11 Abril 2025
Jesus de Nazaré viveu com o olhar sempre voltado para o Pai. Toda a sua vida, palavras e ações nasceram dessa relação íntima, confiante e filial com Deus. Ele não era apenas mais um líder espiritual, nem um simples reformador moral: era um homem completamente enraizado no mistério do Pai, a quem chamava de “Abba” com uma proximidade que desconcertava seus contemporâneos. Sua visão era radicalmente inclusiva e profética. Assim, como disse José María Castillo, "o cristão reflete sua escolha radical de sentido em Cristo em todas as expressões de sua vida, e tudo é permeado pela fé, que é o que transforma as coisas, santificando as atividades mais profanas e tornando-as agradáveis a Deus quando vividas como Cristo e por Cristo. Ser cristão é ser vigário de Cristo no mundo, sabendo que a história da salvação se realiza no mundo e na história secular, e a partir de uma fé que consagra todas as realidades da vida a Deus".
O artigo é de José Carlos Enríquez Díaz, publicado por Ataque al Poder, 26-03-2025.
Jesus de Nazaré não fundou uma igreja. Essa é uma afirmação que pode parecer provocativa, mas é profundamente verdadeira se olharmos honestamente para a mensagem original de Galileu. O que ele anunciou não foi uma instituição, nem uma hierarquia clerical, nem uma série de ritos ou sacramentos administrados exclusivamente por uma classe separada do povo. Jesus estava falando do Reino de Deus, não de uma igreja humana; de comunhão com o Pai e de fraternidade entre todos, não de estruturas dominantes. Sua visão era profundamente espiritual e transcendente, com o Pai como referência constante e, ao mesmo tempo, radicalmente comprometida com os pobres, os pequenos, os excluídos. Dessa união com Deus, ele clamou pela construção de uma nova humanidade, não de um sistema de poder religioso.
Entretanto, a partir do século II e especialmente com o impulso imperial de Constantino no século IV, a figura de Jesus foi domesticada, institucionalizada, transformada em ícone de um poder que ele nunca buscou. O que emergiu então foi uma igreja hierárquica, vertical, estruturada segundo modelos imperiais e cada vez mais distante da mensagem subversiva de seu fundador.
A centralização do poder nas mãos de uma elite clerical gradualmente deslocou os leigos, isto é, o povo. Em suas origens, as comunidades cristãs eram pequenas redes fraternais onde todos compartilhavam, todos falavam, todos decidiam. Mas, ao longo dos séculos, o clero se apropriou da linguagem religiosa, dos símbolos e da interpretação de textos sagrados, transformando a experiência cristã em algo vivenciado apenas "de cima", mediado por homens — quase sempre homens — investidos de poder sagrado. A distância entre a mensagem de Jesus e a igreja que foi construída em seu nome tornou-se abismal.
Jesus não morreu para “pagar” pelos nossos pecados como se seu sangue fosse uma transação necessária para apaziguar a ira de Deus. Esta é uma leitura teológica desenvolvida séculos depois, que pouco tem a ver com o contexto em que ele viveu. Jesus morreu como morrem os profetas: por falar a verdade, por denunciar a hipocrisia dos poderosos, por anunciar um mundo diferente. Ela foi realizada pelo Império Romano com o apoio das elites religiosas, justamente porque sua proposta desafiava todo o sistema: político, econômico e também religioso.
O que ele personificou foi uma maneira diferente de viver a espiritualidade. Jesus não era um sacerdote, nem falou de sacerdócios institucionais. Ele não instituiu sacramentos como rituais de exclusão ou controle espiritual. Ele tocou nos impuros, comeu com pecadores, abençoou fora do templo e curou no sábado. Ele constantemente quebrava os limites do sagrado, conforme entendido pelas autoridades religiosas de sua época. Se ele voltasse hoje, provavelmente ficaria chocado — como ficou naquela época — com as vestes, os títulos, a distância entre os ministros e o povo, a burocracia religiosa que cria obstáculos em vez de abrir caminhos.
A história da Igreja também tem sido uma história de apropriação. O que começou como um movimento comunitário, profundamente conectado à experiência de Deus Pai e orientado para o serviço e a justiça, acabou se tornando uma estrutura piramidal onde a palavra do clero prevaleceu sobre a experiência do povo. O Evangelho deixou de ser notícia viva e passou a ser recitado como dogma. As parábolas foram congeladas em catecismos. Refeições compartilhadas se tornaram missas privadas de participação real.
Jesus nunca silenciou ninguém. A igreja sim. Ao longo dos séculos, muitas vozes foram silenciadas: mulheres, teólogos críticos, comunidades dissidentes, pessoas de outras culturas, identidades e formas de amar. E esse silêncio foi justificado com argumentos de “unidade”, “pureza doutrinária” e “tradição”. Mas, no fundo, era medo de perder o controle. Controle sobre o pensamento, sobre os corpos, sobre a interpretação única do divino.
Não foi Jesus quem disse que o Espírito sopra onde quer? Por que então tantas estruturas tentaram aprisionar esse Espírito em normas, códigos e hierarquias? Os galileus falavam livremente, ensinavam nas estradas e praias, conversavam com mulheres samaritanas e curavam fora dos ritos permitidos. Ele era um místico em contato com a vida, profundamente enraizado em seu relacionamento com o Pai, não com regulamentos.
A Igreja, como a conhecemos hoje, desenvolveu correntes que se tornaram pesadas demais. Correntes de poder patriarcal, de instituições fechadas, de clericalismo arraigado, de liturgias desprovidas de significado vital. Muitas dessas correntes não têm raízes bíblicas ou espirituais: são construções históricas, fruto de séculos de adaptação ao poder, de pactos com imperadores, reis e ditadores. E o mais preocupante é que, na ânsia de sobreviver, a Igreja esqueceu sua missão profética e perdeu sua credibilidade.
Em última análise, não é uma questão de fé, mas de estruturas. Porque a fé continua viva em muitas pessoas que deixaram a Igreja institucional, mas continuam a buscar a Deus, continuam a lutar pelo Reino e continuam a acreditar no poder transformador do amor. Eles são a verdadeira comunidade de fiéis, mesmo que não apareçam nos registros paroquiais nem se ajoelhem diante dos altares.
Hoje, muitas comunidades cristãs alternativas estão florescendo fora dos muros da igreja. São espaços onde o Evangelho é lido com novos olhos, onde a vida é celebrada sem exclusões, onde a dignidade de todos é reconhecida. Essas experiências não exigem bispos, palácios episcopais ou cânones antigos. O que eles precisam é de verdade, coerência e espiritualidade incorporada. Jesus estaria muito mais próximo dessas experiências do que das grandes cerimônias vazias de conteúdo.
O papel das mulheres, por exemplo, tem sido sistematicamente relegado durante séculos. Como isso pode ser justificado à luz de um Jesus que tantas vezes rompeu com a exclusão feminina de seu tempo? Maria Madalena era uma discípula próxima, não uma pecadora redimida como foi retratado. As mulheres estavam aos pés da cruz quando os discípulos fugiram. E, no entanto, ainda hoje, muitas Igrejas negam às mulheres pleno acesso ao ministério, à palavra e à tomada de decisões. É esta a Igreja que Jesus imaginou? Claramente não.
Nem a exclusão sistemática de pessoas com base em sua orientação sexual ou identidade de gênero pode ser ignorada. Em nome de uma moralidade equivocada, muitos irmãos e irmãs que estavam simplesmente buscando amor, companheirismo e significado foram feridos. Onde estão a compaixão evangélica, a aceitação e o respeito pela dignidade humana? Jesus nunca impôs condições para amar, nem pediu explicações para aceitar. A Igreja, sim.
O clericalismo, como forma de poder concentrado numa minoria investida de autoridade sagrada, é um dos maiores obstáculos ao renascimento da mensagem de Jesus. Ele lavou os pés de seus discípulos, um gesto radical de serviço. Mas hoje, em muitos casos, os ministros esperam ser servidos, obedecidos e até venerados. O símbolo foi invertido. O que era para ser dedicação virou status.
E ainda assim, há esperança. A crise da Igreja institucional pode ser terreno fértil para o surgimento de novas formas de comunidade cristã. Uma Igreja mais sinodal, aberta e plural, onde a voz de cada pessoa tem valor. Onde a espiritualidade é o caminho, não uma doutrina imposta. Onde o Evangelho recupera sua força poética, seu grito político, seu abraço humano.
Jesus não sonhou com basílicas ou concílios, mas com uma fraternidade universal enraizada no amor do Pai. Eu não estava pensando em um Vaticano, mas em uma mesa compartilhada onde ninguém ficaria de fora. Seu olhar era do Reino, não do poder. Portanto, quem quiser segui-lo hoje deve olhar além das vestes litúrgicas e dos títulos eclesiásticos. É preciso olhar para a periferia, para as margens, para os gritos daqueles que não têm voz.
Talvez a grande traição não tenha sido ter construído uma Igreja, mas ter esquecido que o Evangelho não se encaixa em nenhuma estrutura fixa. Que a verdadeira fé se vive na dedicação cotidiana, no amor concreto, na luta pela justiça. E essa fé não precisa de mediadores, nem de palácios, nem de discursos grandiloquentes. Ela só precisa de pessoas que, como Jesus, andem livremente, falem com ousadia e amem incondicionalmente.