08 Novembro 2025
Um estudo documenta a temperatura extrema dos lagos amazônicos durante a seca histórica de 2023, que devastou espécies aquáticas e isolou comunidades ribeirinhas.
A reportagem é de Selva Vargas Reátegui, publicada por El País, 07-11-2025.
Os ecossistemas aquáticos em todo o mundo estão aquecendo, e a Amazônia não ficou imune a esse fenômeno. Nos últimos anos, os rios e lagos da maior floresta tropical do planeta registraram níveis de calor sem precedentes, um sintoma do aquecimento global que está transformando os trópicos. Em 2023, uma seca e uma onda de calor extrema elevaram a temperatura da água a níveis nunca antes registrados: até 41 graus Celsius, de acordo com um estudo publicado nesta quinta-feira na revista Science. Esse aquecimento impactou particularmente as espécies marinhas e a sobrevivência das comunidades ribeirinhas que dependem da água para seu sustento.
O estudo, liderado pelo pesquisador brasileiro Ayan Fleischmann, do Instituto Mamirauá para o Desenvolvimento Sustentável, analisou dez lagos na Amazônia central. Em cinco deles, a temperatura da água ultrapassou os 37 graus Celsius. No Lago Tefé, as medições chegaram a 41 graus Celsius em toda a sua coluna d'água, que tinha apenas dois metros de profundidade. O cientista descreveu o evento como “uma tempestade perfeita”: radiação solar extrema, pouca profundidade, ventos fracos e água turva, fatores que impediram a dispersão da luz solar.
Uma crise ecológica e humanitária
A seca não só baixou o nível dos rios, como também os aqueceu a temperaturas extremas. “Era impossível colocar um dedo na água. Estava tão quente que os animais não tinham onde se abrigar. Os peixes e os botos morreram porque não havia água fria no fundo do lago”, lamenta. “É uma crise ecológica e humanitária ao mesmo tempo.”
Todos os componentes do ecossistema — peixes, botos, fitoplâncton — foram afetados. A equipe documentou mais de 200 botos mortos no Lago Tefé. “Essas temperaturas excedem a tolerância térmica da maioria das espécies amazônicas. Mas, por algum motivo, os botos não fugiram; permaneceram no lago até morrerem.” O aquecimento também afetou a cadeia alimentar. “O lago ficou vermelho devido às algas que mudaram sua pigmentação”, observa Fleischmann.
Segundo Fleischmann, percorrer a região devastada pela seca provou ser um desafio, não apenas devido aos problemas de mobilidade, mas também pelo impacto emocional que causou na equipe. “O que normalmente levava três horas de barco passou a levar oito ou dez. E além do calor, muitos colegas ficaram profundamente afetados pelo que viram: centenas de carcaças de botos, comunidades inteiras isoladas, pessoas sem água ou comida.”
O impacto, explica Pepe Álvarez, biólogo espanhol radicado no Peru, foi devastador para a vida aquática. Não apenas pelas mortes, mas também pela interrupção de seus ciclos reprodutivos. Peixes que normalmente liberam ovos em grandes cardumes (como carachamas e boquichicos) dependem das cheias anuais para se reproduzir. No entanto, durante as secas daqueles anos, os níveis dos rios caíram tanto que milhares de peixes ficaram presos em lagos isolados. “No Peru, não houve tanta mortalidade visível quanto no Brasil, mas houve uma escassez brutal de peixes.”
Quando o rio seca, a vida seca
A seca paralisou a vida cotidiana na Amazônia. Milhares de famílias ribeirinhas ficaram sem transporte, água e peixe, sua principal fonte de alimento. Um relatório da Unicef de novembro de 2024 estimou que mais de 420 mil crianças foram afetadas pela falta de água e pela impossibilidade de frequentar a escola. No Brasil, mais de 1.700 escolas e 760 postos de saúde ficaram inacessíveis devido à baixa do nível dos rios.
“Quando os peixes morrem, a segurança alimentar fica comprometida”, resume Fleischmann. Transporte, educação e comércio dependem da água nas comunidades ribeirinhas. “Se a navegação se torna impossível, toda a economia e a sociedade da região são afetadas.”
O artigo de Fleischmann e sua equipe se concentra em 2023, ano em que começaram a estudar o fenômeno. No entanto, ele se estendeu até 2024. "Podemos afirmar que foi a pior seca já registrada", declara o hidrólogo.
"Não sabemos o que aconteceu nos séculos anteriores, mas podemos afirmar com certeza, com base nos dados que temos, que foi a pior seca em pelo menos 120 anos."
Segundo pesquisadores, a região está passando por um processo contínuo de aquecimento — 0,6°C por década desde 1990 — impulsionado pelo desmatamento, secas extremas e mudanças climáticas globais. “Os lagos têm aquecido continuamente nas últimas décadas e, quando essa tendência se combina com secas extremas, cria as condições ideais para que as águas aqueçam ainda mais e desencadeiem o que chamamos de onda de calor no final da temporada”, explica Fleischmann.
Para o Dr. Adalberto Val, que passou mais de quarenta anos estudando a fisiologia dos peixes amazônicos em seu laboratório em Manaus (Brasil), a mudança climática atua aqui como um fator multidimensional: “Ela afeta a floresta, o ar, os rios, os lagos e tudo o que vive neles. ”
Segundo um pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a maioria dos organismos aquáticos da Amazônia é extremamente sensível ao calor. “Quando a temperatura sobe, as águas pobres em oxigênio se tornam ainda mais hipóxicas. Em áreas como a bacia do Rio Negro, onde a água já é naturalmente ácida, ela se torna ainda mais ácida. É uma combinação letal.” O resultado, afirma ele, ficou evidente durante as secas de 2023 e 2024: uma mortandade massiva de animais. “Os peixes não conseguem regular a temperatura corporal. Quando a água atinge 41 graus Celsius, eles simplesmente param de funcionar: suas enzimas se desligam, seu metabolismo entra em colapso e eles morrem.”
O cientista descreve um cenário de desequilíbrio ecológico. “O Lago Tefé perdeu 75% da sua área. Passou de 400 para 100 quilômetros quadrados. De treze metros de profundidade, encolheu para meio metro.” E os botos, capazes de regular a temperatura corporal, não conseguiram sobreviver. “Eles precisam gastar uma quantidade enorme de energia para se manterem vivos e, em um ambiente degradado, sem comida ou abrigo, não conseguem sustentar esse esforço.”
Um padrão que se repete
As secas de 2023 e 2024 não foram incidentes isolados. Dois anos antes, o Brasil havia sofrido a pior seca em quase um século, com índices pluviométricos recordes de baixa e graves impactos na agricultura e no setor energético.
Em 2023, o nível dos rios baixou até 20 centímetros por dia. Mas 2024 marcou uma melhora notável: o desmatamento na Amazônia caiu para 5.796 km², 11% a menos que no ano anterior, o melhor resultado em mais de uma década. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com a ministra Marina Silva à frente do setor ambiental, intensificou a fiscalização, reativou o Fundo Amazônia e coordenou 19 ministérios em uma cruzada para conter a exploração madeireira. Esse esforço coincide com a COP30 (Cobertura das Nações Unidas para o Clima), que será realizada de 10 a 21 de novembro deste ano em Belém, no coração da Amazônia.
Para Núria Bonada, professora de Ecologia da Universidade de Barcelona, as mudanças climáticas estão alterando profundamente os padrões hidrológicos do planeta. "Cerca de 60% da rede fluvial mundial sofre com secas todos os anos, e tudo indica que elas se tornarão mais frequentes e prolongadas", alerta. Nesse contexto, a bacia amazônica — pouco monitorada e com alta biodiversidade — emerge como um dos sistemas mais vulneráveis.
Ainda assim, Ayan Fleischmann resiste ao fatalismo: “Duzentos botos morreram no Lago Tefé, mas existem milhares de lagos onde isso não aconteceu. Ainda há tempo para mudar e evitar que isso aconteça novamente.”
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