24 Março 2025
As três mulheres que há cerca de um ano decidiram vir a público, juntamente com a sua advogada, denunciar os abusos e a aparente impunidade do padre e artista Marko Rupnik voltaram agora a juntar-se para pedir justiça ao Vaticano e alertar para o fenômeno do abuso espiritual e sexual de religiosas, cujos casos não param de aparecer.
A reportagem é publicada por 7Margens, 14-03-2025.
O encontro voltou a acontecer em Roma, desta vez numa livraria, e o pretexto foi o lançamento do livro da advogada das três mulheres, Laura Sgrò, Stupri Sacri (“Estupros sagrados”, ed. Rizzoli, 2025). É um título que remete para a “ferida do abuso” – “abuso de poder, manipulação espiritual, violência psicológica, exploração, abuso sexual”, que se esconde “atrás dos muros dos conventos, mascara-se de sacralidade, usa a linguagem da fé para legitimar a violência inaceitável”, como se pode ler na apresentação.
“Continuaremos a nossa luta por isto. Continuaremos a lutar para garantir que as suas vozes são ouvidas. A questão do abuso contra mulheres religiosas tem de ser abordada”, disse Sgrò, citada pela agência Religion News Service (RNS).
No livro, a autora conta a história de Maria (nome fictício), a primeira freira que entrou no seu consultório pedindo ajuda. Tinha sido violada por um padre do qual engravidou e por ele forçada a fazer um aborto. Ao saber do abuso, a superiora da ordem religiosa a que pertencia, expulsou-a. Depois dessa “primeira vez”, multiplicaram-se por muitas dezenas as denúncias de outras religiosas a contar, presencialmente ou por escrito, os tormentos por que tinham passado.
Entre esses outros casos, destacam-se as religiosas Gloria Branciani e Mirjam Kovac, ambas ex-membros da Comunidade Loyola, um instituto fundado pelo padre jesuíta Marko Rupnik e por Ivanka Hosta. Rupnik, um artista de renome mundial, que tem obras de mosaicos em mais de duas centenas de igrejas e outros espaços (incluindo na Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima), é acusado por Gloria de a ter estuprado e de ter envolvido no jogo sexual uma terceira religiosa, invocando a experiência da Santíssima Trindade.
Quanto a Mirjam Kovac, natural da Eslovênia, onde a Comunidade Loyola foi criada, era amiga de Gloria e, por isso, foi pressionada a deixar essa amizade, com o argumento de que Gloria não era “a pessoa certa a escolher para amiga”. E, ainda que Rupnik, que ali deixou um rasto notório de abusos, tenha acabado por abandonar a Comunidade, em condições nunca esclarecidas, a vida interna para as religiosas que nela permaneceram tornar-se-ia tão sufocante e controladora que um bispo italiano encarregado de fazer um levantamento da situação, acabou por impor à fundadora uma pena de deportação para a comunidade de Braga, em Portugal, e o abandono de todas as funções que desempenhava, em especial a de superiora geral. O Dicastério para a Vida Religiosa viria, entretanto, a extinguir a Comunidade Loyola, um processo que não está ainda completamente encerrado.
Uma terceira mulher também representada por Sgrò é Samuelle, uma religiosa a cujo caso o 7Margens já se referiu. Trata-se de uma artista de mosaicos, pertencente às Fraternidades Monásticas de Jerusalém, e é um caso bastante mais recente de abusos alegadamente cometidos por Rupnik. Ela colaborou com o ex-jesuíta em vários dos seus projetos em diferentes partes do mundo e define os estaleiros desses projetos como “campos de caça”. “Eu tornei-me a presa”, disse ela.
Rupnik já foi julgado por duas vezes no Dicastério para a Doutrina da Fé, mas praticamente sem consequências, já que até uma excomunhão viu ser-lhe levantada pouco depois de aplicada. De resto teve algumas penalizações desencadeadas pela Companhia de Jesus, mas não só não as cumpriu como fez de conta que não devia explicações nem aos seus superiores diretos nem às vítimas – umas dezenas – que desde 2022 vêm clamando por justiça. Sgrò afirma representar cinco mulheres que se dizem abusadas por Rupnik, mas ter provas de abusos relativamente a 15 outras.
Estes casos servem à advogada para sublinhar que em situações destas, são as mulheres religiosas que são consideradas as que seduziram e, portanto, as culpadas. A pena, em muitos casos, é a expulsão das congregações a que pertencem, vendo-se excluídas e, com frequência, sem recursos para enfrentar uma nova vida.
Rupnik viu o seu caso ser reaberto pelo Papa Francisco em 27 de outubro de 2023, na sequência de um alerta-apelo da Comissão Pontifícia sobre os Abusos de Crianças e Pessoas Vulneráveis. Como observava a Catholic News Agency na última quinta-feira, 13, “mais de 500 dias depois… Rupnik continua a viajar, enquanto supostamente vive num mosteiro a uma hora de Roma – e será julgado pelo crime canônico de ‘abuso espiritual’”. Trata-se de um crime que se diz estar insuficientemente elaborado na jurisprudência católica, pelo que deixa em suspenso o que se pode esperar do “tribunal independente” que o cardeal Victor Fernández anunciou em janeiro que está sendo constituído.