O mistério de um barco pulverizado por um míssil no meio do Caribe

Foto: Donald Trump Truth Social/Divulgação | Agência Brasil

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05 Setembro 2025

A maioria dos 11 ocupantes da barcaça que saiu da Venezuela e foi explodida pelos Estados Unidos vinha de uma pequena cidade costeira tomada por traficantes de drogas.

A reportagem é de Juan Diego Quesada Florantonia Cantor, publicada por El País, 05-09-2025.

San Juan de Unare era uma pequena vila de pescadores onde os pescadores se levantavam no meio da noite para carregar seus barcos na praia e se aventurar no calmo Mar do Caribe. Era o que seus pais e os avós de seus pais faziam. Há mais de 20 anos, porém, tornou-se um ponto de trânsito de drogas e tudo mudou. Chegaram as disputas, a rivalidade entre clãs e a morte. Primeiro um assassinato, depois dois, e então, em dois dias que ninguém esquecerá, 78 de uma só vez. No início desta semana, segundo a mídia venezuelana, alguns jovens da vila embarcaram em um barco e nunca mais retornaram.

O destino dos moradores de San Juan de Unare e outras áreas vizinhas aumentou as tensões entre os Estados Unidos e a Venezuela, duas nações que atualmente falam em termos belicosos. A Casa Branca usou sua força militar implantada em águas internacionais, na fronteira com o território venezuelano, para lançar um míssil contra o barco e matar as onze pessoas a bordo. Segundo autoridades americanas, eles transportavam drogas com destino a Trinidad e Tobago. Donald Trump afirma que esta é uma nova maneira de enfrentar os cartéis de drogas por meio do uso de armas de guerra, mas Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, está convencido de que é apenas um passo preliminar para invadir seu país. Ele afirma que fará com que oito milhões de venezuelanos peguem em armas e se juntem às forças armadas.

Tudo aconteceu em instantes. O barco navegava pelo mar quando algo não identificado o alvejou do céu (alguns especialistas acreditam que tenha sido um drone). Segundos depois, um projétil o pulverizou. Os Estados Unidos desclassificaram o vídeo do incidente, mas não ofereceram muitos detalhes. O governo chavista inicialmente disse que se tratava de um vídeo criado por Inteligência Artificial, mas não há razão para suspeitar disso. Em particular, um líder chavista próximo a Maduro chama o governo Trump de "criminoso". "Eles querem destruir este país com um míssil", acrescenta.

A teoria de Washington é que Maduro é um narcopresidente que lidera o Cartel dos Sóis, uma organização criminosa local (não há evidências de que isso seja verdade). Soma-se a isso o fato de que o sucessor de Chávez se recusou a aceitar sua derrota nas eleições presidenciais para a oposição há um ano, o que, aos olhos de Washington e de praticamente toda a comunidade internacional, o torna um presidente ilegítimo. O Secretário de Estado Marco Rubio insiste diariamente que ele é um traficante de drogas que deve ser levado à justiça em seu país.

A crise colocou San Juan de Unare no mapa. É a última cidade com acesso terrestre por uma rodovia danificada, atravessada por vários postos de controle militares, em direção à Península de Paria. Além dela, fica a floresta tropical, quase a última fronteira da Venezuela. Aqui estão algumas das praias mais bonitas do planeta. Mas muitas vezes parece mais um inferno. O estado de Sucre é um dos mais pobres e violentos de todo o país. Vídeos dessa área dominada pelo crime organizado têm inundado o TikTok ultimamente, desde o ataque. "San Juan de Unare de luto, que os pais que entram neste mundo por necessidade descansem em paz, para que suas famílias possam viver um pouco melhor", diz um dos vídeos. Nas respostas, os usuários comentaram que o ataque foi real, não inteligência artificial. As vítimas são reais.

O chavismo reagiu agora que essa informação se tornou conhecida e militarizou a cidade, segundo testemunhas que falaram a este jornal. El Pitazo, um veículo de comunicação venezuelano, explica que a lancha de 12 metros de comprimento, com 11 homens a bordo e uma carga de narcóticos, havia partido no domingo, 31 de agosto, com destino a Trinidad e Tobago, e foi destruída na madrugada de segunda-feira. Segundo essa versão, dois barcos carregados de drogas já haviam zarpado, mas não foram interceptados. A primeira-ministra do país caribenho, Kamla Persad-Bissessar, comemorou a operação: “A dor e o sofrimento que os cartéis infligiram à nossa nação são imensos. Não tenho compaixão pelos traficantes; o Exército dos Estados Unidos deveria matá-los todos violentamente.”

Gangues do narcotráfico operam nesta região há duas décadas. Nos últimos anos, com a intensificação do êxodo venezuelano, gangues criminosas também se aventuraram no tráfico de pessoas. Naufrágios de migrantes venezuelanos tentando chegar a Trinidad e Tobago tornaram-se comuns. A jornalista Ronna Rísquez, autora do livro "Tren de Aragua: La banda que revolucionó el crimen organización en América Latina" (Dahbar, 2024), observa que a presença dessa gangue foi identificada nesta área. Ela mesma conduziu um trabalho investigativo em San Juan de Unare, que utilizou em seu livro. "Vi com meus próprios olhos que era uma cidade tomada pelo narcotráfico", diz Rísquez por telefone.

Em 2019, o veículo de comunicação especializado em crime organizado Insight Crime revelou o aumento da pirataria de navios no leste da Venezuela como estratégia para limpar as rotas de tráfico de cocaína e maconha produzidas na Colômbia para o Caribe, particularmente na zona marítima entre a Venezuela e Trinidad e Tobago. Um ano antes, a poucos quilômetros de San Juan de Unare, em San Juan de las Galdonas, um dos principais centros de operações do narcotráfico, ocorreu um confronto brutal entre gangues criminosas. Segundo moradores e testemunhas da região, conforme documentado pela mídia local, 78 homens foram mortos e esquartejados durante dois dias de tiroteio. As autoridades policiais venezuelanas negaram o massacre. A inteligência artificial não existia na época.

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