época. Porém, essa saída pacífica está implicando na atual conjuntura social.
Transição: o fantasma da ditadura
No ano de 1988, o Chile escolhia pela continuidade por mais 8 anos da Junta militar no poder político. Todavia, os cidadãos votaram pelo “não” com 55%, contra 44% de apoio à assiduidade do regime militar. A campanha do “não” ainda é lembrada estando presente na memória coletiva, cujo lema principal foi: “Chile la alegria ya viene”, criando, assim, um imaginário social cheio de emotividades e que, em última instância, através da força de uma simples caneta, conseguiu derrotar toda a força e repressão do regime militar.
Houve muitos momentos de tensão durante o processo de transição, sempre com o medo do fantasma da volta da ditadura. Entre eles, estavam as acusações de corrupção contra a família Pinochet, ou a chegada do primeiro presidente socialista, Ricardo Lagos, que nesse sentido foi similar ao caso do Lula no Brasil. No entanto, as classes reacionárias ficaram atentas e expectantes de um eventual governo de corte socialista. De todo modo, terminou administrando o modelo herdado da ditadura no último ano do seu mandato. Ele foi parabenizado por toda a classe empresarial chilena, pois sua administração garantiu a expansão da classe econômica tendo importantes políticas de contenção social.
Existem entraves autoritários que foram eliminados. Por exemplo, no ano de 2005, durante o governo de Ricardo Lagos, mudaram-se aspectos importantes da Constituição. Entre eles, eliminou-se o rol de proteção das Forças Armadas da institucionalidade, em que as últimas garantias da soberania é o corpo social. Também se lhes outorgaram maiores faculdades ao parlamento, como reformas ao Tribunal Constitucional. Sem dúvida, foram avanços direcionados na perspectiva de uma consolidação democrática. Entretanto, não foram suficientes para denominá-la como tal. Contudo, o Chile ainda é uma sociedade pós-pinochetista e, enquanto não mudar a Constituição de 1980, continuará sendo.
IHU On-Line – Como os partidos políticos chilenos se transformaram após a ditadura? Quais foram as principais mudanças?
Gastón Passi Livacic – Para entender a natureza do sistema de partidos no Chile, tem que se remontar à sua criação. A gênese partidária forja-se em 1856; desse modo, deu origem a um sistema de 3/3 (três terços), dominado entre forças centrípetas e forças centrífugas. Com a chegada da Democracia Cristiana ao poder, o mandato de Eduardo Frei Montalva (1964-1970), as forças centrípetas começaram a ganhar espaço na arena política, o que posteriormente terminaria no Golpe de Estado no governo de Salvador Allende Gossens (1970-1973). O regime ditatorial, em primeiro lugar, fecha indefinidamente o Congresso da República, eliminando da legalidade a ação partidária. No entanto, responsabilizou tanto os partidos políticos como a classe política da crise institucional. O espectro total das forças castrenses visava uma retórica fundacional.
A direita chilena representada por Renovación Nacional e Unión Democrática Independiente não é democrática. Entretanto, nasce nas entranhas da ditadura de modo tal que seu único objetivo é defender a Constituição do demiurgo Pinochet, já que não tem um projeto político estruturado. O apoio à ditadura se dá mediante a interação com eleitores populares que se constroem através de uma relação autoritária e assistencialista nos municípios. Em consequência, a direita política não tem uma maior mudança. No entanto, encontram-se nela fortes componentes conservadores. Consequentemente, com a variável em questão, sua prática procura manter o status quo no sistema político.
A maioria das forças políticas não reconhecidas pelo regime autoritário articulou-se em conjunto para impedir o referendo imposto por Pinochet para sua continuidade por mais oito anos. Essa é a base fundamental para a Concertación – o que provoca uma competição bipolar que vê se aumentada com o sistema binominal. Esse cenário provocou a união de partidos que anteriormente jamais estariam juntos. Entre seus principais, destacam-se o Partido Socialista, Democracia Cristiana, Partido Radical e Partido por la Democracia. Essa clivagem é produzida devido ao trauma da ditadura, à proteção da incipiente democracia que estava se criando, à violação dos direitos humanos, entre outros.
Modelo herdado
A sociedade acreditava bastante na Concertación; ela principalmente respeitava o seu passado, tal como expressa o historiador chileno Gabriel Salazar. Porém, as características dogmáticas mudaram e a Concertación passou a ser o administrador do modelo herdado. Deve-se a isso a pouca aprovação dos cidadãos para com aquela coalizão. Um elemento bastante contraditório diz respeito à longa duração da Concertación. Esta não tem tido efeito nenhum na identidade dos partidos políticos que a compõem. De fato, considero que a falta de ideias, de um novo projeto político e de uma consequente nova estratégia política tem feito com que as identidades individuais ressaltem-se ainda mais.
Os fortes componentes do sistema binominal na eleição de candidatos outorga uma força fictícia à Concertación e à Alianza nos 20 anos de eleições democráticas, e em inúmeras oportunidades têm sido eleitos candidatos independentes. Todavia, na última eleição presidencial o efeito Marco Enriquez Ominami (ex-deputado da Concertación) colocou em tensão o sistema eleitoral. No entanto, o desafio dos integrantes da Concertación para ter primaria na eleição do representante da coalizão de governo que estava no poder. Porém, os altos quadros da coalizão não aceitaram a proposta. Em decorrência disso, ele renunciou e começou uma carreira presidencial de forma independente, quase deixando fora do valotage o presidenciável da Concertación, Eduardo Frei Ruiz Tagle. Esse embate desgastou o governo da época, que começou a sofrer um processo de fuga de importantes políticos do bloco.
Hoje, dentro da Concertación estão tentando uma série de manobras para retornar ao governo. Nesse processo de reformulação pensa-se esquerdizar o bloco através da incorporação do Partido Comunista, partido com o qual a Concertación já tem um pacto de omissão, processo do qual, pela primeira vez, tal partido conseguiu dois escanos na Câmara de Deputados. Agora, porém, está tentando incorporá-los plenamente, o que tem trazido discórdias dentro da oposição, principalmente do lado da Democracia Cristiana. Em última análise, a classe política do Chile não tem enxergado o problema fundamental e, desse modo, está procurando maquiar as soluções cabíveis.
IHU On-Line – Como você caracteriza a atuação do Estado chileno no país?
Gastón Passi Livacic – Claramente caracteriza-se por sua estrutura neoliberalista selvagem, consequência da redução do poder de ação do Estado e com a “conquista” expansionista de espaços públicos por parte dos detentores de meios de produção, tanto chilenos como por parte de capitais estrangeiros. Tudo aquilo, fundado e protegido na Constituição de 1980, nascida autoritariamente com o demiurgo Jaime Guzmán, e a forte influência dos Chicago Boys, no governo militar, para em seguida passar aos tecnocratas na democracia, sintomas muito negativos. No entanto, na maioria das vezes prevalecem as decisões a favor do impacto econômico, em vez de uma análise do impacto político. Ou seja, tal estrutura tem sido edificada para gerar desigualdades. Todavia, a desigualdade funda-se neste elemento: não que as consequências das causas sejam as culpadas, pois o modelo tem essa predisposição. Um desses efeitos é que hoje quatro das 100 famílias mais ricas do mundo são chilenas.
Busca pela modernização do Estado
Outro aspecto relevante do Estado chileno é a busca incessante pela modernização. No entanto, supõe-se que os Estados baseiam-se em princípios weberianos da burocracia. Entendo que ela é eficiente e profissionalizada. Assim, ter um Estado mais moderno ajuda na obtenção de processos burocráticos ordenados para a construção democrática, porém transforma-se numa técnica de governo de domínio e controle, mas, no caso chileno, conta com elementos interessantes. Por exemplo, o “Chile transparente”, que sem dúvida é bom, mas ainda há melhorias a serem conquistadas.
O crescimento econômico chileno ocorre desde 1985 até agora, principalmente pelas reformas neoliberais e pela venda de serviços que anteriormente eram ministrados pelo Estado; por exemplo, o sistema de aposentadoria, o sistema saúde, a educação, entre tantas outras. Além, é claro, das privatizações ocorridas após o golpe militar, entre elas, a Lan Chile.
A participação do Estado chileno é mínima e se expressa no Princípio de subsidiariedade. Portanto, o Estado transformou-se mais do que numa instituição que governa as relações sociais dentro do sistema político: converteu-se numa maquinaria que se preocupa em administrar e racionalizar em torno do econômico.
IHU On-Line – Como você avalia a democracia instituída nos países da América Latina, especialmente no Chile? Os governos avançaram em relação à democracia após a
democratização?
Gastón Passi Livacic – Como expliquei acima, o Chile ainda continua sendo uma sociedade pós-pinochetista. Nesse sentido, a transição para a democracia no Chile fundamenta-se nos entraves autoritários. Sem dúvida, foi a transição mais articulada e “melhor desenhada” olhando e analisando como processo de democracia protegida. Porém, tem-se que considerar o período militar como um processo peculiar dentro da história chilena. O país, no entanto, conta com uma longa tradição democrática (desde 1932 a 1973) se fazemos essa comparação com outros países da região. Tirando-se o Uruguai, que é o outro país com longa tradição democrática na região, os demais países entravam numa etapa importante das suas histórias, pois o processo de transição e consequentemente de consolidação democrática em muitos países da região estavam em seu período mais extenso das suas democracias. Por exemplo, o Brasil já tem 24 anos de democracia ininterrupta passando por Tancredo Neves, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e, atualmente, Dilma Rousseff.
A Bolívia também vive seu período mais extenso de democracia: em toda a sua história já são 29 anos de democracia após a ditadura militar, que terminou no ano de 1982, porém com muitos processos de instabilidade. Um deles foi o caso de Sanchez de Lozada, não obstante com elementos muito interessantes no processo de consolidação democrática, como a criação de uma Assembleia Constituinte na presidência de Evo Morales.
Particularidades
Mas cada sistema político tem sua particularidade. No caso argentino, por exemplo, a guerra contra a Inglaterra e a eventual perda contra os europeus obrigou à rápida saída das forças armadas do poder político forçando uma saída para a democracia. Outro paradoxo é a saída prematura de Alfonsín da presidência, pois não conseguiu concluir o seu mandato devido aos embates da década perdida. O seu sucessor foi Carlos Saúl Menem, quem acelerou as medidas neoliberais, o que levou à explosão do campo social argentino no ano de 2001, cujo presidente da época era Fernando de la Rua. Devido a isso, a Argentina só conseguiu consolidar um modelo democrático no ano de 2003, com a chegada ao poder de Nestor Kirchner.
Cada sistema político teve sua própria particularidade nos processos de transição e consolidação à democracia. Como resultado disso, a democracia tem conquistado terreno importante no âmbito latino-americano, e a resolução de conflito mediante métodos institucionais predominam na região, especificamente na construção das relações cívico-militares. A representação e afirmação da consolidação da democracia na região pode se expressar, por exemplo, pelo repúdio generalizado ao golpe de Estado sofrido por Manuel Zelaya, em Honduras. De fato, na volta a seu país, depois do exílio, ele declarou uma vitória da democracia na América Latina.
IHU On-Line – A relação do Chile com o modelo neoliberal é diferente de outros países da América Latina?
Gastón Passi Livacic – É distinto sim, e têm duas formas de se explicar tal relação. Uma ótica pode ser analisando fatores internos de um país determinado; uma outra forma possível é analisar através da política exterior. Para esse caso, vou desenvolver a segunda variável. Em primeira instância, o Chile é o primeiro lugar do mundo a aplicar as receitas neoliberais. Consequentemente, isso já o faz ter uma particularidade diferente em relação aos outros países da América Latina. Do mesmo modo, o Chile vem trabalhando e executando institucionalmente desde o regime de Pinochet, enquanto para os demais países de América Latina o ponto de inflexão na aplicação de políticas públicas neoliberais é por causa do Consenso de Washington. Por conseguinte, desde os inícios da década de 1990.
O Chile é um dos países que têm mais tratados de livre-comércio no mundo. Nesse momento, ele possui 21 tratados de livre-comércio incluído mais de 50 países. Por outro lado, o Chile pertence, desde o ano de 2010, à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, em que os países integrantes estão comprometidos com as economias de mercado através de sistemas democráticos. Esse grupo detém mais de 75% da riqueza mundial e, entre as características essenciais para ingressar em tal bloco, além das já mencionadas, deve-se preocupar com o desenvolvimento econômico em longo prazo, com a estabilidade macroeconômica, com a elevação dos índices de qualidade de vida e com a estabilidade financeira.
O Chile também pertence, desde 1994, à Cooperação Econômica Ásia Pacífico – APEC (em que o Peru e o México são os outros dois países integrantes na região). Isso demonstra o interesse do Chile em se integrar na economia global. No entanto, sua arquitetura interna se dirige nesse rumo ao encontro do regionalismo, como o Mercosul e suas políticas protecionistas. Embora o Chile seja um membro associado desse conglomerado, não o é em termos econômicos, principalmente por suas medidas protecionistas e pelos custos de entradas das commodities que são negociadas. Isso por vários motivos: o primeiro é de caráter estratégico no âmbito internacional, e não existe sintonia entre a estratégia do bloco Mercosul com a do Chile; do mesmo modo, a leitura chilena do Mercosul é de que se trata de uma plataforma política para mitigar a longa história de rivalidade entre o Brasil e Argentina.
IHU On-Line – No Brasil, nos últimos anos o governo tem incentivado o ingresso universitário em universidades privadas via o ProUni, mas reduz o investimento no ensino básico. Quais as implicações, vantagens e desvantagens desse modelo educacional para o futuro?
Gastón Passi Livacic – Políticas públicas mal articuladas em matéria educacional condicionam os níveis de desigualdade, o que se vê refletido no Brasil nos altíssimos indicadores de desigualdade que o caracterizam. Um exemplo disso é o índice Gini. A educação tem de ser pensada e planejada como um sistema total. Por conseguinte, é um erro analisá-la como singularidades. No entanto, é o conjunto que a conforma, e a focalização dela deriva em intensos problemas. Porém, é preciso entender alguns elementos históricos para poder discutir em torno disso, mais ainda nas análises de um sistema político em particular.
No caso brasileiro, a antípoda da política educacional enquadra-se nesse sentido, trazendo uma concatenação de efeitos, um orçamento generoso para o mundo acadêmico universitário, porém num orçamento estreito para o ensino fundamental e ensino médio. Isso se vê refletido através de diversas formas. De um lado, o Brasil se apresenta como o país de América Latina que tem as melhores universidades, entre as dez primeiras ele contém oito universidades classificadas no Top Teen. Além disso, e já abarcando uma dimensão mais abrangente, estimo fazer especial menção à Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila, que se encontra em Foz do Iguaçu e que foi criada para fortalecer espaços de integração dos estudantes dessa região, enquadrando-se na função de líder regional do Brasil.
Não obstante, em matéria escolar, o Brasil apresenta paupérrimos índices nesse tópico. Institucionalmente falando, existe uma falta de coordenação e comunicação entre os diferentes atores e instituições que interatuam no processo. Nesse aspecto, uma política intersetorial ajudaria em sua articulação, pois professa pela cooperação, flexibilidade, coordenação e comunicação contra a “balcanização” da política pública.
Políticas
Sociologicamente falando, esse quadro traz consigo implicâncias negativas para o desenvolvimento do país, devido aos implícitos mecanismos de violência simbólica. No entanto, esse aumento das verbas para o mundo acadêmico, além da vontade política em gerar conhecimento, também funciona para manter a engrenagem da economia funcionando. Em consequência, grande parte do capital humano que se está criando corresponderia à sociedade que mantém um capital social e um habitus dotado socialmente desse poder, por outro, o Bolsa Escola ajuda nos índices de deserção escolar, além de ser uma política de Estado que o Brasil há muito tempo necessitava para a consolidação de uma classe média, pois era uma dívida-país e, nesse sentido, tem que ser analisado como uma medida paliativa, e não estrutural. No entanto, o paternalismo e o assistencialismo fazem recuar nos intentos de melhora do sistema educativo.
O ensino superior privado sempre é uma opção para a geração de conhecimento, porém sempre deve estar regulado e subordinado ao Estado. Principalmente o sistema creditício deve ser analisado como uma opção de profissionalização e de assenso social, e não como uma forma de usura e gerar uma má educação. Nesse sentido, estimo acertada a ideia do ProUni, embora não conhecendo-a em profundidade. Porém, pelo fato de ser uma entidade federal que empresta o dinheiro, ao contrário do que acontece no Chile, em que tanto o Estado chileno como as famílias são obrigadas a “se ajoelhar” ante a iniciativa privada.
IHU On-Line – Qual o peso político do movimento estudantil chileno?
Gastón Passi Livacic – Para analisar o real peso do movimento estudantil no Chile, temos que analisar suas rupturas e continuidades no sistema político. As demandas educacionais não respondem somente a este momento. De fato, as demandas por outro modelo educativo vêm irrompendo no sistema há alguns anos desde a Revolución de los pinguinos, no ano de 2006 (apelidados desta forma por sua vestimenta parecida com os pinguins) onde se reclamava pela desmunicipalização do ensino escolar, além de protestar pela gratuidade das provas de seleção universitária que têm um custo de 60 reais aproximadamente, entre outras demandas. Houve muitos protestos, manifestações sociais, marchas. No entanto, o problema se institucionalizou com os estudantes.
As manifestações do ano passado acrescidas das manifestações sociais atuais, além da revolução dos pinguins, demonstram que o peso do movimento é contundente existindo essa vontade coletiva contínua de romper com o modelo educativo neoliberal. Nesse sentido, a revolução pinguim e as atuais manifestações têm que ser analisadas como um processo progressivo contra a imposição educativa feita durante a ditadura e a consolidação durante a vida democrática.
Em 20 anos de governo, a Concertación não soube responder às demandas feitas pelos estudantes chilenos, tanto aos pinguins como aos estudantes universitários. Suas preocupações foram mais ligadas a manter e administrar essa democracia protegida, estabelecendo uma democracia do consenso. Porém, nunca se priorizou construir uma democracia sólida nem robusta. Tudo se deu através do consenso entre as duas alianças governantes nunca ouvindo o que a sociedade reclamava. No entanto, a direita tem procurado defender as bases institucionais do modelo.
Por outro lado, a Concertación demonstrou ser um bloco político timorato, o que se expressa nas palavras do ex-ministro de defesa e ex vocero de governo, Francisco Vidal: “Le tuvimos miedo a la derecha”, falando sobre a atual conjuntura.
Muitos falam que a força do movimento tem estado dirigida contra a direita política, enquanto que a Concertación tem conseguido manter políticas de contenção social, além de ser um pouco mais aceita do que a direita. Não obstante, é um processo acumulativo que iria ocorrer tanto com um presidente da direita como da Concertación, já que em última análise o que demanda o corpo social é uma democracia mais participativa e com verdadeiras instâncias de representação e rendição de contas por parte da classe política, como também em gerar uma política de Estado em matéria educacional forte. No entanto, o problema encontra-se arraigado na constituição de 1980.
IHU On-Line – Como a sociedade chilena se manifestou diante das recorrentes manifestações de estudantes ao longo do ano passado?
Gastón Passi Livacic – Primeiro, se analisarmos as enquetes, os índices de apoio são fortes. Por exemplo, na última enquete da CEP do ano passado, menciona-se que mais de 70% dos cidadãos aprovam as manifestações sociais. Tais demandas contam com o apoio da sociedade. Ao mesmo tempo, essa pesquisa aponta que 50% da população ficou incomodada com a forma de ação do corpo estudantil, pois não está de acordo com os atos violentos, mormente ocorridos nesses protestos. Porém, as enquetes somente são uma radiografia social de um momento em particular, e esse aspecto considera válidas as demandas principalmente porque a livre concorrência educacional universitária afeta os bolsos da maioria das famílias chilenas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os dilemas da democracia chilena. Entrevista especial com Gastón Passi Livacic - Instituto Humanitas Unisinos - IHU