13 Mai 2025
“As comemorações são espelhos interessantes das narrativas hegemônicas do passado, que nem sempre correspondem à consciência histórica popular. Isto é especialmente verdadeiro para aniversários mundiais como 8 de maio de 1945”. A reflexão é de Enzo Traverso, historiador italiano, em artigo publicado por Jacobin, 11-05-2025. A tradução é do Cepat.
As comemorações são espelhos interessantes das narrativas hegemônicas do passado, que nem sempre correspondem à consciência histórica popular. Isto é especialmente verdadeiro para aniversários mundiais como 8 de maio de 1945.
Durante décadas, o Ocidente celebrou o Dia da Vitória na Europa para demonstrar seu poder e afirmar seus valores. Com essa mentalidade, o Ocidente não era apenas poderoso, mas também virtuoso. Essa liturgia da democracia liberal funcionou de maneira harmoniosa e consensual, com todos os participantes unidos em torno de memórias, símbolos e valores que forjaram sua aliança.
Em 1985, quarenta anos após o fim do conflito, a República Federal da Alemanha (RFA) uniu-se a essas comemorações. Em um famoso discurso perante o Bundestag, o presidente da Alemanha Ocidental, Richard von Weizsäcker, declarou solenemente que a Alemanha não deveria considerar esta data como um dia de derrota, mas como um dia de libertação.
Após o fim da Guerra Fria, o Dia da Vitória na Europa significou o triunfo do Ocidente: capitalismo, força militar, instituições fortes, prosperidade econômica e um estilo de vida confortável. Alguns estudiosos falaram de uma espécie de fim hegeliano da história, enquanto outros evocaram um final feliz ao estilo de Hollywood.
Hoje, esse ritual conveniente parece anacrônico, uma reminiscência de uma época passada. Oitenta anos após a queda do Terceiro Reich, o fascismo está retornando à Europa. Seis países da União Europeia – Itália, Finlândia, Eslováquia, Hungria, Croácia e República Tcheca – têm partidos de extrema-direita no governo. Partidos semelhantes tornaram-se atores importantes em toda a União Europeia, da Alemanha à França e da Polônia à Espanha.
Neste contexto, talvez seja melhor evitar comemorações internacionais. Afinal, J. D. Vance, o onipresente vice-presidente dos Estados Unidos, os libertadores de 1945, poderia celebrar a liberdade elogiando a Alternative für Deutschland, ou o igualmente onipresente Elon Musk poderia fazê-lo recorrendo à saudação nazista.
No lado oriental do continente, Vladimir Putin comemorará o sacrifício do povo soviético na luta contra o fascismo – 20 milhões de mortos – elogiando o heroísmo do exército russo que invadiu o que chama de Ucrânia “nazista” há três anos. Nossos marcos históricos estão em questão; a memória convencional não se adapta ao terrível caos do nosso presente.
Apesar do seu status oficial, o Dia da Vitória na Europa também foi um marco comemorativo para a esquerda. Como Eric Hobsbawm destacou, representou uma vitória do Iluminismo sobre a barbárie. Uma coalizão de liberalismo e comunismo, os herdeiros antagônicos do legado do Iluminismo, derrotou o Terceiro Reich. Essa visão era hegemônica na cultura da Resistência, segundo a qual o antifascismo lutava contra os inimigos da civilização. Embora verdadeira em muitos aspectos, essa perspectiva era, no entanto, muito simplista.
Talvez, em vez de nos envolvermos em uma forma ritualística e cooptada de comemoração, este aniversário devesse nos inspirar a nos envolvermos em uma reavaliação crítica. O Dia da Vitória na Europa celebra a vitória de uma aliança militar em uma guerra mundial que teve muitas dimensões, incluindo o estabelecimento de uma nova ordem mundial na qual essa coalizão “iluminada” não conseguiu sobreviver.
No Ocidente, os Estados Unidos se tornaram a superpotência dominante; no bloco soviético, a guerra de autodefesa da URSS contra a agressão nazista se transformou em ocupação militar e uma nova forma de colonialismo na Europa Oriental. As ideias do liberalismo e do comunismo foram institucionalizadas na forma do imperialismo e do estalinismo.
Para a esquerda, o fim da Segunda Guerra Mundial foi uma vitória dos movimentos de resistência, que deram legitimidade democrática aos novos regimes nascidos do colapso do Terceiro Reich. Na maioria dos países da Europa Ocidental, a democracia não foi imposta pelos vencedores, mas conquistada pela resistência.
Contudo, como destacou Claudio Pavone, o conceito de resistência também tinha diversas dimensões. Abarcava, simultaneamente, a totalidade dos movimentos de libertação nacional contra a ocupação alemã, uma guerra civil entre forças antifascistas e muitos regimes que colaboraram com os ocupantes nazistas, e uma guerra de classes que buscava mudar a sociedade, já que as elites dominantes e a maioria dos componentes do capitalismo europeu estavam implicados no fascismo e na colaboração.
Esta guerra de classes foi vencida na Iugoslávia, que se tornou um país socialista, e criou as premissas para uma esquerda poderosa em muitos outros países, da Itália à França. Também fortaleceu a resistência contra o franquismo na Espanha e o salazarismo em Portugal.
No entanto, se olharmos além das fronteiras europeias, o quadro parece muito mais diversificado. Como aniversário mundial, o 8 de maio de 1945 tem significados diferentes. Embora o Dia da Vitória na Europa tenha sido celebrado e mitificado como um símbolo de libertação no Ocidente, o mesmo não aconteceu em outros lugares.
Na Europa Central e Oriental, esse momento de libertação foi efêmero, pois o domínio nazista rapidamente deu lugar a um bloco de regimes autoritários instalados pela URSS. Em muitos países, isso significou russificação e opressão nacional.
O Dia da Vitória na Europa também não é um marco comemorativo da libertação na África e na Ásia. Na Argélia, essa mesma data marca o aniversário dos massacres coloniais de Setif e Guelma, quando o exército francês reprimiu violentamente as primeiras manifestações pela independência nacional. Foi o início de uma onda de violência imperial que se espalhou por toda a África francesa e atingiu seu auge dois anos depois em Madagascar.
O responsável por esse surto de violência colonial foi um governo de coalizão em Paris formado por partidos da resistência, incluindo os principais partidos de esquerda, os socialistas e os comunistas.
As memórias antifascistas e anticolonialistas nem sempre são harmoniosas e fraternas. O aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial merece uma lembrança crítica, em vez de celebrações apologéticas.