As tarifas impostas pelos Estados Unidos ao Brasil não são expressão da política de Trump; são “uma chantagem para que o Brasil anistie seu correligionário de extrema-direita, Bolsonaro. Chantagem que não será bem-sucedida”, diz o economista
“A emergência da China é o fator determinante do mundo” hoje, afirma Luiz Carlos Bresser-Pereira na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail. É a partir deste fato que o economista tem analisado as transformações econômicas e políticas em curso e seus efeitos no Brasil.
Para ele, a virada neoliberal dos Estados Unidos para um desenvolvimentismo conservador está associada à “ameaça” que os americanos sentem diante do crescimento chinês. “Não há ameaça alguma, mas não é assim que os americanos veem o que está acontecendo, e se tornam por isso mais belicosos e mais imperialistas do que normalmente são. Este fato tem levado muitos a crer que haverá uma nova guerra mundial, mas não vejo condições para ela”, declara.
O medo do fantasma chinês que assombra os Estados Unidos também causa consequências no Brasil. Segundo o economista, a “neutralidade” assumida pelo país na disputa comercial entre China e Estados Unidos é “a razão mais geral da pressão do Império sobre o Brasil”. A “razão mais específica”, contudo, assevera o entrevistado, “é a anistia”.
Bresser-Pereira em evento no IHU (Foto: João Vitor Santos - IHU)
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getulio Vargas, atuou como professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris I (1978), de teoria da democracia no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) (2002-2003), e de Novo-Desenvolvimentismo na École d’Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre outras universidades pelo mundo. Também foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia no governo Fernando Henrique Cardoso. Bacharel em Direito pela USP, é mestre em Administração de Empresas pela Michigan State University, doutor e livre docente em Economia pela USP.
É autor de, entre outros, The Rise and Fall of Neoliberal Rentier Capitalism: The Political Economy of the 20th and 21st Centuries (Oxford University Press, 2025), Projeto Nacional contra a quase estagnação: juros e câmbio, para o investimento privado, e aumento do investimento público (Contracorrente, 2025), Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (FGV, 2018), A construção política do Brasil: sociedade, economia e Estado desde a Independência (Editora 34, 2016), Desenvolvimento e crise no Brasil (Editora 34, 2003), Construindo o Estado Republicano (FGV, 2009) e Globalização e competição (Elsevier-Campus, 2009).
IHU – Qual é o aspecto político-econômico mais importante a ser considerado no cenário global e na reorganização do mundo hoje?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – A emergência da China é o fator determinante do mundo. Hoje, temos três grandes potências mundiais: os Estados Unidos, a China e a Rússia e uma potência econômica, a União Europeia, mas a única delas que se mostra dinâmica, crescendo mais do que as outras três, é a China. Diante disso, os Estados Unidos não se conformam, com a diferença em relação à superação do Reino Unido, que esta foi rápida enquanto a atual deverá ser demorada.
A virada dos Estados Unidos do neoliberalismo para o desenvolvimentismo conservador, que eu analisei em meu livro The Rise and Fall of Neoliberal Rentier Capitalism, se deveu principalmente à “ameaça” que esse país sente diante do crescimento chinês. Não há ameaça alguma, mas não é assim que os americanos veem o que está acontecendo, e se tornam por isso mais belicosos e mais imperialistas do que normalmente são. Este fato tem levado muitos a crer que haverá uma nova guerra mundial, mas não vejo condições para ela. Na Segunda Guerra Mundial, ainda havia condições para a Alemanha conquistar territórios; agora os Estados Unidos não poderão fazê-lo. E uma guerra entre China e EUA só trará prejuízos para os dois países.
IHU – Na semana passada, a imagem do presidente Trump com os líderes europeus em torno da mesa, em Washington, foi interpretada de vários modos: uns leram a imagem como a força do protagonismo dos EUA no mundo, outros, como a subordinação da Europa aos EUA. Há quem veja Trump como o presidente da paz e outros como o presidente da força por causa das sanções impostas a outros países. O que essa imagem representa e significa à luz do atual momento global?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – O protagonismo dos Estados Unidos no mundo não é novidade, nem a lamentável subordinação da Europa. A virada desenvolvimentista americana ocorreu entre 2017 e 2024 como resposta à sua relativa perda de hegemonia; o liberalismo econômico é definitivamente inferior ao desenvolvimentismo como estratégia de desenvolvimento. A transição da Europa, dirigida em Bruxelas por tecnocratas alienados, só agora está ocorrendo. Enquanto os Estados Unidos pregavam o neoliberalismo, mas nunca foram inteiramente fiéis a ele, a Europa ficou para trás.
Sobre a ideia de que Trump seja o presidente da paz: a verdade é que os presidentes anteriores, desde George G. Bush, não pararam de fazer pequenas guerras no Oriente Médio e no Norte da África, enquanto Trump ainda não fez nenhuma.
IHU – O senhor disse que “o Brasil continua dominado pelo liberalismo econômico” enquanto os Estados Unidos já abandonaram essa ideologia e a Europa caminha na mesma direção. Pode desenvolver esta ideia? Como ocorreu esse processo nos EUA e qual ideologia foi adotada no lugar do liberalismo?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – No plano econômico, a ideologia alternativa ao liberalismo econômico é o desenvolvimentismo. Como a União Europeia, também o Brasil é dominado pelos Estados Unidos. E nós também temos sido mais realistas do que o rei. É verdade que no atual governo Lula este tem sido mais desenvolvimentista e nacionalista, mas os obstáculos que enfrenta são grandes devido ao atraso de nossas elites econômicas e políticas.
IHU – Alguma ideologia nova está sendo gestada no governo Trump ou ele é fruto das mudanças ocorridas no país nas últimas décadas?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – No plano econômico, o desenvolvimentismo de Trump não tem nada de original; também não o tem no plano político porque o populismo de extrema-direita que vem adotando é recente, mas não foi inventado por Trump.
IHU – Quais os sinais de que a Europa caminha na mesma direção de abandonar o liberalismo? O que está sendo gestado nos diferentes países europeus no momento?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – Não sei o que está sendo gestado nos países europeus. O fato é que eles se sentem ameaçados pela Rússia e, seguindo as ordens dos Estados Unidos – do Império –, armam-se ao invés de adotar uma política desenvolvimentista voltada ao desenvolvimento tecnológico.
IHU – O senhor já declarou que caracteriza a política do governo Trump como intervencionista. O que está por trás dessa política e como ela ressoa no Brasil?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – Certamente é intervencionista. Eu, porém, não sou liberal e não uso essa palavra, que é pejorativa. Uso desenvolvimentista. No caso de Trump, desenvolvimentista de extrema-direita, antidemocrático.
IHU – Qual é a melhor chave de leitura para interpretar o tarifaço dos EUA ao Brasil? Ele tem relação com a extrema-direita, com as aproximações comerciais entre Brasil e China ou são parte do modo de atuação do governo Trump?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – Uma tarifa menor seria apenas a expressão da política de Trump, que usa tarifas para desvalorizar indiretamente o dólar e diminuir o déficit em conta corrente. No nível em que foi estabelecido, não passa de uma chantagem para que o Brasil anistie seu correligionário de extrema-direita, Bolsonaro. Chantagem que não será bem-sucedida.
IHU – O que explica e significa a postura mais nacionalista e protecionista adotada em várias partes do mundo? Quais tendem a ser os efeitos político-econômicos disso a longo prazo?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – A Ásia a leste do Paquistão nunca deixou de ser desenvolvimentista e, portanto, protetora de sua indústria, enquanto o restante do mundo submeteu-se ao Império americano, que contou com o apoio da Europa rica e do Japão, e adotou o liberalismo econômico. O resultado foi o mundo em desenvolvimento independente; o desenvolvimentismo, cresceu nos últimos 40 anos a uma taxa três vezes maior do que os países dependentes!
IHU – Como o Brasil se insere na disputa envolvendo China e EUA? Quais são o significado e os efeitos do investimento chinês em montadoras, plataformas de delivery, HUB de energia renovável, parques industriais de ecossistema verde no Brasil para a economia brasileira e o país como um todo a longo prazo?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – O Brasil está sendo neutro na disputa entre Estados Unidos e China, algo que o primeiro país não admite. Esta é a razão mais geral da pressão do Império sobre o Brasil. A razão específica é a anistia. Os investimentos da China no Brasil não têm caráter político. São expressão dos superávits em conta-corrente da China e o excesso de moeda conversível que suas empresas precisam investir no exterior.
IHU – Qual tem sido o papel da China na América Latina? A região, antes dependente dos Estados Unidos, hoje torna-se mais dependente da China? É possível romper com a dependência?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – Não há dependência da América Latina em relação à China. Relações comerciais elevadas não significam dependência.
IHU – O senhor declarou recentemente que a abertura comercial e financeira do Brasil “foi um desastre”. Hoje, quais são as consequências dessa abertura e como elas impedem o país de avançar política, econômica e socialmente?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – A abertura comercial em 1990 foi um desastre porque nós, brasileiros, não percebemos que as altas tarifas não eram meramente protecionistas; elas legitimamente neutralizavam a doença holandesa. Em consequência, houve uma enorme desindustrialização do Brasil, que permanece quase estagnado desde então. A abertura financeira, a liberdade de entradas e saídas de capitais no Brasil, foi também um desastre porque privou o país de ter uma política cambial, que foi essencial durante o período de grande desenvolvimento do Brasil (1950-1980).
IHU – O senhor e outros intelectuais brasileiros sempre chamaram atenção para a necessidade de um projeto nacional. Como pensa um projeto de país para o Brasil na atualidade? Que demandas da sociedade brasileira do século XXI este projeto deveria contemplar? Trata-se de um modelo diferente ou parecido com o que se pensava nos anos 1990?
Luiz Carlos Bresser-Pereira – Eu publiquei neste ano o livro Projeto nacional contra a quase-estagnação (Contracorrente, 2025) que trata exatamente desse tema. Há certas políticas que são óbvias como a necessidade de investir na educação, de investir na infraestrutura, de adotar instituições que garantam a propriedade e os contratos e de manter o mercado competitivo razoavelmente livre, capaz de alocar de maneira mais eficiente os recursos disponíveis. Eu me concentrei nas políticas novas propostas pelo Novo Desenvolvimentismo (o nome da teoria que venho desenvolvendo há mais de vinte anos), especificamente uma política cambial que mantenha a taxa de câmbio competitiva apesar dos déficits em conta-corrente e a doença holandesa, a crítica à política de tentar crescer com déficits em conta-corrente e endividamento externo, além da política do Desenvolvimentismo Clássico e procurar aumentar a poupança pública e o investimento público.