“Se a Europa não abandonar sua religião do livre comércio, corre o risco de um desastre social e industrial”. Artigo de Thomas Piketty

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09 Outubro 2025

“A principal dificuldade é que a Europa permanece profundamente comprometida com o mais absoluto livre comércio. A União Europeia certamente reconhece a importância de trabalhar por um desenvolvimento sustentável e equitativo, mesmo nos artigos fundadores de seus tratados. Mas, quando se trata de ação, reluta em se afastar muito claramente do livre comércio absoluto, por medo de cair em uma escalada interminável de protecionismo”. A reflexão é de Thomas Piketty, em artigo publicado por Le Monde e reproduzido por Sin Permiso, 05-10-2025. A tradução é do Cepat.

Thomas Piketty é diretor de Estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da Escola de Economia de Paris e autor de O capital no século XXI (2014) e Capital e ideologia (2020), ambos publicados pela Editora Intrínseca.

Eis o artigo.

Diante da onda trumpista, a Europa, assim como outras partes do mundo, não tem escolha senão repensar fundamentalmente sua doutrina comercial. Sejamos claros: se a Europa não abandonar urgentemente sua religião do livre comércio, corre o risco de um desastre social e industrial sem precedentes. E sem nenhum benefício para o planeta – muito pelo contrário.

Para definir suas tarifas, Donald Trump seguiu uma lógica estritamente nacionalista (o superávit bilateral com os Estados Unidos) e de forma bastante caótica, conforme seu humor mudava. O oposto deve ser feito: as tarifas alfandegárias devem ser fixadas com base em princípios universalistas e previsíveis.

A primeira justificativa para os direitos aduaneiros é que o transporte internacional de mercadorias causa uma poluição específica (7% das emissões globais). Os economistas, durante muito tempo, minimizaram esse custo ambiental ao manter um pequeno valor por tonelada de carbono (entre 100 e 200 euros). Mas o agravamento do aquecimento global levou a uma revisão desses números: os custos decorrentes das emissões – desastres naturais, redução da atividade econômica, etc. – são agora estimados em cerca de mil euros por tonelada, ou até mais, sem sequer levar em conta a perda de bem-estar e os custos não econômicos. Mantendo esse valor, tarifas médias de cerca de 15% deveriam ser aplicadas aos fluxos comerciais globais para compensar o aquecimento associado ao transporte de mercadorias, com variações significativas dependendo das mercadorias.

A segunda justificativa para os direitos aduaneiros é o dumping social, fiscal e ambiental. Alguns países aplicam padrões menos rigorosos do que outros, permitindo que os produtores sediados nesses territórios expulsem seus concorrentes.

Especificamente, a China agora é responsável por 30% das emissões globais, das quais cerca de 20% são emissões exportadas (ou seja, 6% do total global). A mil euros por tonelada, taxas alfandegárias médias de cerca de 80% teriam que ser aplicadas às exportações chinesas para compensar esse custo ambiental. Se nos limitarmos às emissões exportadas líquidas das emissões importadas, ou seja, cerca de 10% das emissões chinesas (3% do total global), terminamos com taxas alfandegárias de cerca de 40%.

Não é um fim em si mesmo

Vejamos o dumping social. Os salários representam 49% do Produto Interno Bruto na China, em comparação com 64% na Europa. Isso distorce a concorrência e exigiria taxas compensatórias de cerca de 15%.

Um cálculo semelhante pode ser feito para o dumping fiscal, especialmente no que diz respeito ao imposto sobre as empresas e aos subsídios estatais.

Assim como no caso do carbono, o objetivo não é penalizar a China como tal, mas forçá-la a pagar salários mais altos, caso em que o imposto compensatório cessaria. A China não precisa acumular superávits comerciais intermináveis: deve primeiro continuar sua descarbonização (mais avançada que os Estados Unidos, por exemplo) e aumentar seus salários e a demanda interna. A longo prazo, se os Estados Unidos não influenciarem em sua trajetória, a Europa e a China terão que impor sanções significativas.

De qualquer forma, os direitos alfandegários não são um fim em si mesmos: podemos dispensá-los se forem estabelecidos acordos vinculativos para atingir os mesmos objetivos. Eles também podem ser substituídos por sanções financeiras específicas, se parecerem mais eficazes. Os valores exatos devem ser definidos após deliberação democrática aprofundada, com total transparência, idealmente no âmbito de assembleias transnacionais.

A verdade é que os valores em jogo são potencialmente muito significativos: entre 50% e 100% dos direitos aduaneiros para compensar as externalidades negativas relacionadas ao frete e ao dumping. Em comparação, o pequeno mecanismo europeu de ajuste de carbono nas fronteiras deverá arrecadar apenas 14 bilhões de euros anualmente até 2030, ou seja, 2% das importações chinesas e 0,5% do total das importações não europeias. Sejamos honestos: isso não terá efeito palpável nos fluxos comerciais. Afirmar o contrário levará a decepções frustrantes.

Necessidade de receita tributária

Dois fatores poderosos podem levar a Europa a mudar de rumo. Por um lado, as pressões sociais e políticas relacionadas à iminente nova onda de perdas de empregos industriais. Por outro lado, a necessidade urgente de receita tributária para pagar o empréstimo europeu de 2020 e financiar novos gastos. Os direitos aduaneiros podem contribuir para isso.

A principal dificuldade é que a Europa permanece profundamente comprometida com o mais absoluto livre comércio. A União Europeia certamente reconhece a importância de trabalhar por um desenvolvimento sustentável e equitativo, mesmo nos artigos fundadores de seus tratados. Mas, quando se trata de ação, reluta em se afastar muito claramente do livre comércio absoluto, por medo de cair em uma escalada interminável de protecionismo.

Este argumento da caixa de Pandora pode ser compreensível, mas não é isento de hipocrisia (foi usado há um século contra qualquer forma de tributação progressiva e, felizmente, foi superado) e, acima de tudo, não está mais de forma alguma adaptado aos desafios atuais.

Para romper o impasse, uma ação unilateral pode ser necessária, visto que alguns países estão adotando medidas nacionais para se protegerem contra o dumping social e ambiental. A julgar pelo caso dos EUA, tal iniciativa poderia partir da direita e dos nacionalistas, o que seria lamentável, pois a lógica de exclusão adotada por esse setor político não resolverá os desafios sociais nem aliviará os sentimentos de abandono que explora para tomar o poder. É hora de a esquerda, na Europa e em todo o mundo, abordar a questão do comércio sustentável e justo e lançar um ambicioso programa de ação.

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