Segurança Pública: o que fazer. Artigo de Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Miriam Krenzinger

Foto: Pedro Guerreiro | Agência Pará

08 Novembro 2025

Após ação brutal no Rio, direita busca explorar eleitoralmente o medo e colocá-lo no centro da agenda brasileira. Governo hesita. Mas alternativas, concretas e já testadas em diversos pontos do mundo, pode refundar a Segurança e as Polícias.

O artigo é de Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Miriam Krenzinger, publicado por Outras Palavras, 06-11-2025.

Luiz Eduardo Soares é antropólogo e cientista político, professor da Cátedra Patricia Acioli do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, ex-secretário nacional de Segurança Pública, ex-subsecretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro e ex-secretário municipal de Prevenção da Violência em Porto Alegre e Nova Iguaçu, autor de “Escolha sua distopia; ou pense pelo avesso” (Edições 70, 2025).

Marcos Rolim é pesquisador, membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Professor da Universidade Lasalle em Canoas (RS). Autor, entre outros de: “A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no séc. XXI” (Zahar) e “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris).

Miriam Krenzinger é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq "Núcleo Políticas de Prevenção da Violência, Acesso à Justiça, Educação em Direitos Humanos e Gênero". Co-coordenadora do Observatório dos Conselhos e Observatório do Feminicídio no Estado do Rio de Janeiro. Ex-diretora do Centro de Observação Criminológica do Rio Grande do Sul.

Eis o artigo.

O controle territorial por grupos armados no Rio de Janeiro submete a população residente nessas áreas a um domínio tirânico e a toda sorte de abusos, incluindo a cobrança de taxas por bens e serviços e interdições ao exercício de direitos básicos. Trata-se, portanto, não apenas de um sério problema de segurança pública como de uma forma de negar aos mais pobres o respeito e a condição plena de cidadania. Esse controle territorial armado é exercido por dois tipos de organizações criminosas: as facções criminais e as milícias.

Durante o governo Cláudio Castro, as facções e as milícias expandiram seus territórios, sendo que as milícias mais que dobraram o número de pessoas sob seu domínio. Atualmente, mais de dois milhões de pessoas vivem em áreas controladas por milícias no Rio. Por qualquer indicador de gravidade possível, o desafio de desmontar as organizações milicianas é, de longe, o mais urgente e o mais importante pela simples razão de que as milícias são formadas sobretudo por policiais e ex-policiais e não há como se pensar em qualquer política de segurança séria no RJ se as instituições policiais seguirem infiltradas pelo crime organizado.

O crime organizado se infiltrou nas instituições policiais, porque elas operam em uma moldura institucional de ampla autonomia e nenhum controle. A Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público (MP) a missão do controle externo da atividade policial, missão que nunca foi cumprida efetivamente. No caso do RJ, a omissão institucional é mais pronunciada e tem se confundido com a conivência com a violência policial e as práticas de extermínio. Entre 2003 e 2024, 22.361 pessoas foram mortas por ações policiais no estado do Rio de Janeiro. Menos de 10% dos casos chegaram a julgamento. O MP do RJ tem se colocado como aliado do governo do Estado; foi contrário à ADPF 635 e, diante do questionamento que o procurador federal Dr. Julio Araújo dirigiu ao governador, depois da chacina, solicitou ao Conselho Nacional do MP que impedisse sua atuação.

Também nesse ponto, o governador Cláudio Castro ofereceu valiosa contribuição às milícias no momento em que garantiu às Polícias Civil e Militar duas Secretarias de Estado não subordinadas a um órgão centralizado de gestão. A mensagem, desde o início, não poderia ser mais clara: “façam o que vocês quiserem”. As milícias apreciaram muito.

A ausência de controle efetivo sobre as polícias é funcional à violência e à corrupção, irmãs siamesas que crescem nas gestões ineptas ou sócias do crime e se disseminam em metástase pela máquina pública. Vejamos o exemplo clássico do fenômeno que esteve na gênese da degradação policial fluminense: quando a autoridade superior concede ao policial na ponta liberdade para matar (não se trata de legítima defesa, por óbvio), concede-lhe também liberdade para, em vez de matar, negociar a sobrevivência do suspeito. A vida converte-se numa moeda, que se inflaciona célere e indefinidamente. Os policiais dispostos a vender a sobrevida do suspeito se organizam e as permutas escalam do varejo ao atacado, até que se firmem pactos, acordos, os “arregos”, fazendo com que muitos profissionais da segurança sejam sócios do crime. Nascem dessa dinâmica perversa não apenas os esquadrões da morte e scuderies policiais, como as próprias milícias. Vendo os acordos e pagamentos se processando sem pudor, desde cedo, os jovens dos bairros pobres aprendem a olhar com desconfiança não só as polícias, mas também a Justiça criminal, a política e o conjunto das instituições.

O resultado tem sido expresso por elevados indicadores de letalidade por ação policial e pela absoluta ineficiência das “operações” sempre realizadas em comunidades pobres nas quais jovens pretos são chacinados e policiais são expostos a riscos desnecessários. Nos episódios necrófilos de 28 de outubro, que envolveram mutilações, facadas e decapitação de suspeitos, o Estado não controlou o território sequer por um dia. Logo após a matança de suspeitos e a morte de quatro policiais, as dinâmicas criminais anteriores retomaram seu curso e o domínio territorial do tráfico seguiu inabalado.

A situação dramática em que nos encontramos na área da Segurança é exatamente o legado de anos em que se faz mais do mesmo, sobretudo no Rio de Janeiro: mais descaso ante o tráfico de armas e a epidemia de homicídios, mais descaso com a perícia e a investigação inteligente, mais descoordenação entre as instituições, mais tolerância com a corrupção e a brutalidade policiais, mais negligência com o controle das polícias, mais encarceramento, mais abandono do sistema penitenciário, mais guerra às drogas, mais descaso com os policiais como profissionais e cidadãos – inclusive com sua formação, sua saúde e segurança -, mais recusa em repensar a arquitetura institucional da segurança pública que herdamos da ditadura, mais indiferença no tratamento de dados, pesquisas, evidências e avaliações, mais improviso voluntarista e reativo, mais cumplicidade corporativista – mais cloroquina e negacionismo, menos vacina, prevenção e conhecimento.

Diante de um quadro dessa gravidade, as posições sustentadas pelo governo federal tem sido, até agora, parte do problema e não das soluções. É inadmissível que o Brasil, um dos países mais violentos do mundo, não conte sequer com um Ministério da Segurança Pública capaz de exercer a governança no setor e ser o centro proponente de políticas públicas com base em evidências. Ao se afastar do tema da segurança, o governo federal preferiu habitar o deserto herdado, permitindo que os seres do deserto, como Cláudio Castro, falassem sozinhos.

Para enfrentar os complexos problemas da Segurança Pública no Rio de Janeiro, seria preciso adotar medidas iniciais e estruturantes. Entre elas, propomos 25 iniciativas:

Uma vez formado o ministério, se poderá abrir no Brasil uma agenda de reformas na Segurança Pública, envolvendo mudanças de médio e longo prazos, como, por exemplo, a refundação do modelo de polícia herdado do Império e da ditadura. Nesse tema, destacamos a importância de que cada polícia tenha apenas uma carreira, como ocorre em todo o mundo, de modo que se assegure aos policiais as condições necessárias de valorização e progressão funcional e que se rompa com as práticas autoritárias internas às corporações e que vitimam os policiais em posições subalternas. A introdução do ciclo completo para todas as polícias é outra reforma essencial para que o Brasil possa ter mais eficiência na área; assim como o estabelecimento de padrões nacionais de recrutamento e formação policial; padronização de registros; garantia de transparência e nova sistemática de controle externo.

O momento, sobretudo, exige discernimento, ousadia e disposição para pensar políticas em diálogo com as evidências científicas e para ouvir os bons policiais e a população oprimida por uma “guerra” que só produz mais sofrimento e votos para demagogos.

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