11 Setembro 2025
"Trump se julga o 'imperador do mundo' (Lula), põe e dispõe como lhe dá na veneta. Destrói hábitos democráticos tradicionais dos EUA e com sua guerra comercial tem se inimizado com quase todo o mundo, até com seus aliados mais fiéis como os europeus e sul-coreanos", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros, de A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra (Vozes, 2023).
Eis o artigo.
No momento atual estamos verificando uma feroz competição entre uma visão unipolar do mundo, sustentada a ferro e fogo, com guerras comerciais e híbridas pelos Estados Unidos sob Donald Trump e pela União Europeia, e outra visão multipolar requerida pelas duas grandes potências, a Rússia e a China, junto com grande parte dos países do Sul Global.
O que se esconde, subjacente a esta disputa, entre outras tantas razões, é uma imensa arrogância dos EUA e dos países europeus. A arrogância é a famosa hybris dos gregos, vale dizer, a perda da justa medida, a afirmação da extrema autoimportância, a exaltação superestimada de suas qualidades, o desprezo de outros que não sejam como eles ou submetidos a eles. Isso se revela por se considerarem os melhores do mundo, de terem a melhor forma de governo, a democracia, de terem a introduzidos os direitos humanos, a melhor tecnologia, a economia mais poderosa, a força militar mais destrutiva, agora se rearmando de novo, a religião (ou fé) revelada, o cristianismo. Segundo os gregos, a hybris era castigada pelos deuses. E hoje como fica?
Essa arrogância trouxe conflitos e guerras contra todos os demais, a nível mundial, haja vista o processo de colonização forçada do mundo a partir da Europa do século XVI até as grandes guerras do século XX. Com razão afirmou Samuel P. Huntington em seu discutido livro O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial (Objetiva, 1997, p. 397): ”É importante reconhecer que a intervenção ocidental nos assuntos de outras civilizações provavelmente constitui a mais perigosa fonte de instabilidade e de um possível conflito global num mundo multicivilizacional”.
Cabe citar também o historiador Arnold Toynbee, em seus doze volumes de Um estudo da história, nos quais estuda o nascimento, o crescimento e a queda das civilizações e onde confere centralidade à arrogância como indício do ocaso de inteiras civilizações.
Recentemente, o conhecido economista e ecólogo Jeffrey Sachs da Universidade de Columbia afirmou a um jornalista brasileiro (Leonardo Sobreira: Brasil 247, 06-09-25): ”Os EUA sofreram de uma ilusão de que liderariam o mundo sozinhos. A Europa também sofre da mesma arrogância... Não apenas os EUA estão sozinhos, mas eles não mandam mais. Estamos observando o fim de um longo processo histórico. E a arrogância não é apenas nos EUA, como também na Europa... A mentalidade é de arrogância continuada”.
Trump se julga o “imperador do mundo” (Lula), põe e dispõe como lhe dá na veneta. Destrói hábitos democráticos tradicionais dos EUA e com sua guerra comercial (ameaçando com outra real que seria final) tem se inimizado com quase todo o mundo, até com seus aliados mais fiéis como os europeus e sul-coreanos. Arrogante, não negocia, não discute, simplesmente impõe suas medidas, como o fez com o Brasil.
O fato, constatado pelos melhores analistas da geopolítica mundial, é que o tempo da dominação norte-americana está em franca erosão. Pior ainda, tal fato comparece na União Europeia que deveria se envergonhar por se portar contra toda a sua tradição civilizatória e humanística, ao apoiar a guerra implacável que o Israel de Netanyahu está levando contra a Faixa de Gaza. São milhares de mortos e dezenas de crianças inocentes, num verdadeiro genocídio a céu aberto. Os europeus são colocados de escanteio porque Trump se dá conta da erosão acelerada daquela envelhecida e arrogante civilização.
A potência mais emergente que, provavelmente, definirá o futuro próximo, é a China com uma proposta, nada arrogante mas sensata, de um mundo com um destino comum partilhado, respeitando a ordenação das Nações Unidas, fundada na abertura comercial e na não intervenção nos assuntos internos de outros países.
Em dois livros tratei desta questão da arrogância que vem sob o nome mais genérico de “falta da justa medida”, valor presente em todas as éticas das civilizações de que temos notícia. A desmesura e o rompimento da justa medida é o estopim que incendeia o processo de decadência de uma cultura, de um projeto social ou de um comportamento pessoal.
O que predomina no mundo, digamos o nome, é o sistema do capital ou como preferem, a economia de mercado, (quase toda financeirizada) que denuncia completa falta de medida, exemplificada pelos arrogantes das Big Techs, um dos quais já sonha, arrogantemente, com uma acumulação pessoal de um trilhão de dólares.
Por este caminho de ilimitada arrogância, associada à uma abissal desumanidade e falta completa de sensibilidade para com os outros, nos acercaremos de um abismo. Como advertia Zygmunt Bauman, pouco antes de falecer: “Engrossaremos o cortejo daqueles que rumam na direção de sua própria sepultura”. Isso não pode acontecer.
Nossa confiança e nosso esperançar nos alentam a afirmar a supremacia do espírito (com sua espiritualidade natural) contra a barbárie. Ele se dará conta de seus desvios e suas errâncias. Poderá definir um caminho que nos conserve ainda sobre este belo planeta. E nos garanta ainda um futuro no qual não seja tão frequente a arrogância, mas floresça o cuidado pela Casa Comum e a amorosidade entre todos os humanos.
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