03 Outubro 2025
"Um cenário de grave ilegalidade se configura considerando que as embarcações da FGS foram interceptadas e atacadas, uma ilegalidade certamente não atribuível a quem defende as razões do direitos (e da humanidade) naquelas embarcações", escreve Micaela Frulli, jurista e professora de Direito Internacional Público na Universidade de Florença, Itália, em artigo publicado por il manifesto, 02-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Qualquer análise ligada à Flotilha Global Sumud (FGS) deve partir da situação jurídica das águas em que as embarcações que a compõem navegam. Estão em águas internacionais, onde o direito internacional não permite que Israel ou qualquer outro Estado as intercepte: vigora a liberdade de navegação de acordo com o Artigo 87 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (CNUDM), que codificou uma prática preexistente e vigente também para os Estados que não fazem parte da CNUDM, como Israel. O direito considera o mar internacional como um espaço comum utilizável exclusivamente para fins pacíficos e que não pode ser submetido à soberania de nenhum Estado (Art. 88 e 89 da CNUDM).
O objetivo da FGS é alcançar as águas ao largo de Gaza, que não podem de forma alguma ser consideradas águas territoriais israelenses. Israel não tem título de soberania sobre essas águas, assim como não o tem sobre o território de Gaza e sobre o espaço aéreo, e mantém uma ocupação sobre esses espaços que o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) considerou ilegal em todos os aspectos. Somente a Palestina tem direitos soberanos ao largo da costa da Faixa de Gaza, de acordo com o Artigo 2 da CNUDM, ao qual aderiu em 2015, notificando a extensão de seu mar territorial para 12 milhas náuticas da costa, conforme previsto pelo tratado.
Vigora no mar territorial o direito de passagem inofensivo das embarcações que não acarretam prejuízo à boa ordem e à segurança do Estado costeiro. Ao quadro básico delineado pelo direito do mar, deve-se acrescentar que Israel, além de ocupar ilegalmente o território de Gaza, há muito tempo impõe um bloqueio naval que excede os limites do direito internacional humanitário, pois acarreta danos excessivos à população civil em comparação com a vantagem militar concreta e direta resultante do próprio bloqueio (par. 102 do Manual de San Remo sobre o Direito Aplicável aos Conflitos Armados no Mar, que codifica o direito consuetudinário sobre o assunto).
O direito humanitário também estabelece que, se a população civil do território submetido ao bloqueio não pode ter acesso a alimentos e outros bens de primeira necessidade, a parte que impõe o bloqueio deve permitir a livre passagem das ajudas humanitárias (par. 103-104 do Manual de San Remo).
Portanto, fica claro que, com base no direito internacional, as embarcações da FGS não estão violando nenhuma regra do direito internacional, mas estão agindo em total conformidade com o direito do mar e o direito internacional humanitário, assumindo obrigações que os Estados, Israel em primeiro lugar e os outros a seguir, não estão respeitando.
Cabe se perguntar por que Estados e as organizações internacionais estão quase unanimemente pedindo à FGS que respeite um bloqueio naval que excedeu todos os limites de legalidade. Cabe se perguntar por que não está sendo exercida pressão sobre Israel para pôr fim ao bloqueio ilegal e para garantir a chegada das ajudas humanitárias à população civil, conforme previsto pelo direito.
Os Estados, especialmente aqueles cujas bandeiras os navios da FGS arvoram, têm a obrigação de fazer todo o possível para proteger uma missão humanitária que age no pleno respeito das regras para atingir objetivos protegidos pelo direito internacional. Essa atitude é ainda mais surpreendente considerando que Israel está agindo também em violação às ordens cautelares emitidas pelo TIJ em 2024 no âmbito do processo movido pela África do Sul contra Israel por violação da Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Essas ordens impõem que Israel adote medidas imediatas e efetivas para garantir a assistência humanitária a Gaza, e impedir que a FGS chegue ao seu destino também viola essas obrigações.
Alguns invocam a suposta legalidade do bloqueio naval com base no relatório da Comissão de Inquérito nomeada em 2010 pelo Secretário-Geral da ONU sobre o ataque israelense ao navio Mavi Marmara (Relatório Palmer). Aquele relatório, em condições muito diferentes das atuais, estabeleceu que o bloqueio naval israelense era lícito, mesmo condenando o uso desproporcional da força pelas forças israelenses na abordagem da embarcação, que resultou em dez mortes e muitos feridos entre os ativistas a bordo. O Relatório Palmer, no entanto, já na época foi criticado por muitos e contrariado pelo Relatório da Comissão de Inquérito do Conselho de Direitos Humanos da ONU (2010), que se expressou no sentido da uma total ilicitude do bloqueio naval, qualificando-o como uma forma de punição coletiva em violação ao Art. 33 da IV Convenção de Genebra.
Um cenário de grave ilegalidade se configura considerando que as embarcações da FGS foram interceptadas e atacadas, uma ilegalidade certamente não atribuível a quem defende as razões do direitos (e da humanidade) naquelas embarcações.
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