De como os palestinos resistem ao desespero existencial

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08 Abril 2025

“Diante de tamanha barbárie, o mundo fica chocado e horrorizado, perguntando-se: como isso pode acontecer impunemente no século XXI? Como é possível que a humanidade, ou aqueles que governam o mundo, não tenham aprendido nada com a história?”. A reflexão é de Awad Abdelfattah, publicada por Middle East Eye e reproduzida por Voces del Mundo, 02-04-2025. A tradução é do Cepat.

Awad Abdelfattah escreve sobre questões políticas. Ele foi secretário-geral do partido Balad, fundado por um grupo de intelectuais árabes israelenses, de viés antissionista. Atualmente é o coordenador da Campanha Um Estado Democrático, com sede em Haifa, criada no final de 2017.

Eis o artigo.

Em tempos de graves crises humanitárias, sejam elas naturais ou provocadas pelos humanos, surgem frequentemente perguntas e dúvidas profundas sobre o sentido da vida. Estas perguntas pesam muito sobre os indivíduos e as comunidades, especialmente quando a salvação não parece estar no horizonte.

Na Europa do século XIX, o avanço do pensamento político e a noção de governo democrático fomentaram uma atmosfera de otimismo e sonhos ambiciosos. Mas esta mudança rapidamente se transformou nos horrores da Primeira e da Segunda Guerra Mundial.

Estes conflitos consumiram milhões de vidas e devastaram as sociedades, tanto física como espiritualmente. A destruição generalizada abalou profundamente as conquistas da modernidade, provocando o ressurgimento das questões existenciais na filosofia, na literatura e na arte: uma reconsideração da natureza humana e da alma.

Após a Segunda Guerra Mundial, as amplas reavaliações levaram ao estabelecimento de novas bases para as relações internacionais. Após o Holocausto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada juntamente com leis globais destinadas a prevenir o genocídio. O massacre de milhões de judeus pela Alemanha nazista gerou o slogan: “Nunca mais”.

É ao mesmo tempo surpreendente e aterrorizante que as mesmas nações e grupos que estabeleceram estes princípios estejam agora repetindo a sua própria história sombria em toda a Palestina. Em Gaza, assistimos a um genocídio sistemático e a uma estratégia deliberada para exterminar um povo inteiro.

Pela sua cumplicidade na limpeza étnica de Israel, as nações ocidentais estão lembrando às novas gerações a base sobre a qual estes países foram construídos: o extermínio e a eliminação dos povos indígenas. Reafirmam a sua mentalidade supremacista e racista profundamente enraizada.

Esta dolorosa realidade é precisamente o que empurra as pessoas de volta para uma espiral de desespero existencial. Também coloca um dilema profundo: como se pode sobreviver num mundo assim, e existe algum quadro ético capaz de evitar o colapso interno total?

Selvageria indescritível

Para muitas pessoas, a fé proporciona uma forte imunidade contra esta questão e as dúvidas que ela pode provocar. A fé proporciona sentido e refúgio; o mesmo se pode dizer das pessoas comprometidas com causas humanitárias ou libertárias, sejam elas religiosas ou laicas.

Mesmo assim, as perguntas existenciais podem vir à tona quando as pessoas veem as suas reservas internas de resiliência esgotadas. É uma experiência natural e profundamente humana.

Em Gaza, a resistência de um povo que suportou um ano e meio de genocídio brutalmente levado a cabo por Israel é simplesmente lendária. Quando os habitantes de Gaza questionam o mundo que os rodeia, o seu foco está principalmente no estado da humanidade: naqueles que governam os impérios imperialistas e genocidas e nos regimes árabes submetidos ao poder ocidental.

Nesta era de consumismo, ganância e poder opressivo, pode não haver nenhum povo na terra com a mesma incrível capacidade de resistência que o povo palestino. No entanto, muitos palestinos nos implorariam que os vejamos não como heróis, mas como seres humanos comuns que não têm outro refúgio senão a fé e a firmeza.

O que eles realmente precisam é de apoio tangível. Os palestinos suportaram inúmeras provações horríveis que dizimaram gerações inteiras. O seu prolongado confronto com o projeto colonial sionista produziu uma extensa literatura, uma parte dela profunda e essencial, enquanto outra parte é pouco mais do que retórica superficial.

Contudo, nem mesmo as críticas mais radicais e perspicazes conseguiram materializar-se num plano estratégico concreto.

Mas a questão existencial nunca foi levantada com a mesma intensidade e urgência como é hoje, tanto entre os palestinos como entre os seus aliados em todo o mundo. A guerra cria tragédias e histórias de sofrimento sem fim. Diante de tamanha devastação, a própria humanidade começa a definhar.

Esta guerra brutal em Gaza está sendo travada pela força militar mais poderosa do mundo, o implacável império dos EUA e seus aliados, contra uma organização minúscula e empobrecida. Esta indescritível selvageria está sendo transmitida em tempo real, enquanto os perpetradores se deleitam com a destruição de casas e o extermínio de crianças, mulheres e idosos.

Diante de tamanha barbárie, o mundo fica chocado e horrorizado, perguntando-se: como isso pode acontecer impunemente no século XXI? Como é possível que a humanidade, ou aqueles que governam o mundo, não tenham aprendido nada com a história?

Este terror diante da natureza do sistema global e do seu fundamento sionista alimentou uma frente civil internacional, que representa uma intersecção extraordinária de lutas. Assim como as gerações passadas triunfaram sobre a tragédia, a geração atual, muito atenta à injustiça, acredita na possibilidade de restaurar a dignidade humana e responsabilizar os atores violentos.

Desta forma, o povo palestino e os seus apoiadores em todo o mundo resistem à pressão do desespero existencial, ao mesmo tempo que forjam uma visão libertadora diante da barbárie mais absoluta.

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