São John Henry Newman e o fim da universidade católica. Artigo de Gabriel Ferreira

Foto: Vatican Media

05 Novembro 2025

“A missão da universidade não pode consistir apenas em formar mão de obra para uma sociedade que dá repetidas mostras de ignorar completamente os fins da vida humana. Ao contrário, ela só pode encontrar sua finalidade e, portanto, fugir de seu ocaso, se assumir claramente seu propósito de ser força ostensiva de progresso do espírito humano. E isso porque é um fato ainda mais notável hoje do que no tempo de Newman, que desde o surgimento das universidades, há 800 anos, a humanidade ainda não tenha absolutamente inventado nenhuma outra instituição integralmente dedicada ao que o doutor da Igreja chama de 'cultivo intelectual' com vistas ao Conhecimento que engloba “as relações entre ciência e ciência e suas interdependências” com o objetivo de atingir uma 'visão totalizante da verdade'”. 

O artigo é de Gabriel Ferreira, graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento/SP (2007), mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009) e doutor em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, com período sanduíche no Sren Kierkegaard Forskningscenteret, em Copenhague (2014). É professor do PPG em Filosofia da Unisinos e do curso de Medicina na Escola de Saúde.

Eis o artigo.

Em 1832, o então pastor anglicano John Henry Newman fez sua primeira viagem à Itália. Em meio a diversas manifestações daquilo que então julgava ser um amontoado de heresias e superstições, tal como “ouvir a missa a fim de obter uma boa pescaria”, Newman caiu gravemente doente, ao mesmo tempo em que ficou preso por três semanas em Palermo, por falta de um navio que pudesse levá-lo de volta à Inglaterra. Segundo o que narra em seu escrito autobiográfico, Apologia pro vita sua, foi ali, no Estreito de Bonifácio, em uma situação que parece ter sido existencialmente angustiante, que Newman escreveu os primeiros versos de um de seus mais belos poemas, The Pillar of the Cloud:

Lead, Kindly Light, amidst th'encircling gloom,
Lead Thou me on!
The night is dark, and I am far from home,
Lead Thou me on!
Keep Thou my feet; I do not ask to see
The distant scene; one step enough for me.

[Guia-me, Luz bondosa, em meio à treva que me cerca,
Guia-me Tu!
A noite é escura, e estou longe de casa,
Guia-me Tu!
Ampara meus passos; não peço ver
O caminho distante — um passo basta para mim.]

A imagem de uma “coluna de nuvens” é, evidentemente, retirada do livro do Êxodo, capítulo 13. Ali, o autor sagrado nos diz que Deus usou uma coluna de nuvens durante o dia e uma coluna de fogo durante a noite, para guiar o povo durante sua peregrinação pelo deserto. E no versículo 22 ficamos sabendo que o Senhor “nunca tirou de diante do povo a coluna de nuvem, de dia, nem a coluna de fogo, de noite”. O que Newman escreveu há quase dois séculos sobre a sua própria condição, invocando um amparo para seus passos naqueles momentos turbulentos, parece agora poder ser dito dele mesmo e de suas ideias sobre educação.

 

No último dia 1º de novembro, solenidade de Todos os Santos, e por ocasião do fim do Jubileu do Mundo Educativo, o papa Leão XIV declarou São John Henry Newman o 38º doutor da Igreja e copatrono, junto com Santo Tomás de Aquino, da educação católica. Para aqueles que não conhecem o pensamento de Newman, tudo isso pode parecer uma daquelas idiossincrasias da Igreja tão similares às que o próprio John Henry vira nos costumes católicos antes de sua conversão. Qual sentido algo como uma declaração de patronato pode ter para nós, no século XXI, já tão distantes desse tipo de ideia? O que nos pode ser acrescentado por esse gesto do papa? Ainda mais, o que Newman pode oferecer para pensarmos a educação hoje, com suas circunstâncias e particularidades tão próprias de um mundo atravessado por desafios que pareceriam um sonho a um homem europeu típico do século XIX como John Henry? Creio que a resposta essencial seja a de que Newman conseguiu compreender o fenômeno da educação humana da forma que apenas aqueles que realmente podem oferecer algo de valor compreendem: ele só foi capaz de fornecer algo como uma solução porque, em primeiro lugar, foi capaz de bem entender seus problemas.

Revisitando aspectos da sua vida em 1863, um Newman de então 62 anos afirmava que “do começo ao fim, a educação tem sido o meu caminho”. Para além da sua história pessoal, intimamente relacionada com a Universidade de Oxford no início de sua carreira e, depois de sua conversão, inclusive com a fundação de uma universidade católica na Irlanda, Newman também elegeu a instituição universitária como um de seus grandes objetos de reflexão. É dessa vivência profunda que emergem as preleções que compõe sua obra magna, The Idea of a University [A ideia de uma universidade], de 1873. Num contexto de oposição ao positivismo reinante, as conferências que compõem a obra são uma resposta a uma força cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir. E aqui há já um aspecto importante. Embora Newman tenha escrito sobre educação em geral, é bastante significativo que ele tenha dedicado seu esforço intelectual mais robusto ao ensino superior. Ao contrário do que hoje poderia nos parecer mais intuitivo quando pensamos em educação, isto é, voltarmo-nos aos primeiros anos de formação, o pensamento de Newman reforça de início algo que atualmente nos aparece um tanto esmaecido, a saber, que a universidade é o ambiente integralmente dedicado a que nós, seres humanos, alcancemos o nosso apex mens ou, em suas palavras, aquilo que merece o nome com maiúscula: Knowledge [Conhecimento]. É, portanto, à universidade, e não a outros estamentos da educação formal, que devemos olhar a fim de ver a plenitude do intelecto humano. De fato, é esse mesmo o seu traço distintivo:

A Universidade [...] tem este propósito e esta missão: não busca imprimir uma moral nem produções mecânicas; não pretende exercitar a mente nem na arte nem no dever; sua função é o cultivo intelectual; aqui ela pode deixar seus estudantes, pois já cumpriu sua tarefa quando realizou isso. Ela educa o intelecto para raciocinar bem em todos os assuntos, para avançar em direção à verdade e para apreendê-la (NEWMAN, 1982, p. 125-126).

Disse que essa ideia nos parece um tanto desbotada porque o que hoje aparece em grande parte do mundo como uma “crise das universidades” está, a meu ver, radicada precisamente no esquecimento da natureza do ensino superior tal qual descrito por Newman.

Há exatamente um ano, uma reportagem do The New York Times apontava que o número de ingressantes nas universidades americanas estava em franco declínio. Matérias como essa são vistas, aqui e ali, repetidas vezes. As razões apontadas são diversas, mas mesmo com as particularidades sendo distintas nos Estados Unidos, na Europa, na China e na América Latina, em todo o mundo algumas características parecem se repetir. Em primeiro lugar, a universidade foi progressivamente abdicando do seu papel de ser uma coluna luminosa para as sociedades nas quais estão inseridas e tornou-se uma caricatura de si mesma. No quinto discurso que compõe A ideia de uma universidade, intitulado Conhecimento como seu próprio fim, Newman afirma:

Vê-se, então, que há aqui dois métodos de educação: o fim de um é ser filosófico; o do outro, ser mecânico. O primeiro eleva-se em direção às ideias gerais; o segundo se exaure no que é particular e externo. Que não se pense, contudo, que nego a necessidade ou menosprezo a utilidade de uma atenção voltada ao que é particular e prático, como convém às artes úteis ou mecânicas — a vida não poderia prosseguir sem elas; devemos a elas o bem-estar de cada dia; o seu exercício é dever de muitos, e devemos a esses muitos uma dívida de gratidão por cumprirem tal dever. Digo apenas que o conhecimento, na medida em que tende cada vez mais a se tornar particular, deixa de ser conhecimento (NEWMAN, 1982, p. 112).

Ora, o que Newman diz aí está em franca oposição com o lugar e o papel das universidades tal como são vistas nos dias de hoje. Elas paulatinamente foram se identificando com a função de serem meios para a aquisição de um ofício, aos moldes dos cursos profissionalizantes. Desse modo, como indica a matéria do jornal norte-americano, uma vez que uma parcela das novas profissões nem sequer depende de diplomas ou conhecimentos muito específicos, os cursos universitários são considerados simplesmente obsoletos. Por que assumir uma dívida que muitas vezes se arrasta por toda a vida, se o que se entrega pode, em tese, ser adquirido por tutoriais no YouTube? Note-se que Newman de maneira nenhuma despreza os conhecimentos específicos e os derivativos tecnológicos sem os quais a própria manutenção da vida humana torna-se virtualmente impossível. Contudo, o excerto acima traz o lembrete de que tais saberes estão, por natureza, subordinados ao que é mais alto e excelso no intelecto humano, a saber, que ele encontre no saber a sua própria realização. Assim, é fundamental lembrar que

O conhecimento é capaz de ser seu próprio fim. Tal é a constituição da mente humana, que qualquer tipo de conhecimento, desde que o seja realmente, é em si mesmo a sua recompensa. E se isso é verdadeiro a respeito de todo conhecimento, também o é daquela filosofia particular que concebo como uma visão abrangente da verdade em todos os seus ramos, das relações de uma ciência para com outra ciência, de suas interdependências e de seus respectivos valores (NEWMAN, 1982, p. 103).

Conhecimento” aqui não designa mera acumulação de informações, mas uma forma de inteligibilidade que articula os diversos ramos do saber numa ordem de significação. É essa unidade orgânica que torna o conhecimento liberal e o distingue do saber técnico. Disso se segue uma lição valiosa da qual também nos distanciamos. Da crise ambiental aos grandes problemas morais, dos embates políticos irresolúveis às guerras entre as nações, é possível dizer que todos eles são, em maior ou menos grau, afetados pelo desprezo pelo conhecimento no sentido defendido por Newman. E a estranheza que o que acabo de escrever pode causar em alguns dos leitores é justamente índice do problema. É só quando a ideia de conhecimento é esvaziada de seu sentido omniabrangente para se identificar com um conjunto de técnicas instrumentais segundo a lógica do mercado, que ele se torna semanticamente distante das nossas ideias de valores e princípios. É o conhecimento que torna possível estabelecer as importâncias relativas entre as diversas ciências e, ainda mais essencial, entre elas e os valores e perspectivas morais. Ora, não estamos errados em dizer, portanto, que a crise das universidades contribui também para a crise do conhecimento na qual radica a crise humana atual.

É por essas razões que a reafirmação da figura de São John Henry Newman como doutor da Igreja e patrono da educação por Leão XIV não é apenas um gesto vazio ou uma excentricidade de uma Igreja decadente. Leão quer fazer ressoar novamente o que Newman já havia afirmado há quase 150: a educação humana pressupõe uma correta antropologia, uma resposta precisa à pergunta “o que é o ser humano?”, sem a qual ela se distorce e se enfraquece. Assim, só é possível responder à pergunta sobre o fim da educação quando se tem presente, de maneira clara e distinta, o que é a finalidade da vida humana. Portanto, o fim supremo da universidade – especialmente da universidade católica – é o de despertar no ser humano, formado pelo Lógos e chamado a conhecê-Lo, aquela potência interior que o move da simples faculdade de pensar à visão mais alta da verdade, em que o intelecto reconhece o próprio Deus de quem procede. E, uma vez mais, a estranheza que termos como “conhecimento” e “verdade” podem causar aos nossos ouvidos é mais um sinal da necessidade da reflexão de Newman.

É imperativo, portanto, ver que no século XXI, de maneira ainda mais premente do que em fins do XIX, a missão da universidade não pode consistir apenas em formar mão de obra para uma sociedade que dá repetidas mostras de ignorar completamente os fins da vida humana. Ao contrário, ela só pode encontrar sua finalidade e, portanto, fugir de seu ocaso, se assumir claramente seu propósito de ser força ostensiva de progresso do espírito humano. E isso porque é um fato ainda mais notável hoje do que no tempo de Newman, que desde o surgimento das universidades, há 800 anos, a humanidade ainda não tenha absolutamente inventado nenhuma outra instituição integralmente dedicada ao que o doutor da Igreja chama de “cultivo intelectual” com vistas ao Conhecimento que engloba “as relações entre ciência e ciência e suas interdependências” com o objetivo de atingir uma “visão totalizante da verdade”. É isso que faz dela propriamente um “ensino superior”; que em conjunto com os saberes específicos de cada área, ela conceda as condições de possibilidade para que o aprendiz possa não apenas colocar em marcha seu ofício, mas avaliá-lo, incrementá-lo e compreendê-lo sobre o pano de fundo das demais expressões espirituais humanas a que chamamos de cultura:

Ele [o aluno] apreende os grandes contornos do conhecimento, os princípios em que este se funda, a hierarquia de suas partes, suas luzes e sombras, seus grandes e pequenos pontos — de um modo que, de outra forma, não poderia apreendê-los. É por isso que sua educação é chamada de “liberal”. Forma-se, assim, um hábito da mente que perdura por toda a vida, cujos atributos são a liberdade, a equidade, a serenidade, a moderação e a sabedoria — ou aquilo que, em outro Discurso, ousei chamar de um hábito filosófico. Eis, portanto, o fruto particular da educação oferecida por uma Universidade, em contraste com outros lugares ou modos de ensino: este é o principal propósito de uma Universidade no trato com seus estudantes (NEWMAN, 1982, p. 101-102).

Tal como a coluna que guiava o povo no deserto, a universidade, quando fiel a seu fim último, pode ainda iluminar o caminho do espírito humano — não para mostrar com clareza todo o percurso, mas para conduzi-lo, passo a passo, em direção a seu pleno desenvolvimento.

Nota

[1] As traduções são de responsabilidade do autor. 

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